22 abril 2010

Deixa-me rir...

Há músicas que acordam sensações físicas, quase tácteis. Foi o que Isabel sentiu ao sentar-se ao lado de Luís nessa noite fresca de Junho. Cadeiras gémeas, um computador e uma pequena janela a abrir para o casario e para os barcos num Tejo de breu. Um pequeno apartamento cheio de livros, cd’s e tapetes velhos. Tecto baixo e esconso, paredes com salitre e posters de filmes antigos. Cinzeiros cheios de beatas e um saco do lixo à porta.

Luís era DJ e tinha sido convidado para pôr música numa mega festa da sociedade lisboeta. Como para além da música era um entendido em engenhocas e electrónica, tinha pensado em projectar imagens ou vídeos que ilustrassem as canções seleccionadas. A festa era dada por um grupo de amigos que celebravam em conjunto os seus 55 anos, pelo que as escolhas tinham sido maioritariamente revivalistas, ritmadas, alegres, com alguns bons slows pelo meio. A festa teria lugar no Museu da Electricidade pelo que as enormes paredes brancas seriam o cenário perfeito para a projecção de slides e filmes sobre os aniversariantes e dos vídeos escolhidos.

Vem, dissera-lhe Luís, puxando-a alegremente por um braço, deixa-me mostrar-te os vídeos que seleccionei. Sentou-se ao lado dele, encostada a ele. Isabel adorava estes momentos em que as palavras partiam para parte incerta e só a música “falava”. Isabel gostava de ouvir o Luís “falar” através da “sua” música.

E assim se passaram trinta minutos de brincadeira, de risos e de uma cumplicidade construída ao longo de muitos meses. E no trigésimo primeiro minuto, algo aconteceu. Passava o vídeo do Tony Bennett entoando “For once in my life”. Isabel sentiu um arrepio percorre-la aos primeiros acordes da música. E toda a sua atenção se prendeu, instantaneamente, ao movimento da câmara avançando lentamente pela grande sala de espectáculos, aos acordes da orquestra e à voz aveludada do TB. De repente, sem mais nem porquê, sentiu que um imenso véu, setim puro, a envolvia numa súbita onda de frescura e bem-estar. Parecia-lhe que um imenso tecido, sem peso nem substância, mas estranhamente táctil, descera sobre si, envolvendo-a a ela e a mais ninguém. E nesses segundos inexplicáveis, sentiu a confluência da Razão e do Espírito. E percebeu que nada mais seria como dantes.

Isabel apertou a mão do Luís, desviou o olhar para as luzes reflectidas no Tejo e deu graças a Deus.


Nota: pessoalmente não sou grande apreciadora do Stevie Wonder – mas o Tony Bennett tem uma presença e uma voz tão marcantes, que suplanta qualquer eventual acompanhante.

pcp

5 comentários:

Anónimo disse...

Tanto o TBennett como o SWonder cantam pra caramba! A versão do FSinatra é óptima. B deA

Anónimo disse...

Eu sei. Mas apeteceu-me apresentar esta música cantada em dueto. Mais que qualquer coisa, foi a interpretação, a sala magnífica e a voz fabulosa do TB que me atraíram. Nem tanto a canção, que já é conhecida "pra caramba"! Thanks. pcp

Philip disse...

PCP, I do like Stevie Wonder but I don't "get" Tony Bennett. People say he's the ultimate "singer's singer", that his phrasing is impeccable. This song is ok, but generally I think he spoils a good melody. Too sophisticated for my taste, no doubt. And I think a "duet" between TB and SW is a mismatch like Schwarzenegger and De Vito. Sorry! PO

Anónimo disse...

É, tinha sido melhor que Stevie Wonder tivesse limitado a sua contribuição como tocador de harmónica. Confesso que não consigo perceber a evolução de SW como cantor depois dos seus albuns de meados dos anos 70.

Tony Bennett nunca me tocou particularmente, o que é com toda a probabilidade um defeito meu já que tantas pessoas - e bons músicos - dificilmente podem estar errados. Mas é impossível não admirar a consistência da sua qualidade interpretativa e da sua voz, particularmente nesta idade já mais avançada.

Amei o seu texto. Gosto cada vez mais de a ler. Bjs

jaime

Anónimo disse...

Jaime and PO, loved your comments. And I agree with them, you know. I don't love SW and I don't love the whole of Tony Bennett... but this song is particularly well sang. There's a sweetness, a velvet like quality, a harmony about it, maybe also because of the setting, the camera, and all that, that made me fall in love with this song. But you won't see me posting any more SW or TB here!!! Bjs to both. C

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