17 julho 2014

Poesias dos dias que correm *



Missão

O poeta cristão seria o que viesse

De látego e, dele pálido, batido

Não o amuseur de quermesse

Das Cinco Chagas desvanecido.

No seu cubículo compungido à noite.

Catando na alma as gordas lesmas,

Sibilara-lhe em sílabas o açoite

Em suas carnes mesmas.


O poeta é terror no ermo adornado,

Lâmpada e vara quente.

Já me sinto aterrado:

Falta-me ser ardente.

(Vitorino Nemésio)

***

O amor não amado

Nem sei porque ainda falo em Deus.


Se de mim me afasto e obedeço ao mundo

- traz ele consigo um sonho para levedar

na perspicácia absorta de um farol de angústia –

e não concedo esperança ao que anda em mim

podendo ser volúpia da memória livre;

se Deus partiu para o limite da vida

quando olhámos ambos a realidade das coisas;

se não existe uma barca onde o rumo se invente,

embora as pontes sejam dessas barcas;

se onde estiver um homem não estará outro homem.


não sei, de facto, porque falo de Deus.

(Jorge de Sena)

***

Lembra-te ó homem

Lembra-te ó homem daquele tempo antigo

considera os anos da geração passada

quando a cidade das palmeiras era olhada

por cristo que passava entre o trigo


ou anos antes pelo inimigo

que falava a moisés do mais alto do fasga

Da hortelã da arruda de qualquer erva plantada

pagaste o dízimo ó meu triste amigo


quando o amor é que exigia rapidez

Tens de deixar casa vergéis e jardins

coisas modestas como as unhas e os amendoins


E o que vai ser de ti? Serás talvez

não o que deus não foi para ti: rins

cingidos mas um nome para a tua timidez

(Ruy Belo)


***

Escuto

Escuto mas não sei

Se o que ouço é silêncio

Ou deus


Escuto sem saber se estou ouvindo

O ressoar das planícies do vazio

Ou a consciência atenta

Que nos confins do universo

Me decifra e fita


Apenas sei que caminho como quem

É olhado amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


***

Nota: lidos em papel e retirados daqui. Curiosamente, o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen remata, na última página, o livo Deus pregou-me uma partida, que escrevi em co-autoria com a Rita Jonet.


1 comentário:

Anónimo disse...

Muito interessante e muito interpelante. A poesia, em sentido lato, sempre foi uma forma de expressão que pretende (ou ousa) ir além da linguagem. Como o canto do pássaro que anuncia a Primavera, como a inquietude dos sons nocturnos que nos estremecem, como os signos e os símbolos que nos conduzem até dimensões mais "etéreas" - a poesia é, não raro, uma "sagrada" reinvenção, a procura de uma certa pureza, a demanda interior de um país inteiramente novo. Por vezes, uns instrumento ao serviço de demiurgos; outras tantas, a voz humana do que parece indizível.

Daqui até à metafísica, é um passo pequeno. E, num país estruturalmente religioso - católico, melhor dizendo - e com uma prática poética longa, persistente, resistente, a intersecção destes planos é bastante rica. E, a espaços, de uma beleza incandescente.

Ruy Belo, por exemplo - quantos sabem que há nele um católico em dúvida, mas também um católico que crê? Um homem interroga-se e são já as Índias..

Obrigado, caro mestre-de-cerimónias-e-editor-em-chefe, pela divulgação deste novel livro.

Um abraço,

gi.

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