31 março 2016

Das emoções explicadas



Um estudo científico revela porque fechamos os olhos quando beijamos: um aumento do estímulo visual torna as pessoas menos sensíveis ao toque. Numa conferência sobre Shakespeare e Fernando Pessoa, um professor catedrático da Faculdade de Letras diz que o conforto de uma tarde à lareira é uma construção da literatura romântica. Talvez se venha a descobrir (se é que ainda não se descobriu) que as nossas más acções têm origem numa enzima a mais ou a menos.

O beijo na boca - e em particular o primeiro, ainda que desajeitado - é um episódio alto na vida do ser humano. Todos nós teremos memórias do nosso primeiro, por mais feia que fosse a namorada do momento. Por outro lado, em cinema a "atitude" dos olhos diz muito do que move os protagonistas. Olhos fechado é sinal de que está tudo bem, olhos abertos é indicador de traição ou, simplesmente, de boca num lugar mas coração noutro. E é ainda o beijo apaixonado que faz com que os actores se tratem, ao nível das legendas, por tu. Você antes do beijo, tu depois. É a intimidade a vencer uma aparente distância linguística que é incompatível com a troca de fluidos bocais.

O estudo científico nada revela de inesperado. Beijamos de olhos fechados pelos mesmos motivos com que dançamos de olhos fechados: para focar a nossa atenção, para congelar aqueles instantes de proximidade com quem nos arrebata o coração. Talvez até os olhos fechados sejam uma construção do romantismo, como uma tarde chuvosa de domingo à frente de uma lenha a crepitar. Talvez o que me desiluda, num fim de dia todo voltado para uma apresentação sobre Schiller que terei de fazer ainda hoje (o teatro como instituição moral) é o facto de nada aparentar ser arrebatador, inexplicado, intuitivo, animal, espontâneo. Tudo parece ter uma explicação científica, racional, comprovada por pessoas que, de bata branca e caneta oferecida por um laboratório, colocam cobaias humanas a beijarem-se de olhos abertos e fechados enquanto imagens passam num ecrã; num peito de curva suave ou músculo trabalhado não há uma mão ou uma boca - apenas sensores que grafam curvas crípticas em papéis contínuos.  

Continuarei a beijar, continuarei a dançar, continuarei a acender a lareira para me aquecer ou aquecer um ambiente. No limite, poderia fazer tudo isso em simultâneo. Gostava de acreditar que nem todas as emoções (e há emoções tão boas...) são - ou têm de ser  - explicadas à luz de uma teoria.

Desculpem qualquer coisinha. 

JdB 

30 março 2016

Da ansiedade e da divina providência



Tudo isto me importa muito, porque o tema maior da minha reflexão é a ansiedade e julgo que a Divina Providência pode ser relacionada e ser, até, uma chave para a sua resolução.

***

Como relacionar ansiedade e divina providência? Como fazer com que esta resolva aquela? O meu primeiro ímpeto é da ordem da impossibilidade: não são relacionáveis duas coisas se uma delas não existir. Ora, na minha ideia, a divina providência - pelo menos no sentido que lhe é dado vulgarmente - não faz parte de nenhuma realidade material ou imaterial. Assim sendo, não posso relacionar algo que está no domínio da medicina com algo que está no domínio da fezada

O Salmo 65 (64), chamado muito a propósito Hino a Deus Providente,  é considerado um salmo colectivo de acção de graças: Deus acalma "o bramido dos mares, a fúria das ondas e o tumulto dos povos", cuida da terra e torna-a fértil, amolece as terras com chuvas abundantes e abençoa as sementeiras. "Os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales enchem-se de trigais. Tudo acalma e grita de alegria." O salmista quis agradecer ao Criador as maravilhas que Ele lhe tinha dado.

O salmo é a visão de um mundo idílico oferecido por Deus, um paraíso onde não há culpa nem maldade, onde "brota a abundância", e o Homem vive uma riqueza sem par nem limite. É um mundo que não existe? Existe sim -  como concepção teórica da perfeição, não como realidade terrena atingível.

(E talvez também por isso utopia signifique lugar que não existe).

Deus deu-nos tudo, mas também nos deu a liberdade, o livre arbítrio, a humana imperfeição, com os quais destruímos a possibilidade de observar, na nossa caminhada na Terra, "as pastagens do deserto" que vicejam. O Deus providente é, portanto, o Deus que tudo nos disponibiliza, tudo nos oferece. É um Deus que dispõe e propõe, não que impõe ou garanta. 

"E Deus viu que isto era bom", diz o Livro do Génesis, que acrescenta: "Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus". Isto significa que Deus, de facto, criou um mundo bom ou, na expressão do meu interlocutor, um "Universo Simples, Próximo e Justo." A criação do mundo é uma bola que Deus põe em movimento para depois se afastar, deixando que o Homem tome conta de tudo. Deus não é mais (passe a ironia de um ser que é Tudo) do que um "prime mover".

A ideia que me é mais mais próxima da divina providência é a confiança que nos dá Jesus Cristo, tão bem retratada na parábola dos lírios do campo (Lc, 12, 22-31) que não fiam nem tecem, mas que nem Salomão, em todo o seu esplendor, os conseguiu imitar na vestimenta. "Não vos inquietais", diz ainda o evangelista.  Eu sei que haverá quem discorde, mas a divina providência é a confiança. Temos de fazer pela vida, mas há algo que nos transcende, que não dominamos: uma fracção da vida que está nas mãos do destino, de uma análise médica, de uma curva na estrada, de uma distracção ou de um azar, de um relance de olhos que define um futuro. Confiar e ter a preocupação a um nível equilibrado, é que nos é pedido. E não é pouco.    

***

Não sou especialista em ansiedade. Vou imaginar que ela existe como patologia ou como estado momentâneo, ou mesmo persistente, fruto de uma característica própria. Para a primeira haverá medicamentos, terapias ajustadas, ajuda profissional. Para a segunda, haverá a divina providência na forma da confiança no futuro, não num Deus que tudo resolve ou que impede que as maldades cresçam e as doenças matem.  Porque Deus, de facto, não actua assim.  Embora possa fazer tudo, permite que tudo aconteça.

"Agora vemos como num espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois conhecerei como sou conhecido" (Cor, 13, 12). Quando virmos face a face seremos então confrontados com o Universo Simples, Próximo e Justo. Até lá, resta-nos a confiança e os olhos postos num paraíso que conquistamos na Terra, mas que só viveremos no Céu.   

Relacionar o transtorno de ansiedade generalizada (considerada uma doença) com a divina providência é um desafio intelectual para o qual não tenho bagagem, não obstante saber que a confiança gera optimismo e que o optimismo é fundamental para a cura de qualquer doença. Embora também saiba que optimismo e ansiedade parecem ser contraditórios em termos... 

JdB

Nota (escrita no dia seguinte ao de elaboração deste texto, porque lido no evangelho de hoje): (...) "Mas eles convenceram-n’O a ficar, dizendo: «Ficai connosco, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite». Jesus entrou e ficou com eles.". Este é o apelo à divina providência.   

29 março 2016

Pensamentos Impensados

Linguajares
Já se nota a diferença entre Cavaco Silva e Rebelo de Sousa: este não tem qualquer dificuldade em dizer competitividade.

