Por vezes, é preciso que as conclusões mais óbvias sobre a natureza humana sejam defendidas por cientistas de renome, para voltarmos a acreditar que são possíveis e que fazem sentido.
Há, pelo menos, dois termos que foram tão glosados e usurpados pelos políticos (sobretudo os piores déspotas do século XX), além de desgastados por modas frívolas e pseudo-libertadoras, que ficaram reduzidos a contos infantis, bons para enganar aqueles idealistas incautos que perseguem sonhos como as crianças gostam de correr atrás de bolinhas de sabão. Depois de se tornarem em terreno fértil para as megas desilusões, sobreveio-lhes o cinismo dos sobreviventes, porque também não era possível ignorá-los. É uma dupla semântica demasiado vital para poder ser banida, apesar de todo o achincalhamento de que foi objecto, entre os equívocos da maioria e a sabotagem de uns quantos manipuladores de serviço. São eles: o amor e a verdade. Intencionalmente, vão sem maiúsculas para evocar a acepção mais universal, extensível a todos os homens de boa vontade, de qualquer latitude ou credo.
Foi exactamente sobre eles que o Nobel da Economia, John Nash (1928-2015), se pronunciou no discurso proferido na Academia Sueca, em 1994, apoiando-se no seu inegável prestígio de génio matemático, para lhes tentar devolver o antigo significado, quando gozavam de um saudável estado de graça, no alvor da linguagem humana. Provavelmente, foi a necessidade de os verbalizar que esteve na origem da comunicação humana. Nash refere um explicitamente, enquanto o outro está subjacente pois foi o caminho que lhe franqueou o primeiro.
John Nash corresponde ao físico e matemático interpretado por Russel Crowe em «A beautiful Mind», vencedor de 4 óscares, em 2001, incluindo o de Melhor Filme. Celebrizado pela Teoria dos Jogos e criador de teoremas vários, padeceu durante décadas de esquizofrenia, acabando por descobrir formas de controlar a doença a ponto de, a dada altura, se considerar curado.
Estudante brilhante, com apenas 21 anos recebeu o doutoramento na Universidade de Princeton, para onde um professor de Física o tinha mandado com uma carta de recomendação tão sumária quanto eloquente: “este aluno é um génio”.
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Em Princeton perceberam lindamente a mensagem, pelo que acarinharam o novo estudante, confiando que viria a prestar um serviço maior ao saber. Nash correspondeu por inteiro, enriquecendo inúmeras áreas do conhecimento para lá da ciência dos números. É sua a noção revolucionária sobre a possibilidade, ou melhor, a vantagem explícita (em muitos casos) de dois competidores optarem antes pela cooperação, em vez de exacerbarem o despique, para rentabilizar o benefício de ambos. Mais: é frequente a falta de cooperação resultar em perda, segundo o Nobel. Uma estratégia inovadora, até ali circunscrita à minoria ínfima disposta a levar a sério a magnanimidade e abertura ao próximo, mesmo que ao preço de perdas assinaláveis para a facção generosa. Pela primeira vez, o gesto de cooperação via-se defendido por fórmulas matemáticas e demonstrações claras do lucro. O processo negocial avançava, assim, para a fórmula humana mais fecunda e conciliadora do win-win. De certo modo, a caridade deixava de ficar reduzida à fórmula unilateral de só um lado oferecer sempre a face, disposto a tudo. Designou-se de “equilíbrio de Nash” na sua Teoria dos Jogos.
Voltando ao discurso proferido em Estocolmo, o Nobel explicou a correlação entre amor e verdade numa lógica cristalina que, precisamente, uma criança poupada aos malabarismos dos cínicos terá mais facilidade em perceber:
«Thank you (à Academia do Nobel). I've always believed in numbers and the equations and logics that lead to reason.
But after a lifetime of such pursuits, I ask,
"What truly is logic?"
"Who decides reason?"
My quest has taken me through the physical, the metaphysical, the delusional -- and back.
And I have made the most important discovery of my career, the most important discovery of my life: It is only in the mysterious equations of love that any logic or reasons can be found.
I'm only here tonight because of you [dirigindo-se à mulher, Alicia].
You are the reason I am.
You are all my reasons.
Thank you.»
O grande matemático será daqueles casos em que a história de vida supera a grandeza do legado científico. Como Russel Crowe disse do casal, ao saber da notícia da sua morte, em Maio deste ano, eram «uma parceria incrível, mentes brilhantes, corações brilhantes.». Esteve longe de viver um mar de rosas, apesar do êxito retumbante nalgumas áreas.
