Já aqui neste estabelecimento abordei o tema por várias vezes, seguramente com menos competência, mas não menos emoção: entre mortes e doenças graves - tudo de gente relativamente nova e próxima - o meu mundo, como o de todos nós, vai-se povoando de dor. Ontem, ao visitar um amigo nessas condições, confrontei-me com este sentimento de injustiça: não é só o sofrimento no próximo, mas também nos outros, danos colaterais numa guerra que não quiseram. Na boca de muitos, crentes num Deus que não é senão amor, a interrogação feita com voz fragilmente humana: onde está Ele?
Ontem também, depois de um almoço onde fui, mais uma vez, confrontado com a finitude de tudo, encontrei este texto aqui. Um texto simples, que gostei de ler.
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Tocado pelo acidente que deixou quadriplégica a sua irmã, antes dos 30 anos, o padre jesuíta Richard Leonard aborda algumas das questões mais duras colocadas pela aparente "ausência" de Deus, precisamente quando Ele é mais preciso.
Introdução
In "Onde diabo está Deus?" (Editora Paulinas)
Richard Leonard
A maior parte dos livros filosóficos ou teológicos sobre o tema de como encontrar Deus no sofrimento humano tende a ser bastante académico. Sempre os achei muitíssimo importantes, mesmo quando discordei dos seus argumentos ou conclusões. Tenho até sentido que a distância intelectual que estabelecem pode ser útil para dissecar uma interrogação que é tudo menos distante.
Embora eu espere que este livro seja inteligente, ele não foi pensado para os académicos. Não vou reciclar as inúmeras facetas dos veneráveis argumentos da investigação intelectual a que atualmente chamamos teodiceia. Este livro emerge da experiência, da forma como eu tive de lutar corpo a corpo com uma tragédia familiar que me obrigou a confrontar com algumas interrogações fundamentais que têm a ver com o agarrar-me à minha crença num Deus de amor frente ao mal. Não tenho pretensões excessivas acerca desta obra acessível. Ela pertence claramente à área da chamada teologia especulativa. Ao longo dos séculos, mentes maiores do que a minha têm-se debruçado sobre estas questões e chegaram a conclusões diferentes acerca das mesmas. Sinto-me feliz por isso. O problema é que quando mais precisei de ser ajudado pelas suas intuições, mais as suas respostas me pareceram inadequadas. Não estou a acusá-las. A grande maioria desses autores não teve o benefício dos estudos bíblicos, da teologia, da ciência e da psicologia contemporâneas para lhes dar uma mão.
A Igreja sabe, também, que não pode dar respostas definitivas acerca de tais questões porque, do lado de cá do túmulo, simplesmente não sabemos onde ou como Deus se encaixa em relação ao sofrimento do mundo. Por isso, não tenho outras pretensões neste meu trabalho, senão dizer apenas que ele me ajudou a guardar a fé num Deus de amor, enquanto caminhava no «vale das lágrimas» e na «sombra da morte». (...)
Jill ligou à minha mãe por volta da uma e meia da manhã, para dizer que Tracey tivera um acidente, e que, embora desconhecessem a extensão das lesões, a minha mãe devia ir logo para lá. A continuação da história é um «momento mãe». A minha mãe enviuvara quando tinha 32 anos. O meu pai morreu de um AVC fulminante, aos 36 anos, e a minha mãe passou a ser a única progenitora do meu irmão, de sete anos, da minha irmã, de cinco, e minha, tendo eu dois anos. A minha mãe, que nessa altura vivia sozinha, decidiu que, em vez de acordar o Peter e a mim, seria melhor que nós os dois tivéssemos uma noite bem dormida, pois não havia nada que qualquer um de nós pudesse fazer até de manhã. Não ligou a ninguém. Ficou sentada a beber cafés e a fumar cigarros até ao alvorecer.
Pelas nove horas, a minha mãe e eu já estávamos num avião para Darwin. Se o leitor alguma vez foi atingido por uma tragédia na sua própria vida, entenderá a negação em que ambos estávamos: naquela viagem de avião, tudo nos pareceu histericamente divertido. Ambos desatámos a rir pensando que, à nossa chegada, veríamos Tracey sentada na cama a comer um bife e a beber uma cerveja, e a troçar de nós, por sermos tão melodramáticos. Esse final feliz não viria a acontecer.