SdB (I)

As escolhas do gi.

# 14 Eleanor Friedberger, He Didn't Mention His Mother

A mana Friedberger parece ter colocado a banda original (os Fiery Furnaces) em hibernação e entretem-se, agora, a solo. Dela se diz ser uma das raparigas mais "cool" da música actual. Da sua música também se poderá dizer coisa parecida, ao investir em exercícios de pop quase rebuscada, em composições que deixam sempre à vista os trabalhos de alvernaria que as sustentam.. que só ganhem em charme com tal lata, eis um agradável mistério.



***

# 15 Owiny Sigoma Band, I Made You, You Made Me

Quem me conhece nestas lides musicais sabe da minha insistência, quase evangelizadora, com certos sub-géneros musicais. Algum hip hop, desde logo. Mas também aquilo a que chamo as electrónicas suaves, aquelas que privilegiam o formato canção, ou a sua evolução, e não tanto experimentalismos (que têm o seu lugar, evidentemente, até por desbravarem terreno que, mais tarde, se poderá revelar fértil). Esta musiquinha é um exemplo perfeito deste tipo de electrónica-canção. Coisa fina.

28 março 2016

Textos dos dias que correm

Noli me tangere
Ticiano
1511-12
Oleo sobre tela, 109 x 91 cm
National Gallery, London


Noli me tangere

Já cai a noite e já tomba o dia.

É quarta-feira, essa Quarta-Feira que antigamente se chamava de Trevas (ainda a chamam assim?) e precede o mistério do Trídolo Pascal que em Quinta-Feira Santa começa e na noite da Ressurreição acaba. Na noite de Trevas, escrevo ou dito eu esta crónica que será lida no dia da Ressurreição. "E se Cristo não tivesse ressuscitado toda a nossa Fé seria vã", como São Paulo escreveu no célebre e misteriosíssimo capítulo 15 da Epístola aos Coríntios. Como são belos estes rituais da Semana dita Santa! Três dias de luto, igrejas enegrecidas. "Crucifige! Crucifige! Morte ao Rei dos ladrões!" "O Rei dos espinhos! O Rei dos espinhos!" Maria pergunta: "Filho, Pai e Marido / Quem Te há ferido e desnudado?" E vêm-me à memória esses e outros versos de O Desequilibrista de M. S. Lourenço, poema de outrora. E subitamente, tão subitamente como apareceu a Maria de Magdala o jardineiro, termina o singular combate travado entre a morte e a vida, de que falava dantes a sequência da Missa Pascal. "Foi vencida a lei do caos e o Tártaro foi esbofeteado / A terra agitada agora por este furacão de sinos / Diz-vos que Eu ressuscitei" e estou sempre perto de M. S. Lourenço, agora tradutor de Claudel e daquele fragmento do Toi, Qui Es-Tu?, que começa por: "Há muito já que contemplo uma estrela. A morte foi submergida na vitória [I Cor. III. 15: 53-55]. Oh morte onde está a tua vitória? Oh inferno onde está o teu aguilhão?"

Das minhas antigas vigílias pascais lembra-me o Aleluia! Aleluia!, cantado no gregoriano dos Olivais, ou no sol a pino do meio-dia do Sábado que de Aleluia se chamou, ou na noite de sábado para domingo, quando se reformou a liturgia. E lembra-me essa alegria que nos chamava estultos e tardos de coração, se não exultássemos e rejubilássemos nela. Bento XVI vem em meu socorro!

A maior de todas as festas." "A festa brilhante" chamou à Páscoa S. João Crisóstomo. Foi-o ou era-o para mim? Se, em anos de maior apostolado, fiz o possível para como tal a sentir, a verdade é que o décor de Lisboa, anos 30-anos 60, não ajudava muito, ou não ajudava tanto como no Natal.

Depois das confissões, no Loreto ou na Madeleine, depois do único dia sem missa (Sexta-Feira Santa), o maravilhoso pagão não se misturava com o maravilhoso cristão. Na Páscoa, pelo menos no meu "meio" e na minha cidade, não se davam presentes nem se recebiam presentes. A única variação eram as amêndoas, sobretudo aquelas francesas, em forma de bebé, com licor lá dentro. Que eu me lembre, nem a família grande se reunia e, se o jantar era melhorado, não tenho memórias de anho. Mais tarde, quando eu fui pai, trouxe para casa o coelhinho da Páscoa, da família dos meus filhos e dos meus netos, mas não da minha. A minha mulher trouxe do Norte os carneiros ou os cabritos, mas tudo me veio de fora e não do dentro da infância.

Ouvia histórias de espantar. Familiares ou amigos mais distantes contavam-me como na província era bom: a visita do padre a todas as casas, ou um calicezito para o senhor abade, a roupa a corar, as casas todas a cheirar a enceradinho e a lençóis doces. Muitos bolos com nomes apetitosos. Hoje, ainda, pessoas com grandes talentos manuais passam a semana a amassar folares. Trago-os para ao pé de mim, mas sem grande sucesso, que nunca foram muito lá de casa e parecem abetos em mansões de presépios.

Em Lisboa, não havia nada disso. A tarde da Páscoa era tarde triste e o coração apertava-se a pensar no terceiro período, normalmente tão pequenino.

Pensando bem, acho que há uma razão para isso. No Natal, festeja-se o nascimento do Menino Deus. Presépio, palhinhas, reis magos. Tudo coisas que puxam à família e à verdade. Na Páscoa, mesmo que soubéssemos que era a maior das festas, misturava-se a morte e a vida, a Cruz e a pedra retirada do sepulcro. O corpo de Cristo, ressuscitado, impunha uma distância que nem era muito espírito nem era muito carne, por maior que fosse o mistério.

É verdade que Cristo, nas suas aparições entre a Ressurreição e a Ascensão - S. Paulo diz que Ele apareceu sete vezes em tão breves quarenta dias -, disse, segundo S. Lucas, que não era nenhum fantasma: ""Porque vos perturbais tanto e porque é que a dúvida ocupa tão grande lugar em vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés. Sou Eu! Tocai-me e dai-vos conta que um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho." E dizendo isto mostrou-lhes as mãos e mostrou-lhes os pés. E como, embora imensamente alegres, eles se recusassem a acreditar e continuassem estupefactos, perguntou-lhes: "Tendes alguma coisa que se coma?" Mostraram-lhe um pedaço de peixe grelhado. Tomou-o e comeu-o à vista deles." (Lc, VII. 24: 38-43) Foi o mesmo Lucas quem contou a história da ceia de Emaús. Mas, apesar de um longo e revelador diálogo, foi só quando se sentou à mesa com os discípulos, quando os abençoou, quando tomou o pão, quando o partiu e quando o deu a cada um deles, que os olhos dos discípulos se abriram e O reconheceram. Mas já Cristo havia desaparecido como um fantasma, Ele que como um fantasma lhes aparecera a sessenta estádios de Jerusalém.

Mas, mesmo em S. Lucas, dos três evangelistas sinópticos o mais prolixo em pormenores sobre esses dias após a Ressurreição, o nome de Jesus, a acreditar nas traduções de que disponho, nunca é citado. O evangelista diz sempre "Ele", como se o pronome e não o nome bastasse para O demonstrar.

