A militância politica de Vitória tinha começado cedo, por alturas da instrução primária. Habituara-se a ver o pai, comunista convicto e militante, com um discurso entusiasmado, a bramar contra os fascistas, contra as injustiças, contra a falta de solidariedade - contra aquilo a que ele chamava a canalha. O combatente chegava a casa aos fins-de-semana depois de mais uma ocupação de terra, de uma campanha política numa fábrica de gestão capitalista selvagem, de uma campanha de alfabetização de populações que desconheciam como alinhar as letras para compor poemas sofridos.
Nos antípodas desta realidade estava Manuel Maria, filho de uma sociedade que identificava o mundo de Vitória porque numa contenda os oponentes sempre se reconhecem. Ainda que numa visão metafórica, os seus pais eram os donos das terras que o militante político ocupava, administravam as fábricas onde os operários eram supostamente explorados, tinha um tratamento respeitoso junto das populações que não sabiam redigir textos simples. Manuel Maria usava expressões como os Pais foram ou as férias na quinta. Incongruências linguísticas de uma gente que preservava acima de tudo a propriedade privada, mas que não usava pronomes possessivos na sua sintaxe própria.
Vitória e Manuel Maria descobriram-se mutuamente para satisfazer aquela frase desinteressante e vagamente verdadeira que afiança que os extremos se tocam. Cruzaram-se ambos na improbabilidade de amigos comuns, mas os seus olhos encontraram-se num instante certo, porque se tivesse havido um minuto de atraso – ou de avanço - a sua atenção teria focado outros aspectos do mundo em redor, e algo se perderia no encaixe possível de almas desconhecidas.
Uma semana depois, aquele que não tinha por hábito usar pronomes possessivos no seu fraseado, entrava em casa da filha do comunista militante cheio de uma curiosidade levemente enervada. Munido de uma discrição que era filha de uma educação cheia de regras, o seu olhar prendeu-se na profusão de biografias de Marx e Engels, nas visões elogiosas do comunismo mundial, nos relatos sofridos das vítimas das prepotências, nas encadernações diversas dos pensamentos de Mao ou de Ernesto Guevara. A música era conforme – porque na verdadeira militância política não pode haver aspectos discordantes, não se pode abrir uma brecha na solidez revolucionária que abra caminho à incoerência burguesa.
Sentaram-se e, ao fim de 10 minutos de uma conversa neutra – confortavelmente neutra – houve algo entre eles que levou os olhos a tocaram-se, as mãos a tocaram-se, as bocas a tocaram-se. Tudo se tocou num furor erótico que era fruto de um desejo irresistível, de uma atracção quase fatal. Quando deram por isso encaminhavam-se na direcção do quarto, impelido pela vontade de ambos.
Quando entraram no quarto, a boca de Manuel Maria encheu-se de espanto – era um quarto clássico, onde ardiam várias velas de cores diferentes e aromas diferentes. Numa aparelhagem estereofónica, Tony Bennett, o homem que se chamou Anthony Dominick Benedetto, cantava, na sua voz sensual
I left my heart / in San Francisco
enquanto ao lado da cama um tabuleiro com caviar, meio limão, dois copos e uma garrafa de champanhe – e não espumante – rematavam o cenário.
O sexo entre ambos (teria havido amor?) seria bom – clássico, arrojado, criativo, lento, brutal, acelerado, respeitador dos tempos alheios, preocupado por fetiches próprios.
Nas semanas seguintes as noites repetiram-se: em primeiro lugar os livros da esquerda revolucionária, do elogio do marxismo, dos amanhãs que cantam. Em seguida o sexo ao som de Tony Bennett, do caviar, das ostras, dos vinhos a condizer.
Um dia, Manuel Maria disse-lhe:
És muito contraditória, companheira! Não sei se consigo voltar cá mais...
Sabe qual é o seu problema, senhor doutor Manuel Maria?
Diz lá, camarada Vitória. Qual é?
É a tua relação com a minha incoerência. Sabes, no fundo, o que tu tens é inveja desta minha dupla faceta, da facilidade com que vivo com o Tony Bennett e a Brigada Victor Jara, com os tremoços e com o caviar. Inveja, é o que tu tens. E isso é um pecado, ou não?
JdB
4 comentários:
Concordo, João, que as pessoas capazes de conciliar opostos são invejáveis. Mas, cá para mim, o «pecado» do Manuel Maria não é inveja, é pavor. Se um homem que se me apresentasse guedelhudo e descomposto, de camisa de flanela à pescador e alpergatas, invocando Lenines e Fidéis, me revelasse uma «alcova» recamada de luxos asiáticos, a minha inicial (e natural) desconfiança cederia, imediatamente, à certeza de que a camisa de flanela e as alpergatas disfarçavam tendências inomináveis… ;-)
Outro magnífico pecado (o terceiro, não é?). Esbatido com as cores deliciosas das segundas-feiras ... que bem escreve, JdB. Eu, que sou pcp, identifico-me na perfeição com a camarada Vitória. Por que razão não há-de um filiado no pcp ter esta flexibilidade, esta riqueza de gostos e tendências? O Doutor Manuel Maria tem muito a ganhar com a convivência desta senhora .... pcp
Luísa: fez-me rir, sabe? Esta história de escrever sobre os pecados mortais tem uma razão de fundo na minha mente. Talvez, como em tantas coisas, só quem escreve é que percebe porque o faz e com que intuitos. Se chegar ao último alguma explicação há-de sair. Camisas de flanela e alpergatas...
PCP: Claro que a sua simpatia tinha de ir para a camarada Vitória. O Dr. Manuel Maria é muito sério, não é? Mas até nesta gente séria há algo que descarrila. Ela é o caviar e o Tony Bennett, ele talvez oiça Zeca Afonso ou a internacional com uma furtiva lágrima comovida...
É pecado sim senhor. Ele há pecados piores, mas é pecado.
(E o que eu me ri com o comentário da Luísa). :-)
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