23 maio 2011

Vai um gin do Peter’s ?

O óscar do Melhor Filme Estrangeiro premiou a película de uma dinamarquesa, que se lança num tema ambicioso em volta de um conceito tão inacessível como o paraíso, aqui e agora – «Haevnen» (com o mesmo radical do termo inglês heaven). A tradução adoptada em Portugal tenta corresponder ao desafio: «NUM MUNDO MELHOR»(1).

A explosão de perguntas suscitadas pelo filme – muitas, implicitamente – parece emergir da mente efervescente e reivindicativa dos adolescentes em acção. A sua atitude desafiante, provocatória, põe os adultos violentamente em causa. Corresponde ao grito desajeitado que nasce do legítimo pedido de verdade, de coerência, em que o mundo dos crescidos será tão falho… Arrastando-se pela vida num frenesim anestesiante, estes parecem ter adiado as grandes questões sobre o sentido da existência para uma fase longínqua, associada à desaceleração que o envelhecimento comporta.

Através da personagem do pai-médico interrogamo-nos se o mérito do trabalho realizado nos confins de África será, algum dia, reconhecido na Dinamarca ou trará algum benefício à família, que mal o vê? Se a pequena decisão tomada ontem, levianamente, terá consequências nas 24 horas seguintes? Curiosamente, tudo indica que sim… ao menos no próprio, porque é de pequenos gestos diários que somos feitos. Nesse sentido, nada se perderá da assistência dada na savana tropical, ainda que a Europa rica e auto-suficiente não tenha olhos para a apreciar. Mas transportamo-la no coração. Ela penetra-nos até ao âmago e ganha corpo em nós – tornamo-nos nela, pelo que essa bondade concreta passará a estar onde estivermos.

É notório que entre o mundo subdesenvolvido e o hemisfério Norte se ergue um fosso difícil de transpor. Mas em África, a pobreza de meios coabita com a riqueza afectiva, solidária. Em contrapartida, na Europa, a superabundância técnico-científica, a invejável qualidade de vida coabita com a escassez afectiva. O individualismo militante condena o indivíduo a uma aberrante solidão, encarcerado na sua própria ilha. Mergulha-se numa solidão que se auto-ilude através dos paliativos atordoantes da sociedade de consumo, como o barulho oco da companhia virtual que a televisão oferece.

O expoente da fase de construção do ser humano ocorre na adolescência, onde o voluntarismo da idade, neste caso potenciado pelas condições privilegiadas de um país desenvolvido, esconde a enorme fragilidade desses pequenos homens em devir, em fase experimental de afirmação pessoal. Sob o ponto de vista interior é uma aventura maior para a humanidade, em nada menor do que as expedições humanitárias em favor das tribos subsaharianas.

Nos teenagers impõe-se a ousadia meia frenética e imponderada da pouca idade, ampliada pela fraca noção dos limites. Das consequências. Vivem excessivamente o presente, arriscando-se a ficar prisioneiros do instante. A ponto de, facilmente, espatifarem a vida.

No extremo oposto, os adultos correm o risco de se perder em deambulações estéreis, entre o ressentimento (por vezes, má consciência) do vivido e o medo do que virá, arriscando-se a ficar prisioneiros de um passado mitificado ou de um futuro irreal. Basicamente acantonados numa atitude escapista, que se esquiva a encarar os factos.

Nos mais novos, uma exigência insaciável (até feroz) de verdade, que confundem com sinceridade associal e cruel. Nos mais velhos, o comodismo flácido da meia-verdade, onde a mentirinha confortável é socialmente bem tolerada.

Nos mais novos, os grandes gestos, os desafios arrojados e, muitas vezes, irresponsáveis. Nos mais velhos, as escolhas hábeis, medidas ao milímetro, com pouca alma e nenhuma graça.

Torna-se um diálogo praticamente impossível entre gerações.

É neste universo de incomunicação e de enorme crispação social (na escola grassa o célebre bullying) que os dois adolescentes cimentam uma amizade aventureira, mas muito cúmplice. Transgressora mas compincha. Com falta de apoio dos adultos mas a transbordar de sintonia entre ambos.

Só não esperávamos a manifesta falta de civismo nas sociedades nórdicas. Nem a xenofobia exacerbada entre dinamarqueses e suecos. Nem o laxismo e ineficiência das autoridades. Contávamos apenas com o isolamento pesado entre pessoas de todas as idades e classes, abandonadas à sua sorte, seja na casa de férias junto ao lago silencioso, seja no quarto do hospital, seja nas boas-vindas gélidas à chegada ao aeroporto após uma longa ausência.

Paradoxalmente, é no pior momento que desponta o melhor nos corações dos teenagers. Converte-se, assim, num anti-climax positivo. No furor justiceiro, para o qual o miúdo empreendedor arrasta o miúdo bondoso e influenciável, ressurgem os ingredientes mais benignos da amizade: a verdade e a reciprocidade na relação, a coragem em favor do outro, a dedicação mútua. Salvou-os essa lealdade, posta à prova na circunstância mais dolorosa. Por fim, também a presença paterna, que tardara em aparecer, resgatou-os de um desfecho brutal. Porque só em face do risco de uma perda irremediável, os pais descobriram novas formas de relançar o diálogo com os filhos. Quando acreditaram que estava ao seu alcance melhorar o mundo, tudo começou a mudar. Salvou-os, essa fé na própria vida. Sabiamente, Gandhi aconselhava: «Seja a mudança que quer ver no mundo». Tão simples mas tão exigente.



Trailer de EM UM MUNDO MELHOR - Legendado por claquete_com no Videolog.tv.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: HAEVNEN

Título traduzido em Portugal: NUM MUNDO MELHOR

Realização: Susanne Bier

Argumento: Susanne Bier, Anders Thomas Jensen

Produção: Sisse Graum Jørgensen

Fotografia: Morten Søborg

Banda sonora: Johan Söderqvist

Duração: 118 min.

Ano: 2010
País: Suécia /Dinamarca

Elenco

Mikael Persbrandt (Anton, o pai-médico),

William Jøhnk Nielsen (adolescente rebelde e reivindicativo),

Markus Rygaard (adolescente patinho feio)

Trine Dyrholm, (a mãe)

Wil Johnson,

Eddie Kihani,

Emily Mglaya,

Gabriel Muli,

Ulrich Thomsen

Site oficial:

Prémios: Óscar do Melhor Filme Estrangeiro,

Globo de Outro do Melhor Filme de Língua Estrangeira.



4 comentários:

Anónimo disse...

Já tinha ouvido falar neste filme. Fiquei cheia de vontade de o ver depois de te ter lido! Sejamos a mudança que queremos ver espelhada no mundo! Nem mais! Ou seja, não há determinismo. É importante pensar nisso quando se pensa no destino deste nosso país tão desnorteado ... bjs. pcp

Anónimo disse...

Nem me lembres o desnorteio do país, pcp krida!... bjs, MZ

Anónimo disse...

MZ, thanks to your beautifully written soulful interpretation, I now want to see this film. PO

Anónimo disse...

Thank, PO, for your encouraging words, MZ

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