Ter telas do Prado, em Lisboa, no
MNAA(1), é um luxo, apesar
de não serem os melhores exemplares dos pintores flamengos em exposição, como
diria ser o caso de Rubens, embora se tratem de obras da sua colecção pessoal. O
tema em foco é «A Paisagem Nórdica do
Museu do Prado», destacando-se os quadros dos dois Brueghels – o Velho e o
Novo. Outros artistas da Flandres e dos Países Baixos estão também presentes,
como: Claude Lorrain (que não é do gosto de toda a gente e até seja francês, por excepção incluído neste grupo do Norte), David Teniers, Joos
de Momper, o Jovem, Peeter Snayers, Simon de Vlieger, Philips Wouwerman, H.Dubbels,
Adam Willaerts, Hendrick Cornelisz Vroom e outros, sobretudo do século XVII.
Seguindo uma lógica temática, a
exposição foca a forma de os flamengos conceberem a paisagem, desenrolando-se
por 9 núcleos, que se percorrem com gosto, se a expectativa
for comedida. Talvez facilite seguir as etapas sugeridas, onde a luz
glacial e suave de latitudes mais nórdicas são uma constante, a par da neve e
do arvoredo denso e escuro.
I – A Montanha
A linha de horizonte acidentada
assumiu, frequentemente, uma conotação teológica e moralizante, evocando o
“sublime”. Não é de estranhar o carácter onírico de várias telas, pois as
planícies flamengas não ofereciam modelos naturalistas para replicar,
directamente, na pintura.
II – A Vida no Campo
Devastada pela guerra feroz entre
protestantes e a coroa espanhola, a Flandres conhece umas tréguas de 12 anos, a
partir de 9 de Abril de 1609. Com uma nova relação de forças na região,
institucionaliza-se a criação das Províncias do Norte (protestantes) e a zona
contígua sob o domínio dos arquiduques dos Países Baixos, em representação dos interesses
espanhóis – Alberto e Isabel Clara Eugénia. Na arte, assiste-se a um surto de
índole propagandística, ostentando-se uma paz e uma prosperidade mais desejadas
do que reais ou sequer possíveis em menos de uma década. De certo modo, reaparecem
as paisagens algo ficcionadas, embora a aproximar-se maximamente de uma
realidade, ao menos, verosímil…
Em Brueghel, o Velho, as
representações do quotidiano, com gente simples e momentos prosaicos, é
recorrente, como o prova a tela «Mercado e Lavadouro em Flandres» (1621). A imagem
aqui postada eternizou uma ocasião de festa, embora bastante sóbria, ao jeito
do pintor:
III – Paisagem de Gelo e Neve
Tema já presente em iluminuras dos
Livros de Horas medievais (exempo no «Très Riches Heures du Duc de Bérry»,
1525-1569), ficou associado ao Natal, saindo de moda no final do século XVII.
Além da luz do Inverno nórdico, rosada e cinza com os reflexos azulados do gelo,
estes quadros constituem um registo único da forma de vida das populações locais,
evidenciando a qualidade da sua construção e a capacidade de domarem a dureza
do clima. Os patinadores e os trenós lindos, as casas sólidas com telhados bem adaptados
aos nevões, dão conta de um desenvolvimento conquistado a pulso, onde nem os
divertimentos faltam.
O clima inóspito é especialmente
patente na tela sobre o cerco militar, com a planta do campo de batalha em
destaque. Fica-se impressionado com as condições do grupo de soldados, no primeiro
plano, consumidos pela penúria e enregelados pelas temperaturas
negativas da região.
Paisagem com patinadores, Joos de
Momper, o Jovem. Óleo sobre madeira, c.1615.
Ilustrativo
da vida dos povos nórdicos, nada intimidados pelo frio do Inverno.
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IV – O Bosque como Cenário: Vida no Bosque,
o Bíblico e o Encantado
Para os nórdicos, o arvoredo é um
lugar convidativo e inspirador, fonte de descobertas e símbolo dos primórdios
da criação, no seu estado mais puro. Converte-se, assim, em cenário ideal para
imortalizar os episódios da mitologia clássica e da Bíblia.
Nos textos explicativos da sala,
alertam-nos para o facto de ser frequente os flamengos pintarem em parceria,
ficando um incumbido da paisagem e outro dos seres humanos (quando os havia, pois
a maioria das telas ficava-se pela vegetação), especializando funções nos ateliers
de enorme produtividade e de reconhecido prestígio internacional.
Rubens e Brueghel funcionaram em
conjunto, como se verá na secção seguinte.
Nesta, a talentosa família Brueghel (contam-se,
pelo menos, 6 pintores, ao longo de 4 gerações) emparelha com especialistas na
figura humana, resultando em telas magníficas:
Entrada na Arca de Noé, Brueghel, o
Novo, 1630.
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As obras patentes no MNAA pertenciam
à colecção privada do artista, só tendo sido conhecidas postumamente. Correspondem
ao estilo narrativo cultivado no último quartel da sua vida, considerando-as a
produção mais pessoal, devidamente emancipada das preferências e sugestões de clientes
e mecenas.
