No seu ensaio Nautilus (1975, parece-me, e já citado neste estabelecimento) Roland Barthes afirma:
"O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. Ora, todos os barcos de Júlio Verne são, realmente, perfeitos ambientes de aconchego, e a grandeza de seu périplo aumenta ainda mais a felicidade de sua clausura, a perfeição de sua humanidade interior. Sob este aspecto, o Nautilus é a caverna adorável: o prazer da clausura atinge o seu paroxismo quando, no seio dessa interioridade sem fissuras, é possível ver através de uma imensa vidraça o vago exterior das águas e assim definir assim num mesmo gesto o interior pelo seu contrário."
Por seu lado, na sua História do Fado, Pinto de Carvalho refere a “(...) teoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da mímica como expressão dos afectos e movimentos físicos, diz que a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta.”
Só aparentemente há dissociação entre estas duas citações. E a ligação entre ambas é tão forte que consigo ainda juntar-lhe um outro vector sem que nada se perca: o apreço pelo frio como revelador de uma insegurança. Raciocinemos:
É muito pouco provável que o gosto pelo frio ou pelo calor esteja na ordem do conforto corporal mais físico. Isto é - ainda que não possamos afirmar, categoricamente (e cito), que "o frio é um estado de espírito" - podemos dizer que, tomadas as devidas precauções de roupa em quantidade qb, o que define se gostamos de temperaturas elevadas ou baixas é o nosso interior mais profundo, não uma infinidade de sensores à flor da pele que enviam sinais para o cérebro.
O frio, tal como a música triste, é centrípeta. O frio convida ao recolhimento, ao gorro, à gola levantada do sobretudo, à proximidade com a lareira, ao aconchego de uma manta. O calor, pelo contrário, é centrífugo: convida às janelas abertas, aos grandes espaços, às bebidas alegres, aos sorrisos rasgados, aos movimentos amplos. Assim, o gosto pelo frio (e podemos aqui acrescentar o tempo outonal, o nevoeiro, o encurtar dos dias) revela, não uma resistência à intempérie ou uma mentalidade depressiva, mas um movimento de recolhimento. Gostar do frio é gostar do conforto da casa com tudo o que isso representa. Talvez gostar do frio não seja então um simples prazer - como ouvir música ou cozinhar ou conviver com amigos - mas também uma fragilidade, uma necessidade. E se entendermos que o movimento centrípeto da existência humana é a tal "felicidade da clausura", podemos então afirmar que o frio é uma espécie de Nautilus. Gostar do frio é ter a necessidade do "perfeito ambiente do aconchego." E nesse sentido, a nossa apetência pelas temperaturas altas ou baixas é reveladora, apenas, de uma aparente (in)segurança.
Gostar do frio (ou do nevoeiro, ou do cair da folha) ou de calor não revelam apenas resistências físicas, mentalidades depressivas ou alegres. O gosto pelas temperaturas altas ou baixas diz-nos muito mais das pessoas do que se pensa. Não ficamos tristes porque gostamos do frio nem gostamos do frio porque somos tristes. Não há aqui gosto, como quem se atira a um pop ou a uma milonga, mas necessidade. "Apreciar" o frio e, nesse sentido, a dor centrípeta é, tão só, uma metáfora para a procura de uma segurança.
JdB
* publicado originalmente a 8 de Outubro de 2015, talvez não estivessem 30ºC...
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