06 abril 2010

Para sempre

Sentaram-me aqui para sempre, agora que estou velho.


Entretenho-me muito a pensar. Aliás, não sei se é a pensar, que não percebo nada das engrenagens da cabeça, o que faço é passar lembranças como quem projecta, numa parede qualquer, fitas estragadas pela humidade e pelo pó, ando para a frente e para trás e tento ordenar o que se aproveita, adivinhar o que dizem as vozes que se vão desfocando, recordar o tom dos risos. Sustenho a respiração no sussurro dos segredos e nos soluços abafados das lágrimas e paro nas caras das pessoas. Vamos chamar a isso pensar no tempo, para ser mais fácil.


Entretenho-me muito a pensar no tempo em que as pessoas não eram mais que pares de pernas, mais ou menos bem calçadas, mais ou menos familiares, no tempo em que a sanita era um mistério que engolia tudo, candidata improvável a conquistar o lugar do bacio azul, que parecia um carrinho com uns olhos de bambi autocolantes, no tempo em que as nossas mãos eram pequenas de mais para a sede e, nas tardes de sol, só o avô, com as suas mãos escuras de gigante, a cheirar a sabão azul e branco, conseguia segurar água suficiente para a saciar, no tempo em que as horas estavam a mando do sol e a rua a mando da chuva.


Entretenho-me muito a pensar no nosso tempo, das mãos sempre agarradas, como se não se vissem há anos demais, no tempo dos cheiros novos, nossos, que souberam guardar-se na memória, no tempo em que todos os bancos de jardim eram uma boa desculpa para parar e em que redescobrimos o prazer de rebolar na relva, no tempo em que aprendemos a saborear as imperfeições, nos apaixonámos irremediavelmente por elas, no tempo em que deixámos de ter frio de noite.


Entretenho-me muito a pensar no tempo dos nosso pequenos, que ganiam baixinho nas primeiras noites connosco, no tempo em que aproveitavas para chorar com eles as notícias do médico, de que os nossos corpos não iam funcionar nunca, só porque pensavas que eu não podia ouvir, no tempo em que percebeste que enrolar-me em ti com mais força era a minha maneira de chorar, no tempo em que as palavras deixaram de ser necessárias para nos entendermos nos assuntos da alma.


Entretenho-me muito a pensar no tempo em que os nossos pequenos morreram, e os filhotes deles também, em que choravas enquanto semeavas flores para eles, no tempo em que a preguiça já não tinha responsabilidade nenhuma na dificuldade que tinhas em levantar-te de manhã, no tempo em que eu alisei o caminho até à entrada, só porque ia ficar muito mais bonito, apesar de saberes desde o início que era para a cadeira, no tempo em que usaram esse caminho para te levar para sempre, e em que eu fui contigo, mãos agarradas como se não se vissem há anos demais, a apertar com tanta força que me esqueci de olhar para trás.


Depois sentaram-me aqui. Para sempre.



ZdT


2 comentários:

Anónimo disse...

Que bonito, ZdT. Comovi-me. Obrigada. pcp

ZdT disse...

Obrigado pcp

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