Levy Strauss, nos Tristes Trópicos, cita Chateaubriand, mais ou menos assim - que a precisão não me acompanha hoje:
Todos carregamos em nós um pequeno mundo composto por tudo o que vimos e amamos, a cujo santuário constantemente recolhemos, mesmo quando cruzamos e parecemos habitar um mundo estranho.
Cada um de nós tem os seus heróis - reais ou fictícios, que também com ficções se formam mentes. São pessoas que apreciamos, amamos, valorizamos, por quem temos apreço. São os escritores, os personagens mais marcantes da banda desenhada, os santos, os mártires, os amigos desaparecidos prematuramente, os músicos. Por outro lado, cada um de nós tem os locais das suas memórias, os livros, os cheiros. São, como já aqui escrevi um dia, as nossas famílias artificiais.
Beethoven, Bach, Eça, Mandela, Jesus Cristo, Corto Maltese, Santo Agostinho, João Paulo II, Vítor Damas, Yazalde, Melanie Safka, Janis Joplin, Amália e alguns poemas, o meu primeiro chefe na Lever, os padres que me ouvem, os amigos que me aconselham, os próximos que permanecem; rio de janeiro, praga, londres, áfrica, áfrica, áfrica, os açores; os grandes silêncios, as grandes conversas; o choro desinibido, a adolescência revisitada; os livros que me emocionam, as músicas que me elevam, a bondade que me comove.
O que une Beethoven, Corto Maltese e João Paulo II? Como junto pessoas que viveram em épocas diferentes, em realidades diferentes? No meu panteão pessoal. É nesse local que eles ganham uma importância semelhante, é lá que são verdadeiramente iguais, se irmanam num desiderato comum: fazer de mim uma pessoa melhor. Ali, nesse meu panteão, as diferenças não só se diluem, como potenciam a força que une estes e outros heróis. Ali nenhum é melhor do que o outro, porque são todos importantes. Por mais estranho que este raciocínio possa parecer.
Danielle S Allen, politóloga e escritora americana, escreveu muito sobre sociedade - sobre o que ela entendia ser uma connected society. Para ela há dois tipos de ligações: as bridging ties, que ligam pessoas diferentes, quer profissional, étnica, sócio-económica ou religiosamente, e as bonding ties, laços familiares, mais fáceis, que nos ligam à família e à comunidade imediata. E concluiu de forma evidente: as sociedades com mais sucesso são aquelas em que as principais instituições - escolas, universidades, empresas, órgãos políticos - promovem as bridging ties. Parece-me óbvio.
Os nossos panteões pessoais são micro-sociedades de sucesso, porque à volta de uma mesma mesa se junta a disparidade - Bach, Mandela, Santo Agostinho. Como poderíamos transformar estas micro-realidades em macro-realidades? De que forma o nosso panteão - todos os panteões juntos - tornaria as sociedades mais justas?
Na minha mesa de cabeceira virtual está uma mala com as famílias artificiais que me compõem: o silêncio dos açores, o cosmopolitismo de londres, o requiem de mozart, o novo testamento, o logotipo da acreditar, o retrato dos meus mais próximos, o so long marianne do leonard cohen, o bom ladrão que pede para não ser esquecido. É lá que me recolho em tempos de borrasca interior.
Ver as famílias artificias dos outros pode ser um exercício de conhecimento alheio, mais do que de voyeurismo. Um activista anti-gay tem oscar wilde no seu panteão? Um fundamentalista religioso tem jesus cristo no seu panteão? Um pato-bravo da construção tem os açores como família artificial?
Para que serve este texto?
JdB
---
* publicado originalmente a 10 de Abril de 2014