Mateus e Marcos são singularmente elípticos. Quem mais abunda é S. João, sobretudo o apêndice, que ainda hoje se discute se é da autoria do discípulo que o Senhor mais amou ou de um discípulo mais amado por João.

É em S. João que se encontra a narração do episódio mais perturbador. Maria de Magdala, depois da morte do Senhor, não saiu de ao pé do túmulo e soluçava. "Soluçando, inclinou-se para o túmulo e viu dois anjos, vestidos de branco, sentados no local onde repousava o corpo de Jesus. Um sentado junto à cabeça, outro sentado junto aos pés. Perguntaram-lhe: "Mulher, porque choras?" "Levaram-me o meu Senhor", respondeu-lhes ela. "E não sei para onde O levaram." Dizendo isto, voltou-se e viu Jesus que estava de pé, mas ela não sabia que era Ele. Jesus disse-lhe: "Mulher, porque choras? Quem procuras?" Julgando que Ele era o jardineiro, ela respondeu: "Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei buscá-lO." Jesus disse: "Maria." Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: "Rabuni!", o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: "Noli me tangere" [não me toques], porque ainda não subi para junto do Pai. Mas vai ter com os irmãos e diz-lhes que eu subo para o Meu Pai e Vosso Pai, para o Meu Deus e Vosso Deus."" (Jo, VIII. 20:11-17).

Desde tempos imemoriais, esta foi a aparição do Senhor que mais reteve a atenção e a confusão de exegetas e artistas. Porque é que Jesus, que tantas vezes, nesses dias post mortem, insistiu com os apóstolos para que O tocassem e Lhe tocassem nas mãos e nos pés; porque é que Jesus que, segundo o mesmo S. João, e logo na narrativa seguinte, mandou Tomé estender a mão e metê-la na chaga do lado para não continuar a ser incrédulo; porque é que Jesus não deixou que Maria de Magdala O tocasse (nalgumas versões, aparece mesmo a expressão "Não me toques assim") e lhe deu como justificação o facto de ainda não ter subido para o Pai, o que só aconteceu quarenta dias depois?

Segundo a tradição, Maria de Magdala foi a mesma mulher que, em casa do Fariseu, Lhe lavou os pés com perfumes preciosos e Lhos enxugou com os seus cabelos, provocando grande escândalo, porque era uma pecadora pública. Bem sei que as modas me são adversas, com as pantominices dos códigos e quejandos, mas seja ou não Maria de Magdala a mesma Maria de Betânia do episódio da casa do Fariseu, é a mulher que Cristo escolheu para a Sua primeira aparição e é a mulher a quem não consentiu contacto físico.

Na mais célebre das representações desse episódio, Cristo está quase nu, apenas semienvolto na mortalha, de que tanto se desembaraça como se cobre, e Maria de Magdala está de rastos ao pé d"Ele, detendo a mão que ia tocar a mão do Senhor pousada sobre a perna esquerda. De jardineiro apenas tem a enxada na mão esquerda e o corpo que tem a cor macilenta de um cadáver, a cor com que o mesmo pintor (Tiziano) representou Lázaro ressuscitado.

Se é lícito especular sobre essa representação, o que Tiziano figurou foi um cadáver que ainda não tinha ressuscitado no esplendor da ressurreição da carne e que, por isso, não quis ser tocado na carne ainda submetida ao aguilhão da morte. Nas aparições seguintes, Cristo já descera aos infernos e já subira aos céus. Já assumira o corpo glorioso, tão tocável como um corpo vivo. O olhar de Maria de Magdala foi o único olhar que O viu entre.

Se eu tiver alguma razão, a tela de Tiziano é a única representação do ser corruptível que ainda se não revestiu da incorruptibilidade, do ser mortal que ainda se não revestiu da imortalidade, de que fala S. Paulo quando distingue o corpo físico e o corpo psíquico, e o corpo psíquico do corpo espiritual.

"Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim foi escrito: "O primeiro homem, Adão, foi feito alma viva; o último Adão é um espírito que dá a vida. Mas não é o espiritual o que primeiro aparece: primeiro aparece o psíquico, depois o espiritual. O primeiro homem, oriundo do solo, é terrestre. O segundo homem vem do céu. Como foi o terrestre, assim serão os terrestres; como o celeste, assim serão os celestes. E tal como revestimos a imagem do terrestre, um dia revestiremos a imagem do celeste." (Cor III. 15:45-49).

E é depois desta passagem que S. Paulo diz que nos vai dizer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados.

Na Páscoa da Ressurreição, todos ainda não estamos transformados, mas ela contém a promessa que a transformação é para todos. Talvez seja por isso que a carne vacila mais no momento do noli me tangere do que quando celebramos o mistério da Encarnação. Talvez por isso a Páscoa nos deixe mais desamparados, jardineiros de um horto situado no algures entre as oliveiras e os cedros do Líbano ou entre a Paixão e a Glória.

João Benard da Costa, Publico 2007-04-08, tirado daqui

27 março 2016

Domingo de Páscoa

EVANGELHO – Jo 20,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

26 março 2016

Pensamentos Impensados

Lavagens
Nem todas as lavagens significam o mesmo; que diferença abissal entre lava-jato e lava-pés.


Pensamentos Impensados deseja aos leitores deste blog uma Santa Páscoa, e que Cristo ressuscitado ajude este Mundo a tomar juízo.

SdB (I)

25 março 2016

6ªFeira Santa

Raising of the Cross (Rembrandt) 

Pietà 


Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga


24 março 2016

Poemas dos dias que correm

Fotografia de Marcus Puschmann 
Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

(Jorge Luís Borges)

23 março 2016

Das engrenagens

Fotografia tirada da net

Só numa definição tecnicamente seca é que uma engrenagem é um dispositivo constituído por um sistema de rodas dentadas para transmissão de movimentos em diversos maquinismos. Numa visão metafórica do tema, uma engrenagem é um mar de possibilidades. 

Quando falamos de rodas dentadas falamos de dentes e, nesse sentido, de flanco, de passo, de círculo ou diâmetro da coroa, de espessura e de largura do dente. Em duas rodas que engrenam uma na outra as dimensões dos dentes têm de ser correspondentes, porque o espaço entre dentes é sempre igual. As rodas podem ter dimensões diferentes, diferindo por isso a relação de transmissão. Mas os dentes, o que provoca a engrenagem e contribui decisivamente para o correcto funcionamento do dispositivo mecânico, não. Esta obrigatoriedade de igual dimensão é o garante da eficácia do sistema.

Numa conversa sobre um outro tema, apanho este conceito desenvolvido por um sociólogo, parece-me: quanto mais especialização menos autonomia. Isto é, à medida que fulano se especializa na área A, depende de beltrano que se especializou na área B, sendo que A e B estão intimamente ligadas. Isto é, o especialista em sistema eléctricos precisa do especialista em travões e do especialista em segurança infantil para construir um carro onde possam circular crianças. Dentro da metáfora das rodas dentadas, cada especialista é um dente. E cada dente é individual, imprescindível, sem o qual a engrenagem tropeça - e parte. 

