Em Maroñas, uma pequena localidade desinteressante no mapa da Galiza, parei no café Vitoriano, um estabelecimento sem brilho nem graça, mas onde param muitos peregrinos que percorrem aquele caminho. É o único café num raio grande, e está assinalado nos roteiros que muitos levam na mão. Ali conheci dois alemães que tinham começado a sua caminhada em Sevilha, a 934 km. Como tivessem chegado a Santiago mais cedo do que o previsto, entenderam atirar-se a Fisterra, juntando mais 90 km ao seu palmarés. Nesse mesmo dia, mas em Oliveiroa, num café com uma opacidade semelhante e desprovido dos alimentos mais básicos, cruzei-me com uma jovem alemã que, desde Pamplona, a 693 km, marchava sozinha.
Cada um dos que percorre as dezenas de caminhos que vão dar a Santiago – ou de lá partem – tem uma motivação própria: o exercício puro, a vontade de conhecer novas paragens, uma experiência diferente, uma jornada interior, uma devoção ao santo, um desafio à sua própria resistência. Dizer que sei pouco dos Caminhos de Santiago é um overstatement, porque, de facto, não sei praticamente nada. A minha percepção – e vale o que vale – é que a componente religiosa destas caminhadas é reduzida. Não se vai a Santiago como se vai a Fátima – independentemente da posição hierárquica celeste de ambos os objectos de devoção.
Não obstante as motivações diferentes de cada um, há uma espécie de fraternidade que nos une. Os peregrinos cumprimentam-se pelo caminho; os habitantes das localidades acenam e desejam boa viagem; os automobilistas param para nos corrigir uma rota porque falhámos uma indicação 500 metros atrás. Há, em tudo isto, um fio condutor que nos liga, como se fossemos todos necessários para manter uma tradição que nasceu e morrerá independentemente da nossa passagem por esta vida.
O caminho que escolhemos, por questões logísticas que se prendiam com tradições familiares de Domingo de Páscoa, fez-nos voltar as costas a Santiago e olhar para Fisterra, a quase 90 km. Não chegaríamos lá, porque seríamos obrigados a fazer dois troços directos de cerca de 30 km, uma distância relativamente dura para quem caminha, sem grande treino, com uma mochila às costas. Quedámo-nos pelos 55 km em três dias de marcha.
Entre o ponto de partida e o ponto de chegada a paisagem é variada. Atravessamos eucaliptais onde o cheiro da terra molhada se nos entranha pelos poros; cruzamos estradas e caminhamos ao lado do alcatrão; passamos por localidades pobres, tristes, sujas; palmilhamos horas com a visão ampla de campos vastos, ondulações suaves de terreno, prados verdes onde apetece descansar o corpo e a mente.
Muitas vezes caminhei sozinho, muitas vezes o fiz acompanhado. Mas, mesmo naqueles longos momentos em que comigo ia apenas a minha sombra – que me precedia ou perseguia de acordo com a hora do dia – nunca peregrinei isolado. Comigo seguiram sempre as lembranças do passado, as convicções do presente, os projectos do futuro; seguiram as dúvidas e os desaires, as alegrias e os encantos; seguiram, ainda, todos aqueles que, cá e lá, me acompanham e inspiram nas escolhas.
Ainda que durante horas me tenha entregue a um silêncio quase absoluto e à introspecção, nunca experimentei a tristeza da solidão, porque a verdadeira solidão das pessoas está, tantas vezes, no meio das multidões estranhas. O bem-estar connosco próprio é um privilégio, porque nos oferece um espaço de sossego e de conforto, não torna dissonante o diálogo interior que mantemos entre nós e nós. Nem sempre o consigo, mas ali, naqueles três dias, fui bafejado pela sorte.
Gostava de sentir que rezei por toda a gente, talvez para que toda a gente também reze por mim: por aqueles cujo nome verbalizei, mas, também, pelos outros que, por falha minha, atravessam o meu pensamento a correr. Pedi por aquilo que me alimenta genuinamente a alma, e pedi para não ser tentado pelo repentismo, pela facilidade, pelo entusiasmo das coisas efémeras, ilusões instantâneas, estímulos com prazo de validade mais do que curto. Mesmo não tendo reconhecido formalmente, estou certo de que quem me ouve sabe onde tenho ainda muito caminho a fazer.
Todos os peregrinos de Santiago se vão encontrando nos cafés, nos trilhos entre árvores, nos descampados, à chegada e à partida dos albergues. Entusiasmados, cheios de força, mas, também, desanimados, vencidos pelo cansaço e pelas dores. De todos sai um desejo sincero:
Buen camiño.
JdB
PS: fica uma nota de agradecimento aos meus parceiros de peregrinação pela companhia, pela conversa, pelo respeito que sempre tiveram pelos meus silêncios e isolamentos.
4 comentários:
JdB, esta sua caminhada fez ressonância na minha alma andarilha...
Um dia espero percorrer parte desses Caminhos de Santiago.
Ana
JdB, tão bem o percebo nessa descrição de peregrino. Também eu, todos os anos, visto o meu vestidinho de peregrina e caminho até Fátima (cerca de 70 kms em 3 gloriosos dias) numa experiência fascinante, uma espécie de salada mista onde se mesclam bolhas com orações, dores musculares com cânticos, dúvidas (que faço eu aqui ?) com entrega, lágrimas com sorrisos .... E a emoção da chegada ? A beleza de quem se entrega? Aquela massa humana (somos 500 !) viva, colorida que, durante 3 dias, se movimenta, desloca, alimenta, como se de um só se tratasse. O ser humano no seu melhor !
Obrigada pela desinstalação e por me "bafejar" com a sua sorte.
Já me levou numa caminhada interior e ao entusiasmo por arriscar outra partida.
Fico a ansiar peregrinar...
Beijinhos agradecidos pelo bem estar que me inspirou.
as suas fotografias estão muito bonitas: o enquadramento está perfeito e a luz muito bem conseguida. Sobretudo o caminho por entre as árvores e o magnífico céu da 2ª fotografia. Já pensou em dedicar-se à fotografia, JdB?
pcp
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