Ao chegarmos, havia tantas religiosas de véu e de hábito no aeroporto, que eu pensei que o Papa devia vir no avião seguinte. «Os médicos dir-vos-ão tudo quando lá chegarmos. » Levaram-nos até junto de Tracey, que tinha um longo lençol puxado até ao queixo. Tinha os braços esticados sobre extensões de madeira colocadas dos lados da cama, e havia dois enormes espigões enterrados no seu crânio com pesos suspensos na parte de trás da cama para manter a sua cabeça imóvel. A partir de então, nunca mais consegui olhar para um crucifixo da mesma maneira.
A minha mãe assumiu uma linguagem muito clínica, começando a perguntar a Tracey o que é que ela conseguia mexer. Com duas grandes lágrimas a escorrerem silenciosamente de cada lado do rosto, a minha irmã simplesmente respondeu: «Não passo de uma quadriplégica, mãezinha. Desloquei a quinta vértebra cervical e fraturei a sexta e a sétima vértebras. É tão mau como parece.»
Combater e fugir são duas reações comuns ao choque. Optámos pela segunda. Tracey diz que não percebeu quem saiu mais depressa porta fora, se a minha mãe ou eu. A irmã da pastoral da saúde conduziu-nos a um quarto, onde nos deixou sozinhas. Eu sentei-me a uma secretária e, numa das primeiras vezes na minha vida, fiquei sem palavras. A minha mãe começou a andar de um lado para o outro. Estava zangada. Era como se uma das crias daquela leoa tivesse sido abandonada, para morrer, e ela quisesse apanhar a pessoa responsável por isso. Enquanto andava assim, a minha mãe começou a fazer uma série de perguntas:
Como é que Deus pôde fazer isto à Tracey?
Como é que Deus nos pôde fazer isto?
Que mais quer Deus de mim, nesta vida?
E, pior de tudo: onde diabo está Deus?
Eram perguntas retóricas, mas eu era um jesuíta. De Deus entendia eu e, por isso, arrisquei uma resposta. Mas de cada vez que começava a falar, a minha mãe respondia-me com aspereza. Em momentos assim, muitas vezes descarregamos sobre as pessoas mais próximas de nós. Quis então recordar à minha mãe que também era uma das suas crias!
Contudo, enchi-me de coragem e desenvolvi, provavelmente, o debate teológico mais doloroso e mais importante que jamais terei na minha vida. Disse à minha mãe que, se alguém me conseguisse provar que Deus, na noite anterior, se sentou, no Céu, e pensou consigo «preciso de mais uma quadriplégica, e Tracey serve, pelo que vamos provocar um acidente de automóvel para que isso aconteça» – se aquilo fosse a vontade de Deus –, então deixaria o sacerdócio, os Jesuítas e a Igreja. Eu não conheço esse Deus, não quero servir esse Deus nem ser seu representante no mundo. Nesse momento, a minha mãe arremeteu de novo contra mim: «Então onde é que está Deus?» E eu respondi-lhe, delicadamente: «Penso que Deus está tão devastado como nós, neste momento, pelo facto de uma rapariga generosa e altruísta, que já percorreu o mundo inteiro a tratar dos pobres, se ter transformando na pessoa mais pobre que conhecemos.» Não tinha nada a ver com dinheiro. Eu não tive de escolher entre um Deus de amor e um Deus que nos inflige coisas cruéis. Como o Deus que geme frente a cada perda, em Isaías, ou Jesus que chora diante do túmulo do seu melhor amigo, em João 11, Deus não estava fora da nossa dor, mas acompanhava-nos nela, segurando-nos nos seus braços, partilhando o nosso desgosto e a nossa dor.
Nos meses seguintes, recebi algumas das cartas mais terríveis e assustadoras de alguns dos melhores cristãos que conhecia. Alguns escreveram: «A Tracey deve ter feito alguma coisa que ofendeu profundamente a Deus, por isso teve de ser castigada aqui na Terra, pois com Deus não se brinca!» E prosseguiam: «Agora a única forma de ter paz com Deus é aceitar a sua vontade.» Eles acreditam, de facto, que Deus se volta contra nós. De 1988 para cá, descobri que essa teologia é muito mais comum do que alguma vez poderia imaginar. Tenho encontrado pessoas com cancro, casais com problemas de fertilidade e pais cujo filho morreu, que me perguntaram o que terão feito para merecer a maldição divina de que julgam ter sido alvo. Dá-me vontade de chorar só de pensar neles.