A tendência de especialização teve o intuito da eficácia, porque ninguém conseguiria saber de tudo. E no entanto, não me parece que a motivação para a especialização deva ser essa, mas o da subsistência da espécie humana enquanto conjunto gregário de pessoas. No limite, a sabedoria generalizada de vários temas deveria ser proibida por lei, por princípios de conduta morais, religiosos ou éticos. Não devemos saber tudo, para podermos contar com os outros. Os outros não devem saber tudo, para poderem contar connosco. Devemos, por isso, ser profundamente especializados para podermos ser profundamente (inter)dependentes.

Pode ver-se a engrenagem como um conjunto igualitário de elementos mecânicos - tudo infinita e tristemente igual. Mas pode ver-se a engrenagem como um conjunto construído para um fim - a transmissão de movimento que conduz ao infinito. Facilita se imaginarmos uma comunidade: cada dente é uma especialidade: pintor, pedreiro, alfaiate, canalizador, especialista em médio oriente, psiquiatra, técnico de ansiedades, professor de literatura. E cada reentrância é uma necessidade: quem precisa de um fato de ver a deus, quem sofre de ansiedade, quem não sabe colocar um lavatório, quem gostava de aprender sobre Miguel Torga, etc. Para cada necessidade uma especialidade.

A interdependência, que não é mais do que uma engrenagem perfeitamente concebida - não é um vantagem ou um exercício de eficácia fabril. A interdependência é apenas aquilo que nos salva.

JdB

22 março 2016

As escolhas musicais do gi.

# 12 Allen Halloween, Bandido Velho

E ei-lo de volta, Allen Halloween, para nós o rapper / hiphopper mais importante da cena nacional. Após "Árvore Kriminal", Allen assina mais um longa-duração, "Híbrido", onde dá palco às suas letras existencialistas, melancólicas, de uma poesia desolada e realista, envoltas por mantos de "beats" rugosos, espantosamente eficazes. Eis alguém que escreve sobre este país que somos, a partir das franjas, sem heroísmos idiotas, sem o culto da violência explícita, sem "statements" maniqueístas. Nada disso encontramos aqui, num disco que é feito de sangue ainda quente e de carne ainda viva. Crespucular, desencantado.. mas ainda capaz de vislumbrar uma centelha de beleza, por entre o betão.





***

# 13 Deerhunter, Breaker

Os Deerhunter, volta e meia, brincam com os géneros musicais com que tecem as suas tapeçarias sonoras. Desta feita, dentro de um mesmo disco, encontramos canções que se diriam escritas por bandas diferentes. Para o caso, tanto importa - "Breaker" é uma cançãozinha que, a cada audição, cresce e se transforma numa belíssima canção, inteligente e prazenteira, e ao mesmo tempo.

21 março 2016

Vai um gin do Peter’s?

Há dias, recebi uma interpelação muito oportuna de uma amiga, a sugerir oferecermos, durante esta semana, 46 minutos da nossa vida. É a duração do testemunho de uma missionária argentina, que se está a tornar viral, no youtube. Mudou-se para a Síria, há mais de 5 anos, porque precisava de repouso, depois dos anos turbulentos e perigosos passados no Egipto. Só que a guerra chegou rapidamente à Síria. Isso é que não estava no programa.
Vale a pena ouvir a Irmã Guadalupe, seja enquanto fonte noticiosa fidedigna para descobrirmos o rol intrincado de enviesamentos da maioria dos media sobre aquela estranha guerra, seja como gesto em favor da paz, seja também como gesto cristão para aprofundar a caminhada quaresmal e inspirar contributos úteis. Tudo nos convida a parar e a conhecer a sua vivência salerosa e carregada de Esperança, apesar das circunstâncias de inferno a que está sujeita. Nem é garantido que esteja ainda viva. Atordoa a sua luminosidade, pois nada consegue afectar a boa disposição nem a vontade de continuar a fazer o Bem:  


Seguem várias das citações elencadas no OBSERVADOR de 25 de Fevereiro, com pequenos ajustes na tradução:
· “Basta de apoiar grupos terroristas! Basta de vender armas à oposição moderada, porque a oposição moderada não existe, na Síria! Pensemos como seria fácil de acabar com tudo isto, se se parasse com a venda de armas.” (16:50 – 17:15)

· “Já sabemos que as ruas estão cobertas de franco-atiradores. Nessas zonas temos de correr muito. É a vida quotidiana desta gente. Sobretudo nos bairros cristãos. A queda de projéteis é tão frequente que as pessoas falam disto como se fosse da chuva. Utilizam o mesmo termo, em árabe.” (19:10 – 19:34)

· “Nós, em particular, já sofremos ataques muito próximos. Nesse sentido, já vi a morte passar muito perto – a uns metros, a uns minutos. Um dos ataques mais fortes ocorreu a 50 metros do episcopado, onde vivemos (…) Havia um grande bosque, quiosques ambulantes, tendas de refugiados. Tudo voou com a queda de um míssil. Não (era) um projétil, mas um míssil que provocou 400 mortos e centenas de feridos, à uma da tarde. Eu, nesse momento, estava a subir para o terraço, no 4º andar. Saí para o terraço, quando um dos sacerdotes me chamou do andar de baixo, e eu disse: ‘Padre, já vou; são só dois minutos’ (…) O padre disse: ‘Não irmã, venha, desça’. Santa obediência! Fechei a porta, desci, dei apenas alguns passos até ao padre… e o míssil caiu.” (21:30 – 22:38)

· “Os sacerdotes saíram imediatamente para a rua a assistir às vítimas (…) Nós estávamos a tentar encontrar as nossas estudantes. Como vos disse, temos uma residência para universitárias. Faltava-nos uma! E encontrei-a sentada num banco da catedral, no meio do caos e da confusão. Quando me aproximei, ela gritava queixando-se que lhe doía o braço. Eu disse-lhe: ‘Deve estar partido, não é nada’. Para a aliviar, tirei-lhe o casaco. Aí dei-me conta, ao tirar-lhe o casaco, de que das costas lhe saía um ferro. Tinha um ferro ali cravado! Levámo-la a um hospital (…) e salvaram-na. O ferro tinha atravessado a omoplata e perfurado o pulmão. Estava a asfixiar. Chama-se Edra”. (22:52 – 23:38)

· “Eu tenho 42 anos e nunca me tinha ocorrido, até viver em guerra, acender a luz e dizer: ‘Senhor obrigada! Tenho eletricidade’. Ou quando chega a água, mais ainda. Porque a água chega de 10 em 10 dias”. (29:41 – 29:56)

Nas palavras da tal amiga interpelativa, com uma conclusão certeira: Guadalupe «mostra um outro olhar sobre a guerra na Síria, e os interesses que a movem, sobre os refugiados, e os erros cometidos na abordagem deste problema, nas manobras da comunicação social, que está ao serviço de interesses. Mas, sobretudo, dá a conhecer alguns dos milhões de cristãos que morrem perseguidos e a fé forte e sustentada na rocha daqueles que tentam levar uma vida normal numa cidade destruída: estudam, casam, fazem exames, riem, vão à missa... "porque a alma ninguém pode matar"... Qual o sentido da vida? (…) Temos que rezar por eles? Claro que sim! Mas depois de escutarmos a Irmã ficamos é com muita vontade de pedir a esses cristãos perseguidos que rezem muito por nós.»
Não há spa nem festança que surtam um efeito tão desintoxicante e vitamínico no sentido de nos ajudar a encarar a realidade com tamanha garra e positividade. O repouso no spa (exemplo de inúmeras outras variedades de descanso), por meritório que seja, tem um limite bem curto, só convidando a nova sessão. Dificilmente nos prepara para vivermos melhor e sermos melhores. Por isso, o vídeo de 46 minutos vem a calhar em Semana pascal, na hora de pausa e de reactualização do software interior.    
Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

20 março 2016

Domingo de Ramos

LEITURA I – Is 50,4-7

Leitura do Livro de Isaías

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o senhor Deus veio em meu auxílio,
e por isso não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.