Para lá da ascensão académica meteórica, na primeira fase da vida, ressentiu-se dramaticamente mal surgiram os sintomas de esquizofrenia, quando a mulher engravidou. Ironicamente, tudo se concentrou em 1958 e 1959, entre o diagnóstico psiquiátrico, o reconhecimento no exigentíssimo mundo universitário norte-americano e o nascimento do primeiro filho. Em menos de nada, a terrível doença fez desabar tudo: primeiro a carreira universitária, tendo de ser internado; depois a relação familiar. Bondosamente, Alicia, com quem casara em 1957 depois de a ter conhecido como aluna quando leccionava no MIT, esperou um ano inteiro antes de dar o nome ao primeiro bebé, porque queria que John participasse na escolha. Em 1963, divorciaram-se de tal modo era difícil um entendimento mínimo. Sempre por perto, a mulher continuou a assisti-lo. Inclusive albergou-o em casa, logo que teve alta hospitalar, já nos anos 70, incentivando-o a superar o estado de alucinação regular que o assaltava. O lema de Alicia resumia-se a proporcionar-lhe um ambiente tranquilo e estável, cheio de afectividade. Fazendo parecer tudo simples, explicou da forma mais modesta, à biógrafa do Nobel, o modo como contribuíra para a cura inimaginável do marido: «it's just a question of living a quiet life».
De facto, a meio dos anos 80, respaldado pela mulher, John começou a melhorar consideravelmente, até se sentir curado. Segundo o próprio «saí do pensamento irracional sem medicação», numa combinação extraordinária de empenho pessoal e milagre de amor por parte da família, heroica no acompanhamento de uma doença gravíssima. Um processo win-win levado à letra, com enorme esforço de parte a parte para haver a desejável colaboração. Por isso, o matemático tinha tanta autoridade para declarar à Academia que o seu maior contributo para o conhecimento se situava numa área inexplorada do saber: «Fiz a mais importante descoberta da minha carreira, a descoberta mais importante da minha vida: É apenas nas misteriosas equações do amor que a lógica ou as razões podem ser encontradas.»
Em 2001, voltou a casar com Alicia, com quem sempre mantivera um relacionamento próximo e muito amigo. No passado Domingo 23 de Maio, encontraram juntos a morte, num desastre de automóvel, à saída do aeroporto de New Jersey, quando o táxi onde viajavam se despistou. Uma vida a dois até ao último minuto, permitindo-lhes superar em conjunto os desafios mais duros, a par de momentos gratificantes.
John e Alicia Nash
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Para lá da lição de grandeza oferecida pelo casal Nash, sobretudo Alicia transmitiu também o valor pouco reconhecido do saudável bom senso, que permite maior adesão à realidade, sem fantasias caprichosas. Sim, aquela qualidade subtil e de aparência comezinha, que funciona melhor nos bastidores, podendo soar a cinzentona para quem esteja viciado num tipo de vida híper mediatizado. A este respeito, o caso anedótico do «teste da banheira» é um bom exemplo sobre a forma como nos deixamos enredar e condicionar pelos modelos pré-fabricados que nos impingem, deixando-nos enfeitiçar por raciocínios pseudo-habilidosos e cheios de pompa, que não levam a lado nenhum, para lá do exibicionismo de egos desmesurados e incapazes de cooperar, na acepção pragmática recomendada pelo Nobel. Um problema muito comum nas sociedades ocidentais. Em último instância, o bom senso tem a ver com uma percepção correcta da vida, facilitando a descoberta da solução mais adequada para cada caso:
Durante a visita a um hospital psiquiátrico, um dos visitantes perguntou ao
director:
- Qual o critério para decidirem quem precisa de ser
internado?
O director procurou esclarecer:
- Enchemos uma banheira com água e oferecemos ao paciente uma colher,
um copo e um balde e pedimos que a esvazie. Depois decidimos se o
hospitalizamos ou não em função do método que ele utilizar para executar a
tarefa.
- Ah! Já percebi. Uma pessoa normal usaria o balde, que é maior que o copo e a colher. – respondeu prontamente o visitante.
- Não! - respondeu o director. - Uma pessoa normal tiraria a válvula. O
que prefere, quarto particular ou enfermaria?
CONCLUSÃO: quase sempre, a vida tem mais opções do que as oferecidas, basta saber enxergá-las.
Óptimo Agosto, esperando que alguma eventual falha no teste da banheira não tenha dado pretexto a internamento... Mas mesmo num cenário menos simpático, nada que uma negociação (com os clínicos de serviço), conduzida no espírito construtivo preconizado por Nash, não consiga resolver, a bem de todos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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