13 setembro 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Embora os filmes de ficção científica não façam as minhas delícias, há honrosas excepções, como «A ORIGEM»(1)! Um elenco de luxo, onde se destacam Leonardo Di Caprio e Marion Cotillard, que têm acumulado merecidos óscares.

A tradução do título diz pouco do original anglófono –«INCEPTION»– que nos lança na complexa temática do IMPLANTE de ideias e possibilidade de reconfiguração de um mapa mental. Estamos no terreno da ficção psicológica, pura e dura. Em pano de fundo, deliciam-nos os cenários a rodar em velocidades alucinantes, ao ritmo da criatividade fervilhante dos sonhos. As filmagens foram realizadas em 6 países. Ali assistimos a acrobacias arquitectónicas espectaculares, embaladas por uma imaginação totalmente emancipada dos limites da matéria. Tudo se move com uma plasticidade única e sentido estético. A força da gravidade converte-se em mero adereço, facilmente superável. Muito empolgante.

Entre os críticos de cinema norte-americanos o filme fez furor, até pela densidade e diversidade de elementos reunidos: da psicologia e sociologia ao thriller de espionagem internacional, sem descurar a insubstituível love-story com toques de tragédia (mas mensagem positiva, apesar de tudo) e ainda as incursões filosóficas e metafísicas. Uma fórmula tão original quanto arrojada, a compactar Ian Fleming, Freud, o stress violento dos manos Coen (tudo armadilhado e armado até aos dentes), além dos efeitos especiais de Spielberg! A profusão de virtuosismo visual e sonoro, pontuado por diálogos interessantes, prestava-se para pecar por excesso, pulverizando a atenção do espectador por milhares de momentos demasiado intensos. Até diria que foi providencial o projecto de realização em 3D ter sido chumbado. Mas seja pela presença regular das rajadas de metralhadora a manterem-nos de sobreaviso, seja pelo desenrolar cativante e algo imprevisto da acção, seja pelos cenários em feérica transfiguração, ao jeito do sonho, parece-me difícil alguém despegar do ecrã.

Nos bastidores das filmagens, o realizador, DiCaprio e Ellen Page

A ideia de materializar o subconsciente de cada indivíduo obriga-nos a explorar o mundo das memórias recônditas, da origem das motivações, das inúmeras contradições interiores, do jogo de forças que povoam a mente e ali se digladiam sem se tomar total consciência delas e assim poder geri-las favoravelmente. Os princípios universais e basilares da psicologia humana surgem com impacto e actualidade máximas, começando pela recomendação crucial dos filósofos da Antiguidade Clássica (atribuída a Sócrates) – «CONHECE-TE A TI MESMO». E continua pela linha muito benigna da matriz judaico-cristã da civilização ocidental: perdoa-te, aceita-te, para poderes perdoar e aceitar os outros. A música para despertar do sono induzido, de Édith Piaf, reitera-o assumidamente, recomendando a purificação da memória, a fim de pacificar o passado: «Non! Rien de rien /Non! Je ne regrette rien!». Assim se avança para um estádio de maior subtileza e coragem, que requer a reconciliação com a realidade. Mais: preferi-la à fantasia! Não trocar a factualidade presente pelo mundo onírico, ainda que transborde dos nossos anseios e desejos… mas também, necessariamente, das nossas frustrações, angústias, forças internas desencontradas.

Mas vai mais longe, mostrando-nos a impossibilidade de o mundo pessoal e intransmissível do sonho ser capaz de acolher, verdadeiramente, os outros. O ego do sonhador, inconscientemente – in stricto sensu– impõe-se desmesuradamente, sugando toda a realidade com a força arrebatadora e destrutiva de um furacão. As pessoas são meras projecções do tal ego, incrivelmente frágeis e sublevando-se com uma rapidez assustadora. São, afinal, fruto de mentes (as nossas…) muito mais vulneráveis e paradoxais do que o desejável. Até mesmo para efeitos de sobrevivência, sempre posta à prova.

Naquele universo fantasiado, o tempo nunca joga a favor. Ao invés, adopta a lógica da bomba-relógio. Assim, a missão desenrola-se em total adversidade, atrevendo-se a tentar domar realidades, pessoas e lugares de aparência inexpugnável, em luta contra tudo, sendo o inimigo mais implacável o cronómetro. Cada centésimo de segundo faz a diferença. Daí o desafio. E o frisson. É um bom exemplo disto a quantidade de façanhas sacadas, com grande arrojo e despacho, no brevíssimo tempo entre o monovolume se despenhar da ponte e embater na água!

