Diário de Amália, dia de Santa Luzia, orago dos cegos
O senhor Roberto é cego desde os dez anos. Uma doença galopante e injusta, como são todas as que atacam as crianças, tirou-lhe a vista quando os seus olhos ainda deambulavam pelo Tintim, pelo Asterix e por outros heróis da banda desenhada. Fez estudos básicos e é um homem com limitações óbvias – financeiras e de dia-a-dia – mas que não pede esmola. Quer manter o seu orgulho e a sua dignidade. A Dra. Clara cruzou-se com a sua existência em circunstâncias que não vêm ao caso e ajuda-o da forma possível, dando roupas usadas mas em bom estado, algum apoio financeiro, géneros alimentares de primeira necessidade, companhia sempre que possível.
O senhor Roberto é cego desde os dez anos. Uma doença galopante e injusta, como são todas as que atacam as crianças, tirou-lhe a vista quando os seus olhos ainda deambulavam pelo Tintim, pelo Asterix e por outros heróis da banda desenhada. Fez estudos básicos e é um homem com limitações óbvias – financeiras e de dia-a-dia – mas que não pede esmola. Quer manter o seu orgulho e a sua dignidade. A Dra. Clara cruzou-se com a sua existência em circunstâncias que não vêm ao caso e ajuda-o da forma possível, dando roupas usadas mas em bom estado, algum apoio financeiro, géneros alimentares de primeira necessidade, companhia sempre que possível.
O senhor Roberto veio hoje a esta Fábrica da Ilusão - presumivelmente por gentileza da Dra. Clara - e vi-o pela primeira vez. É um homem de estatura média, sempre de óculos escuros, com um cabelo muito grisalho penteado para trás. Tem um sorriso simpático em permanência, umas mãos que se intui terem uma visão própria e roda a cabeça numa procura constante de sons que lhe permitam identificar o que se passa. Mantém uma conversa fácil e fluída, que não gera sentimentos pequenos de caridadezinha. Vinha acompanhado pelo Marco, um rapaz sossegado, muito silencioso, com uma presença quase invisível. É ele que o guia pelas ruas da cidade, no supermercado, nas repartições de Finanças, nas idas ao rio para apanhar sol.
A Dra. Clara veio recebê-lo á entrada e fizeram festa um ao outro, como se fossem amigos de longa data e não se vissem há um ror de anos. Sentaram-se, beberam um chá preto perfumado com bergamota e debicaram umas bolachas entremeadas por conversa de circunstância: a carestia da vida, a corrupção dos políticos, as noites frias, o futebol que vive momentos de desencanto. A patroa não hesitou no nome que me disse:
- Cármen.
A Cármen é uma espanhola de Sevilha com uma experiência substancial no bailado local. Não é particularmente bonita, mas tem raça, como só as espanholas sabem ter: um cabelo comprido negro, muito negro, uns olhos escuros que fascinam e atemorizam, umas coxas fortes sem serem porcinas, duas mãos que se contorcem no limite do impossível. Quando foi chamada à recepção, percebeu imediatamente que não iria dançar ao som da guitarra, não iria agitar folhos coloridos, não gemeria ao compasso da música. Esperava-se que usasse as mãos em benefício do próximo. O senhor Roberto não vê quem o acompanha e não tem, por isso, estímulo visual. Mas umas mãos que percorrem um corpo e que intervalam suavidade, vigor, carícia, estímulo, deixam-lhe recordações e podem levá-lo ao céu da satisfação.
A sevilhana deu-lhe um simpático buenos dias, señor Roberto, qué tal? e, depois de lhe apertar ambas as mãos, seguiu directa para o quarto. Marco, o cavalheiro invisual e a Dra. Clara terminaram o seu chá de fim de tarde, rindo-se com uma ligeireza genuína apesar do aquecimento global, da crise internacional, do valor das taxas de juro, das empresas que fecham com uma regularidade de serial killer.
Distraí-me na minha vida, recebendo mais clientes, encaminhando-os para as operárias, indagando da satisfação de cada um, inquirindo dos negócios, do sobrinho que anda na droga, da mãe que está entrevada, das férias nas praias da moda… Quando dei por mim tinha passado uma hora, e o cliente Roberto Catarino, cego desde os dez anos, com uma lembrança decrescente do Cavaleiro Andante e do Corto Maltese estava na minha frente, com o mesmo sorriso franco, os mesmos óculos escuros, as mesmas mãos sobredotadas, o mesmo Marco quase invisível.
- Adeus D. Amália. Sou cego e, com o Paco de Lucia a tocar magicamente durante uma hora, distraí-me. Talvez tenha mesmo passado pelas brasas, não sei. Mas estou certo de que o Marco gostou muito. Ele fala pouco, sabe, mas há coisas que nós cegos, sentimos. Os meus cumprimentos à Dra. Clara, e diga-lhe que qualquer dia passo por cá sozinho. Talvez peça a companhia da Cármen, para perceber o que encantou o rapaz.
Cumpriu-se mais um dia. Olé!
MTS
2 comentários:
e eu a pensar o tempo todo: será que o rapaz vai acompanhar o cego dentro do quarto ? mesmo sendo cego, deve ser muito inibidor :-)
E eis que MTS me troca as voltas, rsrsrs. Afinal quem acompanha quem dentro do quarto ....:-). MTS, a sua imaginação é genial.
MTS,
Brilhate novamente, que bons momentos de leitura.
Obrigado. Até para a semana.
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