19 março 2016

Pensamentos impensados

Orto...grafiti
Escrevi sempre assim; recuso-me a escrever çempre.

Análises
Fiz um exame e acusou negativo.
Foi a Matemática, em 1943.

Nobrezas
Mais vale um Conde de 1ª que um Duque de 3ª.

Eis...seçus
ASAE multa Mar Morto por excesso de sal.

Conversas em família
EVA: Nunca me levas a parte nenhuma.
ADÃO: Também não tens nada que vestir...

Sócrates e Santos Silva
Amigos, amigos, negócios à parva.

Ócios
Um ortopedista não deve queixar-se do trabalho; são ossos do ofício.

Petro euros
Portugal, felizmente, não tem petróleo; se tivesse, neste momento estávamos endividados.

SdB (I)

18 março 2016

Textos dos dias que correm

Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa

1. As questões ligadas à legalização da eutanásia e do suicídio assistido estão em discussão na Assembleia da República e na sociedade. Como contributo para esse debate, que desejamos seja em diálogo sereno e humanizador, surge esta Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa sobre o que verdadeiramente está em causa.

2. Por eutanásia, deve entender-se «uma ação ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento». A ela se pode equiparar o suicídio assistido, isto é, o ato pelo qual não se causa diretamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha termo à sua própria vida.

Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar à chamada obstinação terapêutica, ou seja, «a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família». «A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana perante a morte». É, pois, bem diferente matar e aceitar a morte. Quer a eutanásia, quer a obstinação terapêutica, constituem uma ingerência humana antinatural nesse momento-limite que é a morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda prolonga-o de forma artificialmente inútil e penosa.

3. De forma sintética, podemos dizer que subjacente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido está a pretensão de redefinir tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais relativas ao respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar quando o visado quer viver. Consequentemente, intenta-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e porque dotada de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana podem variar e podem perder-se. Ora, na nossa conceção, isto é inaceitável.

4. Para os crentes, a vida não é um objeto de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. O valor intrínseco da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações está profundamente enraizado na nossa cultura e tem, inegavelmente, a marca judaico-cristã. Mas não é difícil encontrar na razão universal uma sólida base para esse princípio. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº 1).

5. A vida humana é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. É também o pressuposto da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular.

O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde, por exemplo.

6. Por outro lado, nunca é absolutamente seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia. Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível.

Muitas vezes, traduz um estado de espírito momentâneo, que pode ser superado, ou é fruto de estados depressivos passíveis de tratamento, ou será expressão de uma vontade de viver de outro modo (sem o sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados), ou um grito de desespero de quem se sente abandonado e quer chamar a atenção dos outros. Mas não será a manifestação de uma autêntica vontade de morrer. É, pois, uma linguagem alternativa de quem pede socorro e proximidade afetiva. A dúvida há de subsistir sempre, sendo que a decisão de suprimir uma vida é a mais absolutamente irreversível de qualquer das decisões.

7. Em nome da autonomia, os que defendem a legalização da eutanásia e do suicídio assistido não chegam, por ora, ao ponto de pretender a legalização do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em quaisquer circunstâncias. Pretendem apenas reconhecer a licitude da supressão da vida, quando consentida, em situações de sofrimento intolerável ou em fases terminais. Desta forma, atentam contra o princípio de que a vida humana tem sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das condições externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não merece proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder dignidade.

8. Invocam os partidários da legalização da eutanásia e do suicídio assistido que, com essa legalização, se respeita, apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte, de quem solicita tais pedidos, sem tomar partido. Mas não é assim. O Estado e a ordem jurídica, ao autorizarem tal prática, estão a tomar partido, estão a confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total dependência dos outros, deixa de ter sentido e perde dignidade, pois só nessas situações seria lícito suprimi-la.

Quando um doente pede para morrer porque acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece que é um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a tua vida perdeu dignidade, és um peso para os outros». Mas a resposta deve ser outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável para todos nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais carecidos de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de quem não pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.

9. Não se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as técnicas analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável. Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina paliativa e do amor concreto para com quem sofre.

Como afirma Bento XVI, «a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre».

Para além do círculo afetivo dos seus familiares e amigos, a dignidade de quem sofre reclama o cuidado médico proporcionado, mesmo que os atos terapêuticos e os analgésicos possam, pelo efeito secundário inerente a muitos deles, contribuir para algum encurtamento da vida. Neste caso, não se trata de eutanásia, pois o objetivo não é dar a morte, mas preservar a dignidade humana e a «santidade de vida», minimizando o sofrimento e criando as condições para a «qualidade de vida» possível.

10. A mensagem que, através da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves implicações sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença e o sofrimento.

Há o sério risco de que a morte passe a ser encarada como resposta a estas situações, já que a solução não passaria por um esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste novo contexto cultural, o amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão encorajados, como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e que se sentem, obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como “solução” para os seus problemas. E também é natural que haja doentes, de modo particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”.

É este, sem dúvida, um perigo agravado num contexto de envelhecimento da população e de restrições financeiras dos serviços de saúde que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê gastar tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas podem ser encurtadas?

11. Não podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não tem acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento.

A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá para atenuar a consciência social da importância e urgência de alterar esta situação, porque poderá ser vista como uma alternativa mais fácil e económica.

12. Com esta Nota Pastoral, apelamos à consciência dos nossos legisladores.

Mas também sabemos que uma grande percentagem dos nossos concidadãos afirma aprovar a legalização da eutanásia e do suicídio assistido. Estamos convictos de que muitos o fazem sem a consciência clara do que está verdadeiramente em causa. Daí a importância de um vasto trabalho de esclarecimento para o qual queremos dar o nosso contributo.

No Ano Jubilar da Misericórdia, recordamos que esta nos leva a ajudar a viver até ao fim. Não a matar ou a ajudar a morrer.


Fátima, 8 de março de 2016

17 março 2016

Do ódio

Fotografia tirada da net

- Odeio fulano!

Todos nós já dissemos uma frase parecida. Na maior parte das vezes, estou certo, o verbo odiar é aqui conjugado como uma bengala, porque odiar é mais forte do que irritar ou não ter paciência para. Com poucas excepções, o odeio fulano não significa que se odeia fulano. E no entanto, há vezes em que, repetida a exclamação, se pode depreender que há um ódio qualquer. Ou, usando o dicionário, rancor,  repulsa, aversão.

