03 março 2014

Vai um gin do Peter’s?

Há filmes que valem pela revelação de diferentes pontos de vista de uma realidade, enriquecendo-a e ajudando-nos a perceber a diversidade das motivações humanas. Assim é, em versão maior --- «A CONDESSA DESCALÇA» (1954) ou, nos nossos dias e em versão mais modesta --- «PHILOMENA»(1).

Que pode um jornalista britânico – Martin Sixsmith – licenciado por Oxford, com uma carreira fulgurante nos meandros do jet set dos poderosos do Ocidente, achar de uma enfermeira reformada, irlandesa, de um basismo intelectual confrangedor, imagem acabada da pacóvia?

Como pode sintonizar com uma pessoa tão desprotegida e inapta, tentando incutir-lhe um mínimo de discernimento a ver se a pacóvia aprende, finalmente, a lidar com a complexidade da vida?

Mais: teria alguma coisa a aprender com ela, para além de uma eventual receita de bolo gaélico? O quê, lições de vida, das que nos obrigam a rever as nossas posições mais convictas? Com ela? A saloia que se enfrasca em concursos de televisão acéfalos?


Naturalmente, o filme segue o curso da realidade, como é comum ela apresentar-se-nos, a corresponder na perfeição à óptica do craque do jornalismo… Aliás, é dito que se baseia em factos verídicos, ocorridos em 1952. São eles, na perspectiva realista (e mercantil) da imprensa: uma história dilacerante, com os ingredientes vendáveis em revistas cor-de-rosa: a vítima inocente, os maus cruéis e sem remissão, um volte-face imprevisto, muito suspense pelo caminho e um clímax comovente. Era o script oferecido ao recém-despedido do nobre jornalismo político, depois de ter sido apanhado numa armadilha de Downing Street. Claro que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar tal filão, forçado a enveredar pela edição mais popular de notícias de sociedade. Curiosamente, a frieza calculista e implacável que conhecera no jornalismo do poder, mantinha-se inalterado na imprensa cor-de-rosa. Só que as vítimas não tinham guarda-costas nem assessores de imprensa… Eram cidadãos comuns, indefesos face à pressão comercial dos media. Estaria a pobre irlandesa reformada – a vítima, no script -- preparada para o exercício triturante de revisitar um passado de dor e humilhação ao lado de uma teleobjectiva sedenta de vender notícias? Isto é: o desgosto dela?


A história tinha sido dada de bandeja pela própria filha, desejosa de fazer justiça e denunciar os abusos de que a mãe fora vítima, na adolescência. Recuamos aos anos 50, quando uma colegial de um internato de freiras da Irlanda do Norte se deixa encantar com os piropos simpáticos de um rapaz, numa noite de feira e brincadeira… acabando grávida. Aos 13 anos, vemo-la depois no gabinete da madre prioresa, lavada em lágrimas, a assumir que alinhara. Sóbria, aflita, mas muito franca. Imediatamente abandonada pela família, que a declara morta, fica à mercê do parco apoio do convento, onde lhe oferecem guarida ao preço de trabalho como serviçal, 7 dias por semana, com folgas diárias, de apenas 1 hora, para ver o filho. Outras adolescentes estão nas mesmas circunstâncias, vivendo sofregamente aqueles 60 minutos com os seus bebés. E isto é só o fim do princípio, pois as Irmãs dão as crianças para adopção, a troco de boas maquias de famílias abastadas norte-americanas, provavelmente considerando-as mais capazes de educar aqueles pequeninos do que as jovens mães, párias da sociedade.


Não há palavras para a dor lancinante que Philomena sente ao descobrir que o seu pequenino também parte no calhambeque luzidio de um casal rico dos EUA. Sobre ela desce-se, então, uma cortina de silêncio impiedoso. Nunca mais o convento lhe dá a menor pista sobre o paradeiro da criança, nas insistentes visitas, ao longo dos anos. Onde estaria? Quem seria, 40 anos depois? Um enigma que o ex-jornalista da BBC se propõe ajudá-la a desvendar, ao preço de ver o seu drama exposto ao milímetro, nas revistas.  

Do Reino Unido, para onde se tinha mudado na adolescência, Philomena (já com uns 70) embarca para os EUA, pátria de adopção do filho perdido. Uma viagem de redescobertas duras, a tentar chegar ao bebé que lhe fora tirado, e perceber o que teria ele preservado das raízes irlandesas.

O itinerário emocional dos dois – jornalista e mãe sem filho – é empolgante e pejado de imprevistos. Compreensivelmente, quase tudo nos chega através do olhar de Martin, tocado pel0 drama dela, mas cansado da personalidade tão mediana, tagarela e desinteressante daquela reformada simplória e demasiado condescendente com as injustiças de que fora vítima. Parecia não se saber dar ao respeito.


Até a sua fé católica, muito piedosa e de aparência submissa, parecia-lhe um puro contra-senso, depois de tudo o que ela vivera no convento. Algo grotesco, para um intelectual informado e reivindicativo, plenamente consciente dos seus direitos! As conversas desencontradas, ao longo das intermináveis estradas americanas, com picos de confronto quando Martin testava a firmeza da fé dela (e a arreliava, por considerar inaceitável) são muito reveladoras, esboçando os primeiros sinais de uma mulher menos básica e desprovida do que aparentava. Ou com uma fibra inimaginável sob um comportamento comezinho e popularucho nas situações prosaicas da vida.

As tiradas lapidares dela às provocações dele nos assuntos de fé -- para Martin uma crendice infantil e indigna de adultos amadurecidos – denunciam uma combatividade vinda de um interior vigoroso e igualmente consciente dos seus direitos, que nada antes deixara adivinhar. Respostas certeiras, à letra, sem se deixar minimamente intimidar com o sarcasmo dele, começam a deixá-lo ligeiramente confuso, para além dos óbvios remorsos por a infernizar q.b. A clarividência com que Philomena lhe lê os pensamentos e esclarece que, obviamente, não estava a pensar atirar-se da janela, deixam-no adivinhar-lhe uma argúcia que não colava muito com o retrato da simplória, que guardara dos primeiros encontros. A tal que nunca percebia as suas graças sofisticadas, à base de trocadilhos subtis e citações sonantes. 

De facto, ela só se diferenciava nos momentos difíceis e tensos – quando ele titubeava e se limitava a ripostar com a verborreia argumentativa de uma intelectualidade muito cheia de si – mostrando uma firmeza e acutilância que nem ele tinha, apesar do seu currículo académico e profissional.

Aos poucos, a bacoca irlandesa acantonada num catolicismo aparentemente arcaico vai-se transfigurando, a um ponto tão inimaginável que, no final, ele prescinde de publicar a sua reportagem jornalística, não por falta de atractivos, mas por o último gesto de Philomena evidenciar quanto ele deixara de estar à altura da sua história, no fundo, da forma como ela escolhera viver e encarar a realidade, adversários e algozes à cabeça.

É tocante a comoção dele (sem lágrimas; só atordoamento e muita lealdade a reconhecer a originalidade dela), ao perceber que esbarrara no seu próprio limite, quando a simplicidade heróica dela introduz uma nota de grandeza magnânima, precisamente numa situação de notável mediocridade e crueldade empedernida, no convento, em que todos os outros – ele incluído – se tinham deixado enredar. Enquanto Martin se ficara pela revolta e pelo desrespeito (provavelmente, como a maioria de nós, no lado de cá do ecrã), ela dispara para outro nível, daqueles em que o ser humano se suplanta e franqueia um horizonte mais digno e bondoso, onde todos cabem! Misterioso. Como misterioso é o presente que ele lhe oferece, no final, numa homenagem simbólica à fé cristalina de Philomena, ainda indecifrável para ele, mas capaz de plasmar no rosto humano uma beleza indizível! Contagiante. Que não está ao alcance da nossa imaginação, sempre pacóvia quando a escala se amplia tanto. Nem a longa carreira de jornalismo, a cruzar-se com personalidades célebres, nem a elite académica de Oxford lhe tinham mostrado nada de semelhante. Como bom jornalista, faz jus ao que vê e respeita a vontade dela, imprevisível, nos antípodas dele. Pois, desta vez, era ela quem lhe pedia para publicar a notícia, de modo a ajudar outras mães com um passado de perda análogo. Veio a ser um livro, publicado em 2009, depois transposto para o cinema, em 2013.


A Philomena real, que inspirou o livro e o filme, tendo sido recebida pelo Papa Francisco, que a ajudou a consolar do enorme desgosto de há 60 anos.
  
Igual a si própria, Philomena move-se pelos motivos mais positivos. Rendido à sua grandeza e mesmo sem a perceber nem lhe conseguir antecipar as decisões, ele já não hesita em seguir as escolhas dela, a quem as feridas acumuladas, desde há tantos anos, não diminuíram a bonomia nem ensombraram a esperança. Um case study, tanta sabedoria de vida sob a aparência mais desengraçada.

Martin é bem o porta-voz da mentalidade ocidental, que canaliza a coragem para a denúncia de injustiças, investindo e desgastando-se em campanhas de protestos. Mas nada preparada para o desafio mais subtil e vital que a protagonista personifica: a coragem de ser feliz, apesar de todos os desgostos que se lhe foram atravessando no caminho. Nela, a simplicidade assume uma pureza sofisticada e rara, daquelas que levamos muito tempo a descobrir.
  
Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
PHILOMENA
Título traduzido em Portugal:
FILOMENA

Realização:
Stephen Frears
Argumento:
Steve Coogan e Jeff Pope
Produzido por:
Tracey Seaward, Gabrielle Tana
Fotografia:
Robbie Ryan
Banda Sonora:
Alexandre Desplatt
Duração:
98 min.
Ano:      
2013
País:
Reino Unido

        Elenco:

Judy Dench   (Philomena em mais velha)
Stephen Coogan  (jornalista e autor do livro – Martin Sixsmith)
Sophie Kennedy Clark  (Philomena em adolescente)
Barbara Jefford  (Irmã Hildegarde)

Local das filmagens:
Irlanda do Norte (Reino Unido), Inglaterra (Londres, Shirburn Castle, Oxfordshire, etc.), EUA (Maryland, Washignton D.C., etc.)
Site oficial:

http://philomenamovie.com/index.html


Premiado nos Festivais de Cinema de Toronto e de Veneza.

Baseado no livro de Martin Sixsmith: «The lost child of Philomena Lee», publicado em 2009.





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