As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
20 julho 2022
Vai um gin do Peter’s ?
COVID CHEGOU AO FADO
Depois de os dramas e tragédias terem inspirado fados famosos, Amália cometeu a proeza de trazer Camões, Pessoa, Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, O’Neill, José Régio para o canto mais popular do país, dando-lhe maior intensidade e sofisticação. Claro que a sua voz única e a sua gravitas transbordante de arte tornaram possível a transposição da boa poesia para a música. Alain Oulman assumiu o desafio musical, desencantando uma toada fresca para cada peça, em jeito de balada a que Amália sabia dar um cunho fadista. Embora as obras nascessem ao piano, eram depois sustentadas pelo ritmo ágil das cordas do trio guitarra, viola e baixo. Uma das junções antológicas dá vida ao poema de O’Neill – «Gaivota»:
Dizia Amália que só cantava o que percebia, elegendo letras que corressem como água, para as sentir. Queria jogar-se por inteiro em cada nota, projectando na música as suas inquietações interiores. E o fado resultava no melhor veículo para expressar a sua alma melancólica e insaciável. A dupla Amália e Oulman deram som ao poema «Fado Português» de José Régio, cuja lírica mergulha naquela nebulosa onde lágrimas, despedidas, arte e morte se entrelaçam para tecer a trama de uma existência muito cantada e chorada, sob um fundo de céu e mar, à portuguesa. Adivinha-se por que o fado se entranhou em Amália, convertendo-se na sonoridade da sua ‘forma de vida’:
«FADO PORTUGUÊS
O Fado nasceu um dia
Quando o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava
Na amurada dum veleiro
No peito de um marinheiro
Que estando triste cantava
Que estando triste cantava
Ai que lindeza tamanha
Meu chão, meu monte, meu vale
De folhas flores frutas de oiro
Vê se vês terras de Espanha
Areias de Portugal
Olhar ceguinho de choro
Na boca de um marinheiro
Do frágil barco veleiro
Morrendo a canção magoada
Diz o pungir dos desejos
Do lábio a queimar de beijos
Que beija o ar e mais nada
Que beija o ar e mais nada
Mãe adeus, adeus Maria
Guarda bem no teu sentido
Que aqui te faço uma jura
Que ou te levo à sacristia
Ou foi Deus que foi servido
Dar-me no mar sepultura
Ora eis que embora outro dia
Quando o vento nem bulia
E o céu o mar prolongava
À proa de outro veleiro
Velava outro marinheiro
Que estando triste cantava
Que estando triste cantava
Ai que lindeza tamanha
Meu chão, meu monte, meu vale
De folhas flores frutas de oiro
Vê se vês terras de Espanha
Areias de Portugal
Olhar ceguinho de choro
Mais recentemente, o grande imitador de vozes, que é Canto e Castro, trouxe a comédia para o fado, observando o curso da história a partir de um saudável distanciamento humorístico. Inscrever-se-á mais na tradição do fado de Coimbra, com ecos trovadorescos, fazendo de tudo versos e árias para colorir os momentos marcantes do dia-a-dia. Através das muitas vozes de que Canto e Castro é capaz flui o «fado do recuperado» covid, como se fosse declamado por figuras conhecidas e inconfundíveis nos seus jeitos e trejeitos. Desfilam José Hermano Saraiva, António Costa, Cavaco Silva, D.Duarte, Alberto João Jardim e, por fim, Marcelo para o acorde final perlim-pim-pim:
Sobre a covid19 teve Herman uma das suas deixas divertidas e saudavelmente desmistificadoras: não se queixava de nenhum sintoma esquisito e achava-se completamente a salvo nos seus domínios de Azeitão, na boa companhia da mãe. Só se queixava por o palerma do vírus lhe ter atacado a roupa, encolhendo-a. Disse-o ao Alberto Gonçalves, em pleno primeiro confinamento, na Grande Entrevista de 21 de Maio de 2020.
Felizmente, o fado espraiou-se também por várias das paragens onde chegaram os Portugueses, ecoando no Hemisfério Sul, por exemplo, na elite dos músicos brasileiros, provando quanto a arte desconhece fronteiras. Como não lembrar Maria Bethania a interpretar letra de Roque Augusto Ferreira («Por quem tu de consomes, coração?»), Chico Buarque no seu Fado Tropical (com a sua típica carga política) ou o duo de Carminho e Caetano Veloso?
Se com Canto e Castro nos divertimos e surpreendemos a recordar os gestos, tiques e toadas dos vários protagonistas, com a arte de Amália e do dueto que junta Portugal com o Brasil só ocorre pedir SILÊNCIO, QUE SE VAI CANTAR O FADO!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
2 comentários:
Bom. Claro que sempre haverá quem não goste.
Cumps
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