Sentemos dois interlocutores no mesmo espaço: um é cristão, o outro agnóstico. Como olham ambos para a expressão odiar? Excluo deste raciocínio a motivação para o sentimento; é-me indiferente se alguém encontra motivos fortes para dizer que odeia fulano

Para um agnóstico, o ódio pode não ter uma dimensão prática. Isto é, a pessoa que odeia pode nunca mais ver a pessoa a quem odeia. O ódio não tem repercussões visíveis: um murro, uma face cuspida, um golpe profundo feito por um prego ferrugento numa carroçaria cromada. No entanto, pode haver (e o itálico realça a possibilidade) uma dimensão de consciência. Quem odeia não gosta (ou pode não gostar) de odiar. 

Para um cristão, o ódio pode também não ter uma dimensão prática. Mas tem sempre subjacente (e o itálico reforça a certeza) uma dimensão de consciência. Ao cristão está-lhe vedado o ódio porque, como diz a Enciclopédia Católica Portuguesa, o ódio "revela profunda maldade, mesmo quando surge como reacção contra ofensas e injustiças de que se foi alvo, a qual se deve vencer pela virtude do perdão." O 5º mandamento da Lei de Deus é nisso bem explícito: "Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao pró­ximo)". Cortar relações com alguém é matá-la no coração.

A conduta segundo a religião cristã é seguramente mais desafiadora do que a conduta segundo uma consciência agnóstica ou, como já foi dito por várias pessoas, segundo a ética republicana, porque Cristo manda-nos amar os nossos inimigos. Como escreveu, e muito bem, o Pe. Miguel Almeida no Observador, podemos não gostar de alguém mas temos de amá-la. E isso, como já referi, é independente da proximidade física.

JdB

Nota: a elaboração deste texto foi desencadeada por uma conversa. Ficou nos "rascunhos" até que ontem, por absoluta falta de inspiração, decidi repescá-lo, ainda que incompleto. Foi o que estava...

16 março 2016

Das definições de caudal

No Verão de 1984 acabaria o meu curso de engenharia; no Verão de 1986 entraria para uma fábrica de gelados, como supervisor de produção. No entretanto, coisas profissionais dispersas e de menor interesse para este fim em vista.

A produção de gelados não era, naquele Agosto já longínquo, uma actividade científica do tipo bimby: x minutos, y temperatura, z velocidade. A textura da massa com que se fazia o produto final requeria conhecimentos; a incorporação do ar na própria massa era uma acção vedada a iniciados; a afinação das máquinas era uma actividade para gente de um gabarito superior com uma classificação profissional prosaica - condutores de máquina.  

Um dia, face à dificuldade em atingir a qualidade desejada no primeiro fabrico de um produto novo, arrisquei junto a colegas um vislumbre de solução que passava pela definição de caudal: volume de fluido que passa numa dada secção de tubagem numa determinada unidade de tempo. Não achei necessário acrescentar que se media em metros cúbicos por segundo... Talvez me tenham olhado (não é certo, porque eu era um recém-chegado) - uns com estupefacção, outros com indiferença. Em nenhum olhar senti que a minha definição acrescentasse valor à discussão, nem abrisse portas para um desfecho favorável. Teria eu dito alguma asneira? Teria confundido a definição de caudal com a segunda lei da termodinâmica? Eram as unidades que estavam erradas? Não, nada disso. A definição estava correcta, orgulhosamente fresca na memória de um curso quase acabado de fazer, mas não acrescentava um avo à resolução do problema. A definição não era mais do que um papaguear teórico, e ali pretendia-se um equilíbrio fino ao qual se chegaria por via de uma experiência, não de uma definição.  

Olho para os meus colegas de faculdade: gente com valor intelectual, com vontade de aprender, com uma certa cultura que eu não tenho agora e não tinha naquela idade. Olho para eles e sou eu, mas em 1986 a assistir, com gente menos formada academicamente, mas mais experiente, ao nascimento difícil de um novo gelado, como se assistisse a uma nova vida que nasce e, perante aquele mistério indizível, só me ocorresse dizer: parto, conjunto de fenómenos fisiológicos... 

Ser-se estudante muito novo (os meus colegas) apresenta este problema: só se conhecem os conceitos; no extremo oposto, ser-se estudante muito velho (o meu caso) apresenta este problema: só se conhece a vida. Os meus colegas sabem tudo sobre o patético (do grego pathetikós, comovente) mas, se a vida for minimamente justa, nenhum deles saberá o que é o sofrimento (em grego pathos). Eu, que já provei desse veneno, luto com dificuldades na compreensão do que Schiller quis, na verdade, dizer sobre o assunto. Os meus colegas começam uma corrida que não sabem terminar; eu termino uma corrida que comecei a meio...

A vida não é uma máquina de fazer gelados, embora esteja mais próxima de ser isso do que uma bimby, na qual quase tudo é uma ciência assente no cumprimento firme de um manual de instruções claro. A vida é saber-se o que é o caudal, mas é também perceber-se que o desempenho daquela máquina específica obedece a sensibilidades próprias. Se soubéssemos o conceito e o tivéssemos vivido talvez fossemos melhores. Ou talvez não.

Em 1986 o gelado acabou por sair, provavelmente sem que ninguém quisesse saber o que eu tinha para dizer sobre conceitos teóricos, o que não é despiciendo.
  

JdB

15 março 2016

Duas Últimas

Estive a passar este último fim-de-semana no Alentejo “ mais do que profundo”, num sítio isolado com vistas de deslumbre. No mesmo quadro, um pequeno rio fronteiriço, vales e relevos bem pronunciados (dobrados), estradões infindáveis de terra para calcorrear, de preferência a pé (quem conseguia..), um monte alentejano soberbo de bom gosto e comodidades várias.

Aí confirmei o fim próximo do Inverno, de que estamos na verdade a passar a última semana. Um pouco por toda a paisagem tapetes de flores do campo de cores fortes ou rebentos de arbustos e pequenas árvores, que ali não as há altas, anunciavam a chegada da nova estação. Que pelo meu lado recebo com agrado, pois o passar dos anos faz com que aprecie cada vez mais os longos dias estivais, desde que não demasiado quentes ou abafados.

Antecipando esses tempos já próximos, deixo-vos com 2 músicas que fazem a apologia do sol, das praias, das cores de Verão. A primeira mais recente, a segunda já com uns anitos. Remetendo para a Caparica, nos vídeos e na letra (num dos casos). Praias da minha infância, que continuo a prezar, embora hoje em dia pouco as frequente.

Espero que gostem das escolhas.    

fq



14 março 2016

Das leituras

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão

No seu livro Little did I know - Excerpts from Memory, Stanley Cavell, nascido nos EUA em 1926, afirma o seguinte (tradução livre, minha): "De acordo com um mito, o filósofo tem de ter lido virtualmente tudo, pelo menos toda a filosofia ocidental, em sentido genérico; de acordo com outro mito, o filósofo não lerá virtualmente nada." 