Tendo também desempenhado tarefas
diplomáticas, ao serviço dos arquiduques que, por sua vez, serviam Filipe IV
(Filipe III de Portugal), este acervo espontâneo e menos épico, oscilou entre
cenas mitológicas e devocionais, bem ao gosto da corte espanhola.
Aqui vemos o exemplo da dupla Rubens e
Brueghels, o Velho, que se encarregou do bosque e dos animais:
Visão de Santo Huberto, Peter Paul
Rubens e Jan Brueghel, o Velho.
Óleo sobre madeira, c.1617-1620. (Detalhe)
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Num estilo cortesão, as três grandes telas da
sala exibem imagens exteriores de três edifícios reais flamengos, vistos a
partir dos jardins, pontuados por gamos, veados, pavões, lagos e fontes, canteiros
de flores, socalcos de relva fofa e pequenos bosques frondosos, idílicos. São
eles os palácios de Coudenberg, Tervuren e Mariemont.
Neste trio sobressai o lindíssimo quadro,
atribuído a Brueghel, o Velho, mostrando a fachada principal de Tervuren, com
os arquiduques a passear no relvado em frente ao lago azul, que confere enorme
serenidade e harmonia ao conjunto. Um registo muito
conseguido de um monumento que só chegou aos nossos dias pela pena do grande
mestre flamengo. Compreensivelmente, é das obras mais replicadas no
estacionário da exposição:
Os arquiduques Isabel Clara Eugénia e Alberto no palácio de Tervuren,
em Bruxelas, atribuído a Jan
Brueghel, o Velho. Óleo sobre tela, c.1621.
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VII – Paisagens Exóticas, Terras Longínquas
Pintadas a partir das descrições dos
marinheiros, percebe-se a amálgama de elementos de diferentes partes do globo,
junto aos espécimes fantasiados que povoam o imaginário dos europeus,
bombardeados pelos relatos entusiasmantes sobre um novo mundo longínquo e quase
virgem.
Curiosamente, até nas fantasias há
inúmeros clichés, tais como os índios semi-nus e engalanados com plumagens
coloridas a festejar (q.b. subalternamente) a chegada dos descobridores
ocidentais, estes trajados com alguma solenidade e em poses majestáticas. As
palhotas dos nativos replicam, no fundo, os casebres europeus mais modestos, só
que revestidos com a vegetação que se presumia brotar nos trópicos. As frotas
navais são aprumadíssimas, assemelhando-se a um festival náutico, como se nunca
tivessem sido fustigadas pelas violentas tempestades em alto mar.
Da fauna à flora, passando pela
arquitectura e pelas etnias populacionais, serão raras as imagens sem discrepâncias
gritantes. A falta de rigor impera, até pela perspectiva excessivamente
optimista e europocêntrica, retratando atmosferas tranquilas e ecuménicas que,
só por coincidência, existiram.
VIII – Paisagens de Água: Marinha, Praias,
Portos e Rios
Já na Idade Média, os cenários
aquáticos aparecem em miniaturas dos Livros de Horas (exemplo: o de Van Eyck,
1370/1400), a celebrar as epopeias clássicas da literatura helénica de Homero, Virgílio
e Ovídio, numa interpretação mais modernizada e cristã.
No século XVII, esta temática
autonomiza-se e descarta-se de quaisquer conotações religiosas ou alegóricas,
privilegiando antes as exaltações patrióticas com os combates navais pela
supremacia dos mares, no auge da expansão ultramarina, disputada pelas grandes potências
europeias do Norte da Europa. Ainda assim, domina um tipo de figuração
estática, demasiado alinhada e simétrica, onde prevalece uma concepção estética
alheia à fealdade sanguinária da guerra.
Brueghel, o Velho deu um contributo
relevante para a independentização deste género, impondo uma representação mais
naturalista das paisagens marítimas.
IX - … E em Itália Pintam a Luz
As
denominadas paisagens italianizantes pintam
Roma e o campo em volta da Cidade Eterna, muito apreciados pelos artistas que
faziam périplos profissionais desde a Flandres até à Europa meridional. Aqui se
destacam, a partir de 1620, o holandês Herman van Swanevelt e o francês Claude
Lorrain, que se mudaram para Itália, arrastando uma horda de discípulos.
Fascinados
pela luz quente e dourada do sul, multiplicam-se em exercícios pictóricos a todas as horas do dia, sobretudo ao poente e ao nascer-do-sol, no afã
de representar esta novidade tão difícil de descrever aos seus conterrâneos.
A
encomenda de meia centena de obras para decorar o novo Palácio Bom Retiro, de
Filipe IV, fixou-se nas narrativas religiosas e nas paisagens bucólicas, à moda
de Itália, que se quadrariam melhor com o espaço onde o palácio real foi
edificado: os terrenos do antigo Convento dos Jerónimos.
Até 30 de Março, ainda há tempo para saborear a mostra dos
57 quadros do Prado. Aos Sábados, o horário estende-se até às 21h00 e o bilhete
pode ser comprado online, para se evitarem esperas em filas intermináveis.
Maria Zarco
(a preparar o
próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Para informação sobre horários e visitas
guiadas consultar a página do Museu:
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