20 abril 2010

Balão

Vieram antes do tempo, os mosquitos peganhentos, ou então é a chuva, que se demorou demais e engana a gente. Entram pela janela, que já se vai deixando aberta, e tropeçam em tudo antes de chegar à luz do tecto. Consigo ouvi-los ralhar, bêbados com o cheiro a gente, embrulham-se neles próprios e nos cabelos dos corpos, numa aflição que me desperta mais o nojo que a compaixão. Enxotam-se com paciência, não incomodam tanto como o retesar involuntário dos músculos do pescoço, o esternocleidomastoideu e os seus primos direitos, que reclamam dias mais curtos e menos marrecos. Os livros vão-nos esticando as ideias quase na mesma medida com que nos vão encurvando as costas. Estou cansado.

A rua não tem ninguém. Parece que as pessoas se escondem da noite e, com a pressa, abandonam metade das coisas do dia. Juntam-se dentro das casas, onde há mais luz, como os mosquitos, e vão enjoando, tropeçando, bebendo e ralhando, até o sono os enxotar para a cama. Vejo um balão abandonado, preso ao mundo por um fio, e decido levá-lo comigo.

À espera do metro está um miúdo louco, com umas sapatilhas brilhantes e uma camisola pequena demais. Bate furiosamente com os pés, como que a espantar-se a si mesmo, e a mãe dele suspira, sentada mais abaixo, Guilherme, então?. O desconforto de ambos é evidente, não porque o comportamento do pequeno seja inoportuno ou incomodativo, afinal, a noite está praticamente vazia, mas porque uma qualquer mudança nas rotinas de ambos os trouxe até aqui. A caminho de casa.

O passeio cola debaixo das solas os restos de um jantar que se revoltou à saída do restaurante, faço um contra-ritmo com o chiar dos passos. Finjo que ninguém está a ver e aproveito para animar o serão das viúvas que dormitam tristezas atrás dos vidros, dou dois pulos e duas voltas ao candeeiro, pulo outra vez e bato os calcanhares. Contrariam-se com o mesmo fôlego a corcunda do dia e as mágoas de quem se refugia à janela. Toco à campainha.

Sabe bem ter quem nos espere, ou pelo menos quem nos faça acreditar que somos esperados. Seis ou sete lanços de escadas são seis ou sete saltos. Trago-te uma prenda, recebes-me com um sorriso e pegas no balão, que se estica em direcção à luz do tecto, para junto do único mosquito que deixaste entrar, É dos que sobem!

ZdT


3 comentários:

Anónimo disse...

Que bem escrito! Uma mistura do vocabulário do JdB (não é a primeira vez que lhe digo isto, pois não?) com a melancolia e ritmo do gi. A que acresce o magnífico poder descritivo, a sensibilidade e a imaginação do autor. Gostei imenso, ZdT. Obrigada. pcp

ZdT disse...

Eu é que agradeço pcp!

MAF disse...

lindissimo texto .... todo ele cheira a ternura, num misto de irreverência e poesia. :-)
MAF

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