***

Janto 5ªfeira passada com dois amigos próximos. Falamos de livros e a pergunta sai-me com um travo de provocação: porque lês o que lês? Devolvida que me é a pergunta, temos três respostas mais ou menos diferentes: 

(i) leio por puro entretenimento; 
(ii) leio como instrumento de formação de carácter;
(iii) leio porque tenho uma curiosidade imensa pela vida; 

Ontem, numa troca de sms, alguém me dizia, respondendo também à pergunta:

(iv) leio para viajar, mas também para encontrar coisas que me descrevem.

***

Ontem ainda, pessoa de uma geração abaixo da minha, e que quer (re)assumir um caminho mais religioso para si e para os filhos, foi comigo à missa. O evangelho era o da mulher adúltera, e o prior estava particularmente inspirado na sua conversa connosco. Ouvi / ouvimos com atenção, porque naquele texto da Bíblia está muito mais do que um episódio de uma mulher apanhada em flagrante adultério: ali está a misericórdia, o arrependimento, o direito à privacidade do reconhecimento do pecado, a não exigência aos outros do que não conseguimos nós cumprir.

***

Leio ainda Stanley Cavell (em Cities of Words, tradução minha): "O desapontamento de Wittgenstein relativamente ao conhecimento não é o facto de não conseguir ser melhor (por exemplo, imune à dúvida céptica) mas o facto de não nos conseguir fazer melhor do que somos, ou dar-nos paz." 

***

Este post não é um retalho de ideias soltas, pois concorre para uma ideia central. Lê-se para viajar, para satisfazer curiosidades, por puro entretenimento, para ter mais informação. Mas também se lê como uma ferramenta para transformação de uma vida - ou simplesmente para a compreensão de uma vida, sendo esta um passo anterior àquela. Ler a Consolação a Márcia, um escrito de Séneca para amparar uma Mãe que perde prematuramente um filho, não é um exercício de auto-flagelação, mas a a procura de uma luz diferente sobre um drama que nos faz equacionar tudo; ler textos sobre o sublime não é uma actividade árida, mas o desejo de perceber o que está para além do que é considerado belo e que nos eleva a um patamar diferente; escutar um leitura bíblica (o texto sobre a mulher adúltera ou o livro de Job) e enquadrá-lo na vida própria é aceitar o desafio da mudança interior, mesmo que a mudança tarde.   

Porque lemos o que lemos? Porque estudamos o que estudamos?

JdB 

13 março 2016

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Jo 8,1-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».

12 março 2016

Pensamentos Impensados

Fitas
O Óscar para melhor título de filme foi para ANTROPÓFAGOS VEGETARIANOS.

Futebóis
Odeio futebol, mas penso poder ser um bom goleador não executivo.

Guerras e pazes
Antes responsabilidade civil que irresponsabilidade militar.

Não me recorde
O advogado de Sócrates vai ficar no Guiness como aquele que mais processos perdeu.

Crimes passionais
O tipo que tirou um olho ao Camões alegou que tinha amor à primeira vista.

Fadigas
O exaustor da minha cozinha já não aspira; está à beira da exaustão.

Faixistas
As pessoas que vão no Conto do Vigário pertencem a que faixa etária?
À faixa otária.

Teimosias
Com a idade que tenho já me posso considerar um idoso  crónico.

SdB (I)

11 março 2016

Gula *

Levantava-se sempre pelas seis horas, qualquer que fosse a estação do ano. Era rápido no banho, no café e na torrada e saía a correr, porque havia que dar o pequeno-almoço à comunidade de idosos que vivia perto de si numa moradia que o tempo, a humidade e as desavenças familiares tinham arruinado parcialmente.

Pela hora de almoço sentava-se frente a uma sanduíche e a um sumo natural e redigia cartas, preparava balancetes, desenvolvia projectos e planos de negócio, gizava cronogramas com um rigor relojoeiro. Era o seu voluntariado em prol de uma associação de deficientes à qual se ligara por via do filho de um colega de faculdade.

Ao fim da tarde, quando o bulício da cidade anunciava o regresso a casa, Henrique ia distribuir jantares aos sem-abrigo a quem conhecia os nomes, as doenças e os passados – porque os futuros eram um exercício difícil de adivinhação. Quando o relógio da igreja onde dava catequese aos domingos assinalava a meia-noite, o jovem economista ainda arranjava tempo para navegar na internet – não nas redes sociais como fazia meio mundo, mas nos sites oficiais, procurando um programa comunitário, um prémio, um fundo, uma ajuda financeira. De facto, as crianças em risco mereciam-lhe toda a atenção.

Foi numa dessas noites frias e chuvosas, quando distribuía uma sopa de legumes fumegante a quem vivia na rua embrulhado em cartão canelado, que conheceu a Carolina. Trocaram um olhar breve, carregado daquela cumplicidade que une quem se dedica à caridade. As mãos tocaram-se fugazmente quando se organizaram para entregar tabuleiros, recolher canecas vazias, distribuir um par de meias quentes.

Três semanas depois Henrique dirigia-se às avenidas novas onde, num terceiro esquerdo elegante e discreto, vivia a Carolina, uma licenciada em Direito e especialista em fiscalidade num escritório de renome. Já se conheciam minimamente, tinham trocado experiências e opiniões sobre a solidariedade, a vacuidade das vidas, o egoísmo das opções, o serviço ao próximo, a importância do combate à pobreza e à exclusão.

Mas o jantar de hoje tinha um outro fim, mais carnal, mais afectivo, mais erótico. Afinal, eram dois adultos livres, solteiros, independentes, que se juntavam para gozar da companhia mútua e de uma noite previsível de amor.

Carolina estava deslumbrante, vestida com uma roupa que assentava tentadoramente num corpo que, não sendo perfeito, provocava a inveja de muitas colegas e o desejo de inúmeros clientes. Após o jantar sentaram-se num sofá e, pouco tempo depois, enroscavam-se num beijo longo, sensual, húmido, carregado de erotismo. Henrique correra-lhe o corpo com as mãos e ela entregara-se sem restrições, ambicionando também uma noite que se prolongasse sem fim.

Espera, dissera ela com a roupa semi-desabotoada, deixa-me por música e acender umas velas. Levantou-se mas deixou-lhe outro beijo ardente, sentindo-lhe as mãos sem recuo.

Baixou as luzes, acendeu uma velas e colocou um disco na aparelhagem. Tinha-lhe dado as costas e lentamente – muito lentamente – tirara todas as peças de roupa enquanto Joe Cocker cantava, na sua voz característica, you can leave your hat on... A fiscalista estava integralmente nua e rodou lentamente, antevendo a emoção que provocaria no seu namorado ao revelar-se por inteiro – e pela primeira vez.

Henrique, o homem que servia os pequenos-almoços aos idosos, que construía business plans para associações de deficientes, dava catequese, distribuía sopas aos sem-abrigo e investigava fundos comunitários para crianças em risco dormia profundamente, com a boca ligeiramente aberta e uma mão solta de onde se penduravam uns óculos periclitantes.

Sabes qual é o teu mal, Henrique? - afirmou Carolina num monólogo frustrado, enquanto calava o Joe Cocker, apagava as velas e cobria uma nudez que só ela via – é que tu não fazes caridade. Tu sofres é de gula. E isso não é um pecado?

