Dia do Anjo. Várias pessoas, na caixa de comentários do blogue, por mail, sms ou
telefone, evidenciaram a sua presença
na passada 6ªfeira, fosse porque se lembravam da data, fosse porque leram o
texto. Fiquei sensibilizado e agradeço a todos. Talvez pudesse ter escrito
sobre o que é atingir-se a maioridade no Céu, como referiu a Arit Netoj, mas
aquilo foi o que me saiu. Há muito que repito uma frase com que me cruzei: todos os dramas são suportáveis se fizermos
deles uma história. Este tom sério,
cheio de uma fé quase obsessiva na eternidade, na bondade permanente de Deus,
no colo imenso de Nossa Senhora tem sido, de facto a minha narrativa – e é com
ela que me tenho sentido confortado. Talvez mude ligeiramente o tom um dia
destes, mas os alicerces do meu bem-estar são para manter.
O tempo. Sempre que me esqueço um pouco desta sabedoria milenar, o destino
acaba por me recordar o fundamental: há um tempo para tudo na vida. Durante alguns anos fez parte do meu espólio
uma pasta verde em plástico onde guardei exames, correspondência com médicos,
digitalizações disto e daquilo, marcações de tratamentos, etc. Fruto de uma
mente que tem os seus mistérios, teimei em conservar esta inutilíssima pasta
que me recordava um 2001 de triste memória. No passado 6 de Julho, sozinho em
casa a fazer arrumações (que vinha preguiçosamente a adiar) deitei tudo fora,
com a mesma tranquilidade com que jogaria para o caixote o folheto promocional
do lidl. Não olhei para trás, não tive presságios de arrependimento, não
hesitei. Naquele próprio dia? Coincidência ou uma espécie de maioridade? A coincidência é a forma que Deus tem de permanecer anónimo, diria Einstein.
Filme. Num destes dias um cachorro, fruto de um qualquer desconforto, ganiu
e ladrou a noite toda. Custou-me a adormecer, acordei antes de tempo, dormi
desconfortado. Ainda de madrugada, e a fazer minutos para o meu paredão
matinal, decido socorrer-me do zapping.
Num dos canais, Colin Firth (o galã premiado pelo seu desempenho em O Discurso
do Rei) entra num restaurante na província francesa. É Natal e atrás dele vem
um grupo de portugueses emigrantes. Um cavalheiro pergunta ao empregado por uma rapariga. A resposta veio pronta:
Quero lá saber (o original em inglês é how
should I know?)!
Colin olha para cima, para o mezanino, e encontra a cara bonita e doce
de Lúcia Moniz, a rapariga que sorri, apesar de estar a servir à mesa na véspera
de Natal. No seu melhor português o cavalheiro diz-lhe:
Bonita Aurélia... e pede-a em casamento. Ela – a bonita Aurélia – gagueja timidamente
que tudo aquilo pode ser uma boa ideia... Depois beijam-se, num amor abençoado pelas badaladas da meia noite. A irmã de Lúcia (a quem, independentemente do
nome, ele não chamaria bonita...)
aflora-lhe os lábios num misto de inveja e lascívia pouco cristãs e, porque é
Natal e ninguém leva a mal, também o futuro sogro o beija na boca, perante o
espanto – mas não indignação, do inglês. Entre o bonita aurélia e os beijos em profusão se constrói a imagem dos
portugueses...
Livros. 30 anos depois, talvez, de ter tentado ler, na língua original, o
Ulisses de James Joyce – e ter desistido na página 2 – leio o Retrato do Artista
quando Jovem (Relógio D’Água, tradução de Paulo Faria). Estou a gostar muito,
sendo que tem de ser lido em pedaços parcimoniosos, porque a escrita é densa.
Terminado em 1914, a novela descreve a
infância em Dublin de Stephen Dedalus e a sua busca de identidade (da
contracapa). Muito se passa num colégio interno de jesuítas, e
percebe-se que durante séculos o Céu dos católicos foi ganho, não à custa da procura do Bem,
mas porque as pessoas tinham o pavor do Inferno e do castigo de Deus. Atente-se
numa pequeníssima parte da pregação do orientador de um retiro para jovens de dezasseis anos: Sim, um Deus justo! Os homens, raciocinando
sempre como homens, ficam estupefactos por Deus aplicar um castigo eterno e
infinito no fogo do inferno como pena por um único pecado grave. Raciocinam
assim porque, cegados pela grosseira ilusão da carne e das trevas do
entendimento humano, são incapazes de apreender a infâmia hedionda do pecado
mortal. Raciocinam assim porque são incapazes de perceber que mesmo o pecado
venial tem uma natureza tão sórdida e tão hedionda que, ainda que o Criador
omnipotente pudesse pôr fim a toda a maldade e infelicidade no mundo, as
guerras, as doenças, os roubos, os crimes, as mortes, os assassínio, na
condição de permitir que um só pecado venial ficasse impune, um único pecado
venial, uma mentira, um olhar irado, um momento de preguiça deliberada, Ele, o
grande Deus omnipotente, não o poderia fazer, porque o pecado, seja por
pensamentos, seja por actos, é uma transgressão da lei d’Ele, e Deus não seria
Deus se não punisse o infractor.
JdB
3 comentários:
Belos quotes. E rubricas também. As usual. O filme que viu de madrugada chama-se Love Actually. Muito fraquinho mas com algumas partes cómicas. Bom f-d-s. pcp
sempre doce!
Não sei se percebi bem a última chamada.
Guardar e' importante e anos depois deitar fora tambem, sao ambas provas de amor: a que quer manter vivo uma presenca e a que sabe que jamais a esquecera'.
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