Entre os críticos de cinema norte-americanos o filme fez furor, até pela densidade e diversidade de elementos reunidos: da psicologia e sociologia ao thriller de espionagem internacional, sem descurar a insubstituível love-story com toques de tragédia (mas mensagem positiva, apesar de tudo) e ainda as incursões filosóficas e metafísicas. Uma fórmula tão original quanto arrojada, a compactar Ian Fleming, Freud, o stress violento dos manos Coen (tudo armadilhado e armado até aos dentes), além dos efeitos especiais de Spielberg! A profusão de virtuosismo visual e sonoro, pontuado por diálogos interessantes, prestava-se para pecar por excesso, pulverizando a atenção do espectador por milhares de momentos demasiado intensos. Até diria que foi providencial o projecto de realização em 3D ter sido chumbado. Mas seja pela presença regular das rajadas de metralhadora a manterem-nos de sobreaviso, seja pelo desenrolar cativante e algo imprevisto da acção, seja pelos cenários em feérica transfiguração, ao jeito do sonho, parece-me difícil alguém despegar do ecrã.
Mas vai mais longe, mostrando-nos a impossibilidade de o mundo pessoal e intransmissível do sonho ser capaz de acolher, verdadeiramente, os outros. O ego do sonhador, inconscientemente – in stricto sensu– impõe-se desmesuradamente, sugando toda a realidade com a força arrebatadora e destrutiva de um furacão. As pessoas são meras projecções do tal ego, incrivelmente frágeis e sublevando-se com uma rapidez assustadora. São, afinal, fruto de mentes (as nossas…) muito mais vulneráveis e paradoxais do que o desejável. Até mesmo para efeitos de sobrevivência, sempre posta à prova.
Naquele universo fantasiado, o tempo nunca joga a favor. Ao invés, adopta a lógica da bomba-relógio. Assim, a missão desenrola-se em total adversidade, atrevendo-se a tentar domar realidades, pessoas e lugares de aparência inexpugnável, em luta contra tudo, sendo o inimigo mais implacável o cronómetro. Cada centésimo de segundo faz a diferença. Daí o desafio. E o frisson. É um bom exemplo disto a quantidade de façanhas sacadas, com grande arrojo e despacho, no brevíssimo tempo entre o monovolume se despenhar da ponte e embater na água!
Interessantíssimo, também, na difícil lavagem ao cérebro para inculcar uma nova ideia, observar que a motivação humana mais profunda é de ordem afectiva e o estímulo positivo prevalece sobre o negativo. Exemplificando: na ordem afectiva, o amor acaba por se sobrepor ao ódio; e na hierarquia dos estímulos, a alegria/o entusiasmo e a esperança superam o medo e o desespero. Transpondo para a realidade individual: uma pessoa feliz tem um potencial de sucesso muito superior às outras. Há uma antiga máxima do Império romano com ecos desta consideração, embora colocando a tónica no voluntarismo: A sorte favorece os audazes.
É invulgar, numa sociedade tão artificializada como a ocidental, o mundo ficcionado acabar por se revelar pobre, inadequado (imagine-se), para realizar, plenamente, os sonhos humanos. Que resultam autodestrutivos. Uma perigosa miragem. Porque tudo ali tende para a canibalização.
Assim, a prova de fogo no confronto entre sonho e realidade joga-se aí, tendo por palco de guerra a mente e o coração humanos! No final do filme, assistimos a uma autêntica explosão da realidade, sugerindo que só no presente, ainda que desprovido do aparato apetecível e ilimitado do fascínio onírico, a natureza humana atinge a plenitude. Apesar de tudo…
É verdade que o protagonista (Cobb) acabou por acumular duas vivências amorosas que, a dada altura, já só podiam co-habitar em planos incompatíveis, entre o sonho e o dia-a-dia. Mas a escolha derradeira é bem significativa (por aqui me fico, para não quebrar o suspense), privilegiando o horizonte onde a felicidade de cada um é conciliável com a dos demais. Onde as pessoas reais existem. Por isso, os pequenos truques inventados pela equipa que viajava nos sonhos – mandatados para missões impossíveis – para aferir o regresso ao mundo real elevaram-se, espontaneamente, a talismãs sacrossantos. Daí que a recusa de um dos talismã (cena repetida ao longo do filme), encerrado num cofre inviolável, constituísse a prova cabal de se ter cruzado a fronteira irreversível da loucura, que prefere a irrealidade forjada, o puro ilusionismo.
Termino com uma pergunta: será que a realidade não procede também do sonho de alguém com mais capacidade que a imaginação humana para a preencher de substância e lhe insuflar vida? Convenhamos que a natureza não enferma de falta de criatividade. Nem os sonhos são uma invenção humana. Aliás, ninguém se inventou a si próprio nem se conhece totalmente…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, passando a publicar às Segundas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: Inception Tradução portuguesa: A Origem
Duração: 148 minutos (2 horas e 28 minutos)
Género: Acção / Ficção Científica
Realizador e argumentista (de origem britânica): Christopher Nolan
Ano: 2010
País de origem: EUA / REINO UNIDO
Produção: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures, Syncopy
ELENCO:
Leonardo DiCaprio (Cobb) | Ken Watanabe (Saito) |
Joseph Gordon-Levitt (Arthur) | Marion Cotillard (Mal) |
Ellen Page (Ariadne) | Tom Hardy (Eames) |
Cillian Murphy (Fischer) | Tom Berenger (Browning) |
Michael Caine (Professor) | Lukas Haas (Nash) |
Tohoru Masamune (Security Guard) | Talulah Riley (Blonde) |
Dileep Rao (Yusef) | Carl Gilliard (Hotel Guest |
2 comentários:
Ler-te é sempre um prazer, MZ. Como não vi o filme nem, confesso, o quero ver, não posso contra-argumentar o que viste. Mas reitero sempre a tua soberba capacidade de análise e de ver muito mais do que o óbvio. E confirmo a grandeza dessa frase, da tua autoria, com a qual acabas o texto: não nos inventamos a nós próprios. Lembro-me dela constantemente. E a parte que inventamos (porque inventamos qualquer coisa!) é tão pequena comparada com aquela que herdámos (pela genética) e que nos foi "acontecendo" e moldando com a passagem da vida, que nem vale muito a pena referi-la. Tão grandes e tão pequenos que somos. Obrigada por me fazeres sempre pensar. Gd bj. pcp
Sim, sim, pcp, lembras muito bem que, apesar de tudo, há uma pequena parte que nos cabe a nós... É, de facto, pequenina mas, misteriosamente, Alguém quis que esse modesto contributo tivesse "peso" e significado. A vida é mesmo espantosa e muito para lá do que a nossa imaginação alcança. Bjs amigos, MZ
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