As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
06 julho 2022
Vai um gin do Peter’s ?
A VIDA PARA JEAN D’ORMESSON
Na pagela distribuída na Missa de Corpo Presente de um grande amigo, que entrou na eternidade, na noite de Domingo, cita-se o texto que o escritor francês da Academia Francesa – Jean d’Ormesson (1925-2017) – dedicou à vida e à importância de todos os que cruzam o nosso caminho.
D’Ormesson tinha a raridade de mostrar um optimismo invulgar nas elites do Velho Continente, recomendando a esperança, achando possível ser feliz, confiando que até o sofrimento teria algum sentido, cultivando um humor soft, em geral, limpo de sarcasmos e sendo maximamente agradecido à vida. São frases suas:
- «Ce qui éclaire l’existence, c’est l’esperance»;
- «Un hosanna sans fin. Disons les choses avec simplicité, avec une espèce de naïvet: il me semble impossible que l'ordre de l'univers plongé dans le temps, avec ses lois et sa rigueur, soit le fruit du hasard. Du coup, le mal et la souffrance prennent un sens - inconnu de nous, bien sûr, mais, malgré tout, un sens»;
- «Je crois en Dieu parce que le jour se lève tous les matins, parce qu'il y a une histoire et parce que je me fais une idée de Dieu dont je me demande d'où elle pourrait bien venir s'il n'y avait pas de Dieu.»
A metáfora de d’Ormesson sobre uma existência muito preenchida por família e amigos, fez boa companhia ao meu amigo, que geriu com fé cristalina e enorme coragem o cerco de um cancro feroz. Deixou-nos com a mesma tranquilidade de um outro amigo – o Pe. António Vaz Pinto, SJ –, que encarava a morte sem receio, embora gostasse de viver: «Sempre tive uma óptima relação com a morte. A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que vou morrer amanhã, não me afecta nada. Não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa».
Na pagela vem a tradução em português, aqui postada ao lado do original de Jean d’Ormesson:
Numa das suas entrevistas antológicas, já com bastante idade, d’Ormesson confirmou por que foi alcunhado de ‘embaixador da alegria’:
Na sua longa vida de 92 anos, o escritor não foi poupado a tempos conturbados. Numa breve amostra: na sua juventude, França esteve ocupada pelos nazis e Paris à mercê das cruéis SS. Seguiu-se a guerra na Argélia e um processo de descolonização violento. Em plena Guerra Fria, já perdida a Indochina (ex-colónia francesa) e com o Vietname a ferro e fogo, as avenidas de Paris encheram-se de uma multidão de estudantes a gritar palavras de ordem, ao mesmo tempo que atirava pedras à polícia, espatifava montras e deixava um rasto de destruição à sua passagem. Corria o mês de Maio de 68 e o mundo presenciava o luxo dos que podiam rebelar-se com a fogosidade própria da juventude. No lado da Cortina de Ferro, os estudantes checos (que apenas pediam alguma liberdade e nada partiram) eram esmagados pelas lagartas dos tanques russos e Álvaro Cunhal ia num deles, o que lhe valeu ser condecorado pelo presidente soviético Brejnev. Na cidade de Praga, aquela Primavera de 1968 soube a Inverno e a inferno. Os anos 70, ficaram marcados pelo choque petrolífero e alguma regressão económica no Ocidente, enquanto perduravam regimes totalitários na China, no Vietname, na Coreia do Norte, surgia o do Cambodja, etc. No final dos anos 80, viveu-se uma fase de alívio iniciada após a Queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS – a maior prisão que o mundo conheceu. Já o século XXI, foi inaugurado com o ataque às Torres Gémeas e uma onda de terrorismo temível. Entretanto, as guerras regionais continuavam a pulular em vários pontos do globo, incluindo na Europa (depois da ex-Jugoslávia, nos anos 90, veio a invasão de parte da Geórgia por Putin, em 2008 e a Crimeia, em 2014). Mesmo assim, para lá de todas as tribulações (e este elenco é simbólico), d’Ormesson quis ser feliz, dia após dia. Somou, assim, ao talento literário a grande arte de tomar a realidade pelo ângulo mais positivo e interessante. Daí o olhar sorridente e aberto, que sempre o acompanhou e lhe permitiu descobrir o melhor de cada momento.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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