O detalhe é parte errática da minha vida. Sou mais homem para lhe dizer que não do que sim, não por opção de vida ou natureza estética, mas porque foi assim que fui crescendo. Na minha vida profissional, tempos houve em que, de olhos postos no futuro, discutia com um colega a mudança de um depósito com capacidade de trinta toneladas - ou a colocação do dito onde ele não existia. Eram os savings, a rentabilidade, a redução do esforço físico, a segurança de homens e bens, a eficácia. Dadas as grandes coordenadas e os movimentos amplos do cérebro, ao meu colega surgiam ninharias, pedaços de tubo sem cabimento, válvulas imprescindíveis e inexistentes, uma electricidade que só imaginando, pequeninos entraves. Sem isto o projecto não funcionava, pelo que um coca-bichinhos ao lado dava jeito. Sempre lhe agradeci isso.
Não sei se o corpo é o melhor espelho da alma humana, para revisitar a citação. Em mim talvez seja - sou grande, desajeitado, ávido por vezes, com um jeito de mãos que num canhoto equivale a duas mãos direitas. Preciso de espaço, choco com as coisas, sou mais homem de cozinhar ranchos do que pequeninos pratos, olho com inveja para quem, na casa vizinha, faz de um bocado de polvo uma obra prima de estética e pormenor. Sou cavalheiro de força bruta, que cumpre o que outros cumprem no mesmo tempo - mas com o dobro do esforço. Falta-me souplesse muscular, como falta sensibilidade para, num tabuleiro, optar pelo toque de classe em detrimento da eficácia. À palavra requinte dou pouco mais do que uma conotação gramatical. Por vezes o detalhe é apenas uma rima pouco óbvia.
Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão |
Ao longo dos últimos anos sinto que tenho vindo a mudar. Ou talvez tivesse sido sempre assim, e tudo se escondia por trás de um tamanho acima de média e de uma fome que não dava descanso. Continuo a ser grande e ávido, sem gestão de esforço no pouco exercício físico que faço, sem um splash de azeite que, num prato de faiança velha, lhe dê um toque gourmet. Apesar de tudo isto há, em mim, o apego a um certo detalhe: uma frase num fado, um quite num toureiro, uma metáfora, um raciocínio numa homilia, uma discrepância numa família que vai ao museu. Não sei de onde me vem isto agora, que descamba em ideias escritas num caderno para uma memória futura que não usarei - uma lista infinda de pormenores garatujados a tinta bordeaux, que pouco mais tem do que uma valência vagamente antiga. Também não sei o sentido deste texto, mas o estabelecimento é meu, e ontem precisava de repousar o cérebro numa almofada de petit-riens.
Roland Barthes, n' A Câmara Clara, aborda o tema do detalhe aplicado à fotografia. Há o studium - uma espécie de interesse humano geral pela fotografia que nos remete para uma informação clássica, mais ou menos estilizada, mais ou menos conseguida em função da mestria do fotógrafo: uma paisagem, um par de velhos, um cão a dormir ao calor do verão. E há o punctum, um elemento que vem perturbar o studium. Diz R Barthes: O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me modifica, me apunhala). Talvez parte da minha vida seja uma eterna e desajeitada procura do punctum.
JdB
4 comentários:
Não sei se concordo inteiramente consigo.
O puntum pode ser aquela meia que não está na gaveta, uma franja do tapete que se desfiou, uma madeixa desalinhada, coisas pequenas que nos perturbam o studium.
Estes punctum deviam-nos da existência dos outros pares, da beleza do desenho do tapete e dos olhos verdes que se escondem por detrás da melena rebelde.
Será que merecemos perder a beleza e o requinte das coisas, apenas porque um malfadado puntum nos desalinha as emoções?
Estes punctum não se limitam a apunhalar os sentimentos ou as sensibilidades, reafirmam-nos, simplesmente porque nos ensinaram a crescer no não, na crítica excessiva e sistemática, na competição.
Ou será que a nosso Karma é a busca constante do desequilíbrio e da perturbação? A luta entre sentido posto e sentido retirado.
Gosto sempre dos seus desabafos, mesmo os mais (aparentemente)desconexos.
Já aqui não vinha há muito tempo. Coisas do equilibrio. Vim pelo detalhe fiquei no punctum, tal como há dias numa visita aos corredores e ao serviço de queimados do CHSJ. Algures vi um cartaz da "Acreditar". Falei de si a quem me acompanhava. Hoje devolvi a visita, ri-me consigo e foi bom.
Abraço.GJ
Extraordinário.
Não conhecia essas duas noções: studium e punctum, obrigada por mas dar.
Extraordinário também o seu discurso e a sua conclusão. Adorei! Assim, é, precioso, que dentro do seu próprio e pessoal studium, procure e encontre o extraordinário punctum.
Na verdade, punctum, não me apunhala, mas se alguma vez fere, é porque há algo em mim a chamar-me cuidada atenção para ele. E isso, é que é de facto importante, aquilo, ínfimo e 'insignificante', que nos faz parar, olhar de novo, sentir, pensar sobre, ruminar cá dentro, ao abrigo do mais insuspeito olhar alheio, do mais inofensivo e coletivo studium.
Aí está a diferença, o extraordinário, o sublime, o procurado, o nem sempre procurado (nem precisa) mas definitivamente encontrado.
Por outro lado, essa 'fuga à ordem estabelecida' dão-nos uma dimensão ainda maior e 'melhor'(completa-a) do todo, dado pelo studium.
Como se em toda a ordem, devemos pressentir ( e saber que existe) um caos, dito assim em extremos, porque em todo o yang, há uma pintinha de yin, e vice versa.
A meia que não está na gaveta ou a franja que desfiou, devolve-me a realidade pura, a vivência concreta e desejada 'imperfeição', que me restitui a normalidade e a aceitação das coisas, não como as quero, mas como são.
E os petit-riens, dão mais sabor à minha vida.
Costuma-se dizer que Deus está nos pormenores.
Danado... não é que está em todo o lado ? ;)
a.
Querido João cada vez mais requintado...
Gostei do punctum que vejo como aqueles acasos não esperados cheios de significado.
Beijinhos
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