JdB

* publicado originalmente a 26 de Abril de 2010

10 março 2016

Pensamento impensado

Especial tomada de posse do Presidente da República

Cavaco Silva, especialista em matéria vaga, gramaticalmente passou para Pretérito Imperfeito, e passará à História como "O Balbuciante", "O Tenso" ou "O Carrancudo".

Em todos os aspectos, o Rei de Espanha foi o mais alto representante.

Maria Cavaco Silva, como Rebelo de Sousa não tem "dama", passou de Primeira Dama para Última Dama e, como de costume, ia vestida como dita a moda da Rua dos Fanqueiros (diria Vera Lagoa).

Rebelo de Sousa beijou o anel do Sr. Cardeal Patriarca, mostrando que ser-se  católico é mais que ser Presidente da República. 

Cavaco Silva não beijou a mão ao Papa. Os reis de Espanha beijaram.

SdB (I)

Dramas dos dias que correm



Iémen: Mártires da caridade, vítimas da indiferença

“Estes são os mártires de hoje! Não são capas de jornais, não são notícias: eles dão seu sangue pela Igreja. Essas pessoas são vítimas do ataque que as assassinaram, mas também foram mortas pela indiferença, por esta globalização da indiferença a quem nada importa…

Que Madre Teresa acompanhe ao paraíso estas suas filhas mártires da caridade e interceda pela paz e pelo sagrado respeito da vida humana. Expresso a minha proximidade às Missionárias da Caridade pelo grave luto que as atingiu dois dias atrás com a morte de quatro Religiosas em Aden, no Iémen, onde assistiam idosos. Rezo por elas e pelas outras pessoas assassinadas no ataque, e por seus familiares”.

Estas foram as palavras do Santo Padre Francisco no Ângelus de Domingo, 6 de Março, ao final do qual recordou o massacre ocorrido no Iémen em 4 de Março.

No Dia Internacional da Mulher, a Fundação AIS quer homenagear estas mulheres que, por amor a Deus, entregam a sua vida servindo o próximo mesmo com o preço da sua vida. Que o seu testemunho exale por todo o mundo o bom perfume da santidade e gere em nós disposição para amar até as últimas consequências.

As irmãs da congregação fundada por Madre Teresa de Calcutá foram mortas juntamente com outras 12 pessoas , por extremistas do Estado Islâmico que invadiram o convento.

“Nós decidimos ficar!” Segundo D. Paul Hinder, vigário apostólico para a Arábia meridional, essa foi a declaração das irmãs quando souberam que corriam risco de vida permanecendo no convento da cidade de Áden, sul do Iémen . Com a decisão de seguir com a missão, apesar das ameaças, estas religiosas mostraram a radicalidade da entrega e do amor a Cristo. “Elas deram o seu sangue pela Igreja”

"Matar em nome de Deus é uma coisa terrível que nenhum verdadeiro muçulmano pode aceitar. Quem comete esses crimes desumanos são indivíduos dominados por uma ideologia que desequilibra a pessoa. As irmãs assassinadas estavam a dar as suas vidas para servir os idosos e deficientes. Quanto mais a Igreja está perto de Cristo, mas participa de Sua paixão. Por isso, o massacre perpetrado por um comando armado na residência para idosos e deficientes confiada aos cuidados das Missionárias da Caridade é também um sinal de que esta Congregação está muito próxima, é Jesus Cristo, porque aquele que se aproxima de Jesus Cristo se aproxima também da sua Cruz. O cristão que permanece longe de Cristo nunca será tocado pela perseguição, mas quem se aproxima de Cristo está envolvido na sua paixão e morte para o ser também na glória de sua vitória", afirmou D. Camillo Ballin, vigário apostólico para o Norte da Arábia. 

Com o Santo Padre e em comunhão com a toda a Igreja, rezamos por elas e com elas:

Senhor Jesus,

Ensinai-me a ser generoso,
A servir-Vos como Vós o mereceis,
A dar-me sem medida,
A combater sem cuidar das feridas,
A trabalhar sem procurar descanso,
A gastar-me sem esperar outra recompensa,
Senão saber que faço a Vossa vontade santa,

Ámen


Esta é uma das orações que as Missionárias da Caridade, assassinadas em Iémen, recitavam depois da Missa, antes do seu martírio.

09 março 2016

Do teatro

Fotografia de Alfred Eisenstaedt

É impossível não falar aqui da grande influência que teria no espírito da nação um bom teatro regular. Considero espírito nacional de um povo a semelhança e a unanimidade das suas opiniões e tendências em relação a problemas que outra nação vê e sente de modo diferente. Só no teatro se consegue em alto grau essa unanimidade, porque ele atravessa todo o campo do saber humano, esgota todas as situações da existência e ilumina todos os recantos do coração: porque concentra em si todas as camadas e classes e é a via mais aberta para a razão e para o coração. Se todas as nossas peças fossem dominadas por uma tendência maior, se os nossos poetas quisessem unir-se para alcançar este objectivo, se os seus trabalhos fossem orientados por uma rigorosa selecção, se os seus pincéis se ocupassem apenas de temas do seu povo, numa palavra, se conseguíssemos chegar a ter um teatro nacional, chegaríamos também a ser uma nação. 

Estas palavras fazem parte de uma lição proferida em 1784 por Friedrich Schiller, subordinada ao tema do teatro como instituição moral.

(não consigo fugir da ideia potencialmente disparatada de que o nosso teatro nacional foi a revista à portuguesa, o que daria a noção de equivalência entre teatro nacional e nação...)

Não sou especialista em teatro, além de que sou pouco frequentador das salas em questão, mais por preguiça de agenda do que pode oposição estética. Cresci na ideia de um teatro excessivamente declamado, com obras que me pareciam excessivamente desinteressantes. De um lado havia a seriedade do teatro, do outro a brejeirice da revista. Entre um e outro uma espécie de no man's land. Hoje em dia o panorama não será este, e a oferta é vasta. Mas, mesmo assim, teremos um teatro nacional?

Por outro lado - e com uma excepção, por motivos muito pessoais, da peça Oscar e a Senhora Cor de Rosa - o teatro não consegue (ainda) emocionar-me como o cinema ou como um livro. Há qualquer coisas que lhe falta (não sei o quê) que não me vai bater à porta da alma. A ideia de Schiller, que ele formula, mesmo assim, com um entusiasmo muito parcimonioso, de que os personagens maus serviriam como uma espécie de boa influência nos espectadores por revelarem vícios existentes na sociedade, é interessante mas discutível. Um personagem de ficção é uma boa influência? E como, se ele não existiu, a não ser na mente e na caneta de quem o criou? Como pode um personagem inventado dizer-nos o que fazer ou como nos comportarmos?

Com excepção, talvez, dos autos de Gil Vicente, a peça de teatro com que a minha geração se iniciou terá sido o Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. A esse respeito talvez valha a pena referir a abordagem que dessa peça faz Eduardo Lourenço, em O Labirinto da Saudade: "no centro desse percurso [de Portugal] está simbolicamente o ninguém do Frei Luís de Sousa (...)." E continua: "Quem responde pela boca de D. João (de Portugal...), definindo-se como ninguém, não é um