Há filmes que valem pela
revelação de diferentes pontos de vista de uma realidade, enriquecendo-a e ajudando-nos
a perceber a diversidade das motivações humanas. Assim é, em versão maior --- «A
CONDESSA DESCALÇA» (1954) ou, nos nossos dias e em versão mais modesta --- «PHILOMENA»(1).
Que pode um jornalista
britânico – Martin Sixsmith – licenciado por Oxford, com uma carreira
fulgurante nos meandros do jet set dos poderosos do Ocidente, achar de uma
enfermeira reformada, irlandesa, de um basismo intelectual confrangedor, imagem
acabada da pacóvia?
Como pode sintonizar com uma
pessoa tão desprotegida e inapta, tentando incutir-lhe um mínimo de
discernimento a ver se a pacóvia aprende,
finalmente, a lidar com a complexidade da vida?
Mais: teria alguma coisa
a aprender com ela, para além de uma eventual receita de bolo gaélico? O quê, lições de vida, das que nos obrigam a
rever as nossas posições mais convictas? Com ela? A saloia que se enfrasca em
concursos de televisão acéfalos?
Naturalmente, o filme
segue o curso da realidade, como é
comum ela apresentar-se-nos, a corresponder na perfeição à óptica do craque do
jornalismo… Aliás, é dito que se baseia em factos verídicos, ocorridos em 1952.
São eles, na perspectiva realista (e
mercantil) da imprensa: uma história dilacerante, com os ingredientes vendáveis
em revistas cor-de-rosa: a vítima inocente, os maus cruéis e sem remissão, um
volte-face imprevisto, muito suspense pelo caminho e um clímax comovente. Era o
script oferecido ao recém-despedido
do nobre jornalismo político, depois
de ter sido apanhado numa armadilha de Downing Street. Claro que não podia dar-se
ao luxo de desperdiçar tal filão, forçado a enveredar pela edição mais popular
de notícias de sociedade. Curiosamente, a frieza calculista e implacável que
conhecera no jornalismo do poder, mantinha-se inalterado na imprensa
cor-de-rosa. Só que as vítimas não tinham guarda-costas nem assessores de
imprensa… Eram cidadãos comuns, indefesos face à pressão comercial dos media.
Estaria a pobre irlandesa reformada – a vítima, no script -- preparada para o exercício triturante de revisitar um
passado de dor e humilhação ao lado de uma teleobjectiva sedenta de vender
notícias? Isto é: o desgosto dela?
A história tinha sido dada
de bandeja pela própria filha, desejosa de fazer justiça e denunciar os abusos
de que a mãe fora vítima, na adolescência. Recuamos aos anos 50, quando uma
colegial de um internato de freiras da Irlanda do Norte se deixa encantar com
os piropos simpáticos de um rapaz, numa noite de feira e brincadeira… acabando grávida.
Aos 13 anos, vemo-la depois no gabinete da madre prioresa, lavada em lágrimas,
a assumir que alinhara. Sóbria, aflita, mas muito franca. Imediatamente abandonada
pela família, que a declara morta, fica à mercê do parco apoio do convento,
onde lhe oferecem guarida ao preço de trabalho como serviçal, 7 dias por
semana, com folgas diárias, de apenas 1 hora, para ver o filho. Outras
adolescentes estão nas mesmas circunstâncias, vivendo sofregamente aqueles 60
minutos com os seus bebés. E isto é só o
fim do princípio, pois as Irmãs dão as crianças para adopção, a troco de
boas maquias de famílias abastadas norte-americanas, provavelmente
considerando-as mais capazes de educar aqueles pequeninos do que as jovens mães,
párias da sociedade.
Não há palavras para a
dor lancinante que Philomena sente ao descobrir que o seu pequenino também parte
no calhambeque luzidio de um casal rico dos EUA. Sobre ela desce-se, então, uma
cortina de silêncio impiedoso. Nunca mais o convento lhe dá a menor pista sobre
o paradeiro da criança, nas insistentes visitas, ao longo dos anos. Onde
estaria? Quem seria, 40 anos depois? Um enigma que o ex-jornalista da BBC se
propõe ajudá-la a desvendar, ao preço de ver o seu drama exposto ao milímetro,
nas revistas.
Do Reino Unido, para onde
se tinha mudado na adolescência, Philomena (já com uns 70) embarca para os EUA,
pátria de adopção do filho perdido. Uma viagem de redescobertas duras, a tentar
chegar ao bebé que lhe fora tirado, e perceber o que teria ele preservado das
raízes irlandesas.
O itinerário emocional
dos dois – jornalista e mãe sem filho – é empolgante e pejado de imprevistos.
Compreensivelmente, quase tudo nos chega através do olhar de Martin, tocado
pel0 drama dela, mas cansado da personalidade tão mediana, tagarela e
desinteressante daquela reformada simplória e demasiado condescendente com as
injustiças de que fora vítima. Parecia não se saber dar ao respeito.
Até a sua fé católica,
muito piedosa e de aparência submissa, parecia-lhe um puro contra-senso, depois
de tudo o que ela vivera no convento. Algo grotesco, para um intelectual
informado e reivindicativo, plenamente consciente dos seus direitos! As conversas
desencontradas, ao longo das intermináveis estradas americanas, com picos de
confronto quando Martin testava a firmeza da fé dela (e a arreliava, por
considerar inaceitável) são muito reveladoras, esboçando os primeiros sinais de
uma mulher menos básica e desprovida do que aparentava. Ou com uma fibra
inimaginável sob um comportamento comezinho e popularucho nas situações prosaicas da vida.
