21 dezembro 2015

Do sossego absoluto

Fotografia de Henri Cartier-Bresson

Philip Mechanicus, jornalista, esteve preso no campo holandês de Westerbork. Etty Hillesum [Cartas, 1941-1943, Assírio e Alvim] numa carta escrita entre 5 e 9 de Julho de 1943, cita-o bem, porque ouviu da boca dele: se sobreviver a estes tempos, sairei deles como alguém mais maduro e mais profundo, e se morrer morrerei como alguém mais maduro e mais profundo. Não seria nesse dia que Mechanicus embarcaria no comboio com destino à morte, iminência que lhe suscitou a frase. Morreria em Auschwitz, em 1944. 

A frase suscitou-me um pensamento imediato e, por isso, mais intuído. O jornalista holandês confronta-se com uma espécie de momento perfeito na sua vida: aquela fracção de tempo - um segundo ou um dia inteiro - em que viver ou morrer representam o mesmo; isto é, a soma de todos os olhares sobre a vida ou sobre a morte é zero, não porque se anulam, mas porque tendem para infinito, lugar geométrico do sossego absoluto. 

Naquele preciso instante, Mechanicus estava pronto para sobreviver, como estava pronto para morrer. Não havia pontas soltas na sua vida - pazes por fazer, contas por ajustar, palavras por dizer ou feridas por sarar. Tudo na sua existência estava acertado e, de frente para o Deus em que acreditaria, pôde dizer-lhe: é o que Tu quiseres; estou pronto. Disse-o de alma tranquila, apesar de toda a angústia de que se revestiam aquelas viagens de comboio rumo a uma Polónia para onde os bilhetes eram só de ida.  

Saber que, morrendo ou vivendo, se é o mesmo homem, é ter a certeza de um equilíbrio interior a que todos podemos aspirar, mas a que nem todos conseguimos ascender: porque partimos cedo demais, porque sofremos demais, porque perdemos a dignidade de uma vida totalmente autónoma, porque nos sentimos peso desconfortável para os que ficam, porque a morte (ou o momento antes dela) nos suscitam medo, ou ainda porque há tanto por fazer. Olhar com os mesmos olhos a morte ou a vida é poder pairar no ar sem medo da gravidade terrena; é estar face a face, no momento zero, com o passado e com o futuro, segurando ambos na mesma mão aberta para o destino. 

Viver ou morrer só é igual para os indiferentes ou para os bafejados por um sopro divino. Porque olhar nos olhos do que foi e do que há-de vir é poder abraçar Deus, senti-Lo fisicamente, seja na forma de um anjo, de um sentido para a vida, de um sorriso de plenitude. E quando o sentimos, estamos prontos.

Se sobreviver a estes tempos, sairei deles como alguém mais maduro e mais profundo, e se morrer morrerei como alguém mais maduro e mais profundo.   

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Viver ou morrer só é igual para os bafejados por um sopro divino...sem dúvidas! Trata-se inevitavelmente de uma questão de Consciência.

Neste renascimento da Terra que a serenidade e a harmonia também brotem.

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