28 novembro 2023

Um dia um homem também chora *

A tua guerra, essa luta que travas contra mim, contra todos a quem chamas oponentes, é só tua. Começou, eras menino. Houve uns olhos que te olharam e a denunciaram, um coração em desespero que a partilhou contigo, uma boca que não conseguiu calar a voz amargurada da angústia. Há muitos homens em combate como tu. Que arremessam pedras, disparam tiros e põem bombas durante uma vida inteira. Cegos de raiva. Em toda a esquina topam o inimigo, em cada alma auguram o traidor. Carregam desde meninos a dor de alguém que amaram e que os amou, devolvem-na ao mundo, espalham-na à sua volta, sem nunca duvidarem do que sentem. Erguem o indicador sobre quem estiver à mão, em pequena ou grande falha, ignorando que nesse gesto outros quatro dedos apontam, na sua própria direcção. Não reparam, ocupados que estão na sua douta opinião. “Estarei equivocado?”, é questão que não reclama naquelas mentes. As guerras vêem de longe, sim. Destroem o teu mais intenso amor, a tua paz, a fraternidade que tantas vezes apregoas. Há muito, muito tempo, eras tu tão pequenino, e foi profundamente injusto, insano, inconsequente.

Homens, procurem a origem do vosso inferno. Persigam a razão da vossa guerra. Revejam, tim-tim por tim-tim, o que assistísteis quando meninos. De que misérias fostes vós testemunhas caladas entre os jogos de bola, o caminho da escola, os fins de tarde, as manhãs de sábado, os passeios de domingo, a ida à missa? No vosso quarto, à mesa de jantar, no silêncio aterrador da madrugada? Do que sentistéis, talvez não tereis lembrança. Ou surgirão vagas recordações de uma criança simplesmente amedrontada. Mas ficai certos: dentro de vós, como num papiro milenar, se guardam tais vivências descritas ao milímetro. Têm a forma de terríveis consequências e poder sobre a vossa condição. Desabrocham como ervas daninhas entre as vossas opiniões, acções, reflexões. Toldam o timbre das vozes e manipulam os gestos mais naturais. Homens, não se detenham. Procurai a origem do vosso inferno, a razão de toda a guerra, e voai, sem medo.

DaLheGas

* publicado originalmente a 18 de Julho de 2009

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue