13 abril 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, 2ª feira de Pascoela, mas dia, também, de uma qualquer libertação.

Abílio Rente entrou na Fábrica da Ilusão pelo fim da tarde. É um homem magro, alto, que mais parece um ramo de salgueiro que se partirá à menor ventania. Tem umas olheiras fundas e um cabelo grisalho muito ralo, penteado para o lado. Aparenta ter 60 anos, mas talvez ande no meio dos 50, embora estragados. Quando conversou um pouco comigo, e me disse apenas

- haverá alguma rapariga com 22 anos, morena e magra?

senti que o seu olhar se perturbava com a minha cicatriz e com a minha perna coxa, quase como se a realidade lhe fosse algo difícil de suportar – uma luz demasiado intensa, um frio desagradável, um calor de derreter. Ou talvez, e apenas, um desajuste imperceptível com o mundo em seu redor.

A Dra. Clara foi chamada a pronunciar-se e recomendou a Laura, uma minhota que, aos 22 anos, vai a meio de um curso de enfermagem ao qual se entrega como quem presta um serviço humanitário por vocação. É uma rapariga dócil, simpática, atenciosa, e que agradaria seguramente ao senhor Rente – para além de estar coerente com os seus pedidos. O cliente agradeceu, perguntou se era para pagar antes e baixou os olhos, como quem não quer enfrentar algumas pessoas, ou como quem tem medo de ver a vida de frente.

O par seguiu para o quarto, onde, durante a hora seguinte, se entregaria ao prazer, à sensualidade, à exploração dos corpos. Talvez mesmo ao carinho, à atenção e à companhia, afectos cuja raridade prejudica tanta gente.

Abílio Rente despiu-se revelando algum pudor e, estranhamente, algum incómodo pela nudez simples, descomplexada e levemente clara da Laura, fixando os seus olhos com mais intensidade numa borboleta tatuada onde ele suporia a cicatriz de uma qualquer apendicite.

Foi sempre com algum embaraço que, deitado na cama e com um lençol por cima, se foi confrontando com o corpo da rapariga - uns seios pequenos e levemente levantados, umas nádegas bem feitas e descaídas ao limite da estética, umas pernas magras mas elegantes, um ventre liso e sem vestígios de gorduras.

Laura foi, como sempre, carinhosa, disponível, amável.

- O que lhe apetece, senhor Rente? Ainda está em boa forma física! Gosto muito que me acaricie. Prefere a luz acesa?

O senhor Abílio Rente, um homem que estará na recta final dos 50, com olheiras fundas e cabelo grisalho ralo, fez amor com ela usando o cuidado de quem toca um cristal finíssimo, evidenciando a suavidade com que um alfaiate profissional e competente ajeita uma peca de tecido que cortará ao jeito do cliente, revelando a prudência de um explorador que se aventura, cauteloso, por terras que lhe são estranhas.

No fim murmurou-lhe um pedido

- abraça-me

naquele tom de voz que revela desejo, mas pouco à-vontade devido a desabituação, e chorou como uma criança, ou talvez como uma barragem que rebenta por não aguentar mais a pressão a montante.

Levantou-se e vestiu-se, enquanto Laura, na cama, fumava um cigarro, surpreendida com o choro súbito, vagamente apreensiva com um exame na semana seguinte. Afastou os lençóis para que Abílio Rente a mirasse de novo, sem que naquele olhar houvesse uma luxúria para além do saudável, mas apenas um motivo para dizer a frase:

- És linda, Laura! Linda.

Depois, em pé, pronto para sair, virou-se para trás e disse:

- Saí a semana passada da cadeia onde cumpri uma pena de quase 25 anos pela morte de duas raparigas, morenas, altas e com 22 anos. Foi um impulso, uma raiva, sei lá o quê. Consideraram que já não seria um perigo para a sociedade, mas tinha que ser eu, acima de tudo, a perceber a minha cura, a estar certo de que sou inofensivo. Tu foste a prova. Parto amanha para a Líbia para trabalhar na construção civil, pelo que foi a última vez que nos vimos. Obrigado por tudo.

O ex-presidiário não teve tempo – ou talvez não tenha querido ter a oportunidade - de perceber o olhar angustiado de Laura, a estudante que terá de saber perfurar uma veia com uma agulha, ou estender com mestria os instrumentos a um cirurgião.

Quando passou por mim na recepção, Abílio Rente revelou um olhar diferente para as minhas deficiências, como se a realidade fosse algo a que se começasse a habituar. É possível que eu tenha vislumbrado um sorriso, não sei. Se calhar apenas o esboço, um ensaio, uma preparação. É segunda-feira de Pascoela, e talvez se note um perfume de redenção pelo ar.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

7 comentários:

Anónimo disse...

Apetece-me perguntar: rente a quê?

Joana Quinta disse...

Desculpe o atrevimento mas neste post não se terá enganado e escreveu Amália em vez de Laura...ou fui eu que não entendi bem?
Cumprimentos
JQ

cris disse...

MTS,

Noto de semana para semana, que as crónicas são mais curtas....
Apetece ler sempre mais um bocado.
A sua observação das pessoas, é notável, pois todas as semanas arranja um perfil de personagens brilhante.
Atè para a semana.
Obrigada

cris disse...

MTS,

È verdade. Há uma "gralha" no nome de quem está a fumar na cama, é Amalia e não Laura.
O texto é delicioso na mesma.

Anónimo disse...

Anónimo: rente ao chão?

MTS

Helena: agradeço a sua correcção. Quando o texto foi publicado havia dois erros. Corrigi um e o outro passou-me. Ainda bem que há leitoras atentas.

MTS

Cris: O compromisso entre a vontade de escrever e a dimensão certa para uma história deste tipo é, por vezes, difícil. Uns dias também será o cansaço ou a menor disponibilidade. Agradeço a sua "fidelização" a estas crónicas.

MTS

cris disse...

MTS,

Quando digo que as crónicas parecem curtas, é um elogio, pois compreendo o difícil que é escrever todas as semanas.
Agradeço o seu comentário pessoal.

maf disse...

Isto está cada vez melhor, de semana para semana ! Um toque de criminalidade num texto sobejamente sensual resulta uma combinação perfeita, MTS. Continuo fã incondicional da sua imaginação :-)
Quanto à (pretensa) troca de nomes, quem não entendeu, fui eu ! A Laura que está na cama a fumar, está muito bem ! Será que, à hora em que leio o texto (são 18:50), já o mesmo foi corrigido?

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