08 abril 2009

"Aprendo a rezar com os pés"

Caminham em filas ao lado das estradas nacionais, por trilhos de terra batida, atravessando pequenos povoados que antes desconheciam, cruzando horas e horas a paisagem de giestas e silêncio. Têm em português um nome que deriva de uma forma latina: Per ager, que significa “através dos campos”; ou Per eger, “para lá das fronteiras”. Definem-se, assim, por uma extraterritorialidade simbólica que os faz, momentaneamente, viver sem cidade e sem morada. Experimentam uma espécie de nomadismo: não se demoram em parte alguma, comem ao sabor da própria jornada, dormem aqui e ali. Num tempo ferozmente cioso da produção e do consumo, eles são um elogio da frugalidade e do dom. Relativizam a prisão de comodismos, necessidades, fatalismos e desculpas. E o seu coração abre-se à revelação de um sentido maior.

A verdade é que é difícil ter uma vida interior de qualidade, se nem vida se tem, no atropelo de um quotidiano que devora tudo. Na saturação das imagens que nos são impostas, vamos perdendo a capacidade de ver. No excesso de informação e de palavra, esquecemos a arte de ouvir e comunicar vida. Damos por nós, e há, à nossa volta, um deserto sem resposta que cresce. E quando nos voltamos para Deus, parece que não sabemos rezar.

Estes peregrinos que tornam a encher as estradas de Fátima (mas também de Santiago, de Chartres, do Loreto…) assinalam-nos o dever de buscar a estrada luminosa da própria vida. Já não separam a existência por gavetas estanques, mas o seu corpo e a sua alma respiram em uníssono. A oração torna-se natural como uma conversa, e as conversas enchem-se de profundidade, de atenção, de sorrisos. A parte mais importante dos quilómetros que percorrem não está em nenhum mapa: eles caminham para um centro invisível onde pode acontecer o encontro e o renascimento.

Queria dedicar este texto a um amigo que, neste mês de Maio, fez a sua primeira peregrinação. A meio do caminho enviou-me uma mensagem a dizer: «Aprendo a rezar com os pés».

***

Há cerca de um ano, o Padre José Tolentino Mendonça escrevia este texto lindíssimo, que alguém teve a amabilidade de me enviar. Socorro-me dele para partilhar com os meus queridos e pacientes leitores uma informação de somenos importância: parto hoje, através dos campos, em direcção a Santiago de Compostela. Aceitei o desafio de uma amiga.

Serão poucos dias, apenas, mas que espero me dêem alguma tranquilidade, ânimo de espírito, focagem naquilo que é verdadeiramente importante. Será um tempo de recolhimento e introspecção, de gozo de um silêncio repousante, mas desafiador. Gostaria de poder dizer que levo aqueles que precisam no meu pensamento e nas minhas orações, mas sabe Deus se me conseguirei lembrar de todos, resistindo à tentação de me pôr em primeiro lugar.

Em espírito, e num canto especial, vão comigo dois miúdos, filhos de dois casais de quem sou amigo: o SA, que engrossou, este ano, a lista das crianças da Acreditar, e o DS, de dois anos, que, no dia em que escrevo, ainda trava uma batalha árdua com uma doença traiçoeira.

Para todos os que me lêem, os votos de um Boa Páscoa. E agora sim, com alguma propriedade, Adeus, até ao meu regresso...

JdB

PS: tal como já tinha sido anunciado, o saudoso ATM estará ainda ausente esta semana. De hoje a oito dias senta-se de novo no Largo da Boa-Hora, derramando o seu olhar perscrutante sobre o mundo que o rodeia.

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa caminhada e santa Páscoa, caro amigo!
fq

cris disse...

JdB,
Já tinha ouvido e lido expressões muito bonitas, de como rezar, mas esta dos Peregrinos, é uma imagem divina, REZAR COM OS PÉS.
Veio-me logo ao pensamento, Cristo com aqueles pregos nos pés, pendurado numa Cruz com dores atrozes e a perdoar dizendo "PAI, PERDOA-LHES, POIS NÃO SABEM O QUE FAZEM"
Santa Páscoa para si e para os seus, e em especial, uma palavra de Fé e Carinho, para os filhos desses seus amigos.
Volte com uma grande Paz interior e vontade de nos dar grandes textos para reflectirmos.
Até sempre

arit netoj disse...

Desejo-lhe uma Santa Páscoa. Cá ao longe chega-me uma Paz daquelas que só Deus dá. Acredito nalguma responsabilidade sua, fico mais descansada por saber que leva essas duas crianças enquanto reza com os pés...
Força e não desista dessa Fé.
Beijinhos

ana v. disse...

Boa caminhada, João.
E uma boa Páscoa no regresso.

Acerca de mim

Arquivo do blogue