Outros escreveram: «O sofrimento da Tracey está a enviar tijolos gloriosos para o Céu, para construir a sua mansão celeste quando ela morrer.» Esta é a habitualmente chamada «teologia da recompensa no Céu, quando morreres». Eu não sabia que no Céu, nos inúmeros quartos da casa do Pai, há suites de primeira classe, executiva e económica. E, se assim for, quer dizer que o Céu será o primeiro guiché da minha vida em que não andarei à procura de um lugar melhor! De facto, se para chegar do bairro de lata, logo à entrada dos portões celestiais, ao melhor bairro do Céu significa ter de ser lavado, alimentado, virado, limpo e vestido por outra pessoa todos os dias durante mais vinte anos, então eu não posso pagar o preço da deslocação através da cidade. E acho que poucas pessoas poderão.
Finalmente, recebi montes de cartas e de postais que diziam: «A vossa família é verdadeiramente muito abençoada, porque Deus só envia as maiores cruzes àqueles que as conseguem suportar.» Acho sempre graça à forma como algumas pessoas, que não estão a receber essa bênção particular, a conseguem ver claramente como tal no sofrimento das outras pessoas. Mas detenhamo-nos um pouco a pensar nesta frase. Ouvimo-la com frequência. Se for verdade, então todos nós nos deveríamos ajoelhar de manhã, à tarde e à noite, proferindo uma única oração: «Eu sou um fraco, eu sou um fraco, eu sou um fraco, meu Deus. Não me consideres uma pessoa forte.» Porque se essa teologia for verdadeira e Deus pensar que somos fortes, teremos de ser abençoados com uma grande cruz.
Além dessas reações, havia pessoas bondosas que me tentavam confortar, dando o habitual trio de respostas frente às más notícias: «É tudo um mistério»; «os meus caminhos não são os vossos caminhos»; e «só no Céu descobriremos qual era o plano de Deus». Há uma certa verdade em cada uma destas afirmações, mas eu não estou nada convencido de que sejam completamente verdadeiras no sentido que algumas pessoas lhes atribuem. Muitas vezes são utilizadas por pessoas boas para dizer algo que esperam ser reconfortante. Não tiveram esse efeito em mim. Por exemplo, embora seja completamente verdade que os caminhos e os pensamentos de Deus são infinitamente maiores do que tudo o que podemos esperar ou imaginar, evocar Isaías 55 no meio do sofrimento das pessoas tende a colocar Deus fora do nosso drama humano, como um observador que tudo sabe e que, no entanto, não se preocupa com o curso da nossa vida. No entanto, penso que um dos aspetos mais extraordinários da encarnação, de Deus se fazer um connosco em Jesus Cristo, é precisamente que Deus nos quer revelar os seus caminhos e pensamentos, quer ser conhecido, sobretudo naqueles momentos em que por vezes nos entregamos ao maior desespero. A vida, morte e ressurreição de Jesus mostram-nos que Deus se insertou na história humana da mais íntima das maneiras. Nós não acreditamos nem amamos um ser indiferente que se revela de forma misteriosa e que, depois, deserta quando a ação das nossas vidas se torna demasiado dura. A encarnação mostra-nos claramente que Deus está empenhado em participar na aventura humana em toda a sua complexidade e dor.
Por isso estou muito grato aos correspondentes que me escreveram depois do acidente da minha irmã. Eles alertaram-me para a frequência com que ouvimos alguma teologia terrível, que não nos aproxima de Deus nos piores momentos da nossa vida. Aliena-nos. Alienou-me, por algum tempo, acreditar num Deus que quer que nós travemos um inteligente debate acerca das complexidades de onde e como a presença divina encaixa no nosso frágil universo humano. Por isso aqui estão os meus sete passos para a sanidade espiritual, quando somos tentados e cedemos à tentação de perguntar: «Onde diabo está Deus?»
1. Deus não envia, diretamente, dor, sofrimento e doença. Deus não nos castiga.
2. Deus não envia acidentes para nos ensinar coisas, embora nós possamos aprender com eles.
3. Deus não quer terramotos, inundações, secas ou outros desastres naturais. A oração pede a Deus que nos mude para mudarmos o mundo.
4. A vontade de Deus manifesta-se mais na totalidade de uma situação do que nos seus detalhes.
5. Deus não precisava do sangue de Jesus. Jesus não veio apenas «para morrer», mas Deus usou a sua morte para anunciar o fim da morte.
6. Deus criou o mundo que é menos que perfeito, e no qual o sofrimento, a doença e a dor são realidades; se assim não fosse, estaríamos no Céu. Alguns desses problemas somos nós que os provocamos a nós mesmos, e culpamos Deus.
7. Deus não quer acabar connosco.
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