Interessantíssimo, também, na difícil lavagem ao cérebro para inculcar uma nova ideia, observar que a motivação humana mais profunda é de ordem afectiva e o estímulo positivo prevalece sobre o negativo. Exemplificando: na ordem afectiva, o amor acaba por se sobrepor ao ódio; e na hierarquia dos estímulos, a alegria/o entusiasmo e a esperança superam o medo e o desespero. Transpondo para a realidade individual: uma pessoa feliz tem um potencial de sucesso muito superior às outras. Há uma antiga máxima do Império romano com ecos desta consideração, embora colocando a tónica no voluntarismo: A sorte favorece os audazes.

É invulgar, numa sociedade tão artificializada como a ocidental, o mundo ficcionado acabar por se revelar pobre, inadequado (imagine-se), para realizar, plenamente, os sonhos humanos. Que resultam autodestrutivos. Uma perigosa miragem. Porque tudo ali tende para a canibalização.

Explicando melhor o espantoso confronto de conceitos em despique no filme (ex: sonho vs desejo, factualidade vs ficção replicando a realidade possível), somos levados a concluir que, em última instância, a resposta à felicidade humana passa menos pela fantasia, por mais audaciosa que seja, do que pela possibilidade concreta, realmente vivida, de responder a um desejo. No fundo, o desejo revela-se mais substantivo que o sonho. Como tal, não se contenta com nada menos do que a própria realidade. Ora, o maior desejo da humanidade é o amor. Vivido. Tocado, aqui e agora.

Assim, a prova de fogo no confronto entre sonho e realidade joga-se aí, tendo por palco de guerra a mente e o coração humanos! No final do filme, assistimos a uma autêntica explosão da realidade, sugerindo que só no presente, ainda que desprovido do aparato apetecível e ilimitado do fascínio onírico, a natureza humana atinge a plenitude. Apesar de tudo…

É verdade que o protagonista (Cobb) acabou por acumular duas vivências amorosas que, a dada altura, já só podiam co-habitar em planos incompatíveis, entre o sonho e o dia-a-dia. Mas a escolha derradeira é bem significativa (por aqui me fico, para não quebrar o suspense), privilegiando o horizonte onde a felicidade de cada um é conciliável com a dos demais. Onde as pessoas reais existem. Por isso, os pequenos truques inventados pela equipa que viajava nos sonhos – mandatados para missões impossíveis – para aferir o regresso ao mundo real elevaram-se, espontaneamente, a talismãs sacrossantos. Daí que a recusa de um dos talismã (cena repetida ao longo do filme), encerrado num cofre inviolável, constituísse a prova cabal de se ter cruzado a fronteira irreversível da loucura, que prefere a irrealidade forjada, o puro ilusionismo.

Termino com uma pergunta: será que a realidade não procede também do sonho de alguém com mais capacidade que a imaginação humana para a preencher de substância e lhe insuflar vida? Convenhamos que a natureza não enferma de falta de criatividade. Nem os sonhos são uma invenção humana. Aliás, ninguém se inventou a si próprio nem se conhece totalmente…

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, passando a publicar às Segundas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: Inception Tradução portuguesa: A Origem

Duração: 148 minutos (2 horas e 28 minutos)

Género: Acção / Ficção Científica

Realizador e argumentista (de origem britânica): Christopher Nolan

Ano: 2010

País de origem: EUA / REINO UNIDO

Produção: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures, Syncopy

ELENCO:

Leonardo DiCaprio (Cobb)

Ken Watanabe (Saito)

Joseph Gordon-Levitt (Arthur)

Marion Cotillard (Mal)

Ellen Page (Ariadne)

Tom Hardy (Eames)

Cillian Murphy (Fischer)

Tom Berenger (Browning)

Michael Caine (Professor)

Lukas Haas (Nash)

Tohoru Masamune (Security Guard)

Talulah Riley (Blonde)

Dileep Rao (Yusef)

Carl Gilliard (Hotel Guest

2 comentários:

Anónimo disse...

Ler-te é sempre um prazer, MZ. Como não vi o filme nem, confesso, o quero ver, não posso contra-argumentar o que viste. Mas reitero sempre a tua soberba capacidade de análise e de ver muito mais do que o óbvio. E confirmo a grandeza dessa frase, da tua autoria, com a qual acabas o texto: não nos inventamos a nós próprios. Lembro-me dela constantemente. E a parte que inventamos (porque inventamos qualquer coisa!) é tão pequena comparada com aquela que herdámos (pela genética) e que nos foi "acontecendo" e moldando com a passagem da vida, que nem vale muito a pena referi-la. Tão grandes e tão pequenos que somos. Obrigada por me fazeres sempre pensar. Gd bj. pcp

Anónimo disse...

Sim, sim, pcp, lembras muito bem que, apesar de tudo, há uma pequena parte que nos cabe a nós... É, de facto, pequenina mas, misteriosamente, Alguém quis que esse modesto contributo tivesse "peso" e significado. A vida é mesmo espantosa e muito para lá do que a nossa imaginação alcança. Bjs amigos, MZ

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