As tiradas lapidares dela
às provocações dele nos assuntos de fé -- para Martin uma crendice infantil e
indigna de adultos amadurecidos – denunciam uma combatividade vinda de um
interior vigoroso e igualmente consciente dos seus direitos, que nada antes
deixara adivinhar. Respostas certeiras, à letra, sem se deixar minimamente
intimidar com o sarcasmo dele, começam a deixá-lo ligeiramente confuso, para
além dos óbvios remorsos por a infernizar q.b. A clarividência com que Philomena
lhe lê os pensamentos e esclarece que, obviamente, não estava a pensar
atirar-se da janela, deixam-no adivinhar-lhe uma argúcia que não colava muito
com o retrato da simplória, que guardara dos primeiros encontros. A tal que
nunca percebia as suas graças sofisticadas, à base de trocadilhos subtis e
citações sonantes.
De facto, ela só se
diferenciava nos momentos difíceis e tensos – quando ele titubeava e se
limitava a ripostar com a verborreia argumentativa de uma intelectualidade
muito cheia de si – mostrando uma firmeza e acutilância que nem ele tinha,
apesar do seu currículo académico e profissional.
Aos poucos, a bacoca irlandesa acantonada num
catolicismo aparentemente arcaico vai-se transfigurando, a um ponto tão inimaginável
que, no final, ele prescinde de publicar a sua reportagem jornalística, não por
falta de atractivos, mas por o último gesto de Philomena evidenciar quanto ele deixara
de estar à altura da sua história, no fundo, da forma como ela escolhera viver
e encarar a realidade, adversários e algozes à cabeça.
É tocante a comoção dele
(sem lágrimas; só atordoamento e muita lealdade a reconhecer a originalidade dela), ao perceber que
esbarrara no seu próprio limite, quando a simplicidade heróica dela introduz
uma nota de grandeza magnânima, precisamente numa situação de notável
mediocridade e crueldade empedernida, no convento, em que todos os outros – ele
incluído – se tinham deixado enredar. Enquanto Martin se ficara pela revolta e
pelo desrespeito (provavelmente, como a maioria de nós, no lado de cá do ecrã),
ela dispara para outro nível, daqueles em que o ser humano se suplanta e franqueia
um horizonte mais digno e bondoso, onde todos cabem! Misterioso. Como
misterioso é o presente que ele lhe oferece, no final, numa homenagem simbólica
à fé cristalina de Philomena, ainda indecifrável para ele, mas capaz de plasmar
no rosto humano uma beleza indizível! Contagiante. Que não está ao alcance da
nossa imaginação, sempre pacóvia
quando a escala se amplia tanto. Nem a longa carreira de jornalismo, a
cruzar-se com personalidades célebres, nem a elite académica de Oxford lhe tinham
mostrado nada de semelhante. Como bom jornalista, faz jus ao que vê e respeita
a vontade dela, imprevisível, nos antípodas dele. Pois, desta vez, era ela quem
lhe pedia para publicar a notícia, de modo a ajudar outras mães com um passado
de perda análogo. Veio a ser um livro, publicado em 2009, depois transposto
para o cinema, em 2013.
A Philomena real, que inspirou o livro e o filme, tendo
sido recebida pelo Papa Francisco, que a ajudou a consolar do enorme desgosto
de há 60 anos.
|
Igual a si própria,
Philomena move-se pelos motivos mais positivos. Rendido à sua grandeza e mesmo
sem a perceber nem lhe conseguir antecipar as decisões, ele já não hesita em
seguir as escolhas dela, a quem as feridas acumuladas, desde há tantos anos,
não diminuíram a bonomia nem ensombraram a esperança. Um case study, tanta sabedoria de vida sob a aparência mais
desengraçada.
Martin é bem o porta-voz
da mentalidade ocidental, que canaliza a coragem para a denúncia de injustiças,
investindo e desgastando-se em campanhas de protestos. Mas nada preparada para
o desafio mais subtil e vital que a protagonista personifica: a coragem de ser feliz, apesar de todos
os desgostos que se lhe foram atravessando no caminho. Nela, a simplicidade
assume uma pureza sofisticada e rara, daquelas que levamos muito tempo a
descobrir.
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1)
FICHA TÉCNICA
Título
original:
|
PHILOMENA
|
Título traduzido
em Portugal:
|
FILOMENA
|
Realização:
|
Stephen Frears
|
Argumento:
|
Steve Coogan
e Jeff Pope
|
Produzido por:
|
Tracey Seaward, Gabrielle Tana
|
Fotografia:
|
Robbie Ryan
|
Banda Sonora:
|
Alexandre Desplatt
|
Duração:
|
98 min.
|
Ano:
|
2013
|
País:
|
Reino Unido
|
Elenco:
|
Judy Dench
(Philomena em mais velha)
Stephen Coogan (jornalista e autor do livro – Martin
Sixsmith)
Sophie Kennedy Clark (Philomena em adolescente)
Barbara Jefford (Irmã Hildegarde)
|
Local das filmagens:
|
Irlanda do Norte (Reino Unido), Inglaterra
(Londres, Shirburn Castle, Oxfordshire, etc.), EUA (Maryland, Washignton
D.C., etc.)
|
Site oficial:
|
http://philomenamovie.com/index.html
|
Premiado nos Festivais de Cinema de Toronto e de
Veneza.
Baseado no livro de Martin Sixsmith: «The lost child of Philomena Lee»,
publicado em 2009.
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