06 julho 2022

Carta a um anjo

 Nasceste hoje, mas há 28 anos.

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Dizer que não há um dia em que não te lembremos é já uma frase batida. No entanto, esta persistente memória não decorre apenas de um pensamento que não dominamos, ou de episódios que se agarram à nossa existência como um passageiro que alterna entre o amável e o doloroso. Esta persistente memória decorre, também, do que decidimos fazer com aquilo que nos acontece. 

Há uma semanas, pessoa que não conheço pessoalmente (fui colega de trabalho do Pai) pediu-me para prefaciar o livro que escrevera. O livro, uma espécie de autobiografia misturada com auto-ajuda misturada com catarse, é um soco no estômago. Falarei dele quando a altura chegar, mas revelo apenas que, após momentos muito difíceis na vida desta mãe, o filho - de sete anos - foi diagnosticado com um cancro. 

Do outro lado do Atlântico, uma enfermeira, mãe de um filho pequeno que perdeu a luta contra o cancro, escreve-me com dúvidas de alma. E o cancro com que foi - ela própria - diagnosticado agora? É uma consequência de um luto mal feito? Qual o impacto do cancro infantil nas pessoas, nas relações, na maneira de olhar o mundo? Que sentido dá ela à vida? O que pode ela fazer com aquele sofrimento? 

Não conheço pessoalmente as pessoas sobre as quais escrevi mesmo agora mas, quando as encontrar, seremos amigos de sempre que se abraçam comovidamente. O que liga as pessoas são estas fragilidades, esta confiança num outro que não conhecemos mas com o qual partilhamos dúvidas, esperanças, lágrimas que não nos envergonham. Há uma comunidade virtual que se forma, mais forte do que muitas comunidades físicas. Somos todos sócios de um mesmo clube cuja password é o seu filho pequeno tem cancro. E somos sócios de um mesmo clube onde queremos fazer qualquer coisa, seja pela mais pura abnegação, seja porque não somos nada, apenas farrapos, se não nos agarrarmos a estas causas, às dúvidas do outro, às ansiedades do outro, às nossas próprias dúvidas e ansiedades.

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Nasceste hoje, mas há 28 anos. O teu nascimento abriu as portas de um mundo que não sabíamos que existia, mas que nos transformou. Não somos os mesmos, não seremos os mesmos.

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram

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