10 março 2014

Das (aparentes) incompreensões

Ontem morreu uma pessoa de quem tinha sido amigo por volta dos 20 anos. Nunca fomos íntimos, mas frequentávamos os mesmos sítios, íamos às mesmas festas, conhecíamos as mesmas pessoas, tínhamos referências sociais comuns. Hoje em dia não nos dávamos assiduamente, mas encontravamo-nos aqui e ali - num casamento, numa festa maior, num velório.

Quando morre alguém da minha idade, de quem fui amigo numa época curta ou continuada, olho fatalmente para trás, até porque sou um nostálgico. Revejo os amigos de então, as noites, os hábitos, uma época tão cheia de uma facilidade equilibrada, os namoros, os cruzamentos afectivos, os desfechos das relações. Saber da morte do X. é saber o que já sei, pelos piores motivos - a finitude das coisas, as injustiças da vida, as curvas da estrada cedo de mais.

Depois de muito tempo sem nos vermos, há dois ou três anos (talvez mais?) voltaram a falar-me dele: a um dos filhos pequenos tinha sido diagnosticado uma doença grave, com um prognóstico muito difícil e pessimista e eu, que tinha algum conhecimento próprio, talvez pudesse fazer alguma coisa. Escrevi-lhe, que é o pouco que sei fazer, e disponibilizei o que sabia e a associação a que estava ligado. O miúdo aguenta-se bem, mas viverá, estou em crer, com uma espada por cima da cabeça - uma constipação, uma tosse persistente ou uma ferida de cicatrização difícil poderão parecer um sinal preocupante. Ao longo do período de doença do rapaz, à minha pergunta a amigos ou familiares "como vai ele?" a resposta era quase sempre marcada por uma grande incredulidade, por uma surpresa por ele estar bem. Haveria milagre? "Coisas" que a ciência não descortina ainda? O que quer que haja, a situação será sempre tensa e periclitante, dada a seriedade da doença. 

Este meu amigo deixa viúva e oito filhos, entre os quais o tal rapaz com uma situação complicada. Como sempre, penso nos que cá ficam, porque quem parte vai para uma felicidade que não saberemos nunca racionalizar. Penso nos filhos, privados de um pai bom. Penso na viúva, na luta que tem pela frente. Ontem, num velório gratificantemente pejado de gente, conversava com um amigo sobre a necessidade de um exercício de relativização equilibrado dos desgostos. Por vezes passamos por dramas, mas há quem passe por situações iguais e não tenham um décimo da nossa rede social de apoio ou, inversamente,  um décimo dos nossos outros problemas. Esta família estará, obrigatoriamente, num dos pratos da balança nesse exercício.

Nesta fé também feita de ideias singelas, acreditamos que Deus abre uma janela quando fecha uma porta. Basta que tenhamos a sorte, face à dimensão das perdas, de estarmos alertas. A vida deu a este casal uma criança com um problema grave. O pai/marido morre pouco depois de fazer 56 anos. Como ontem partilhava com alguém que me é próximo, há alturas em que nos custa perceber que janela abriu Deus quando se fechou uma porta na nossa vida. Talvez eu não esteja suficientemente atento ainda. A viúva e os filhos, inundados, estou certo, de uma fé serena e confiante, chegarão lá muito cedo. Porque Deus não é senão Amor.

JdB


1 comentário:

Anónimo disse...

linda a música;
delicado, sensível e inspirado o post.
perfeita a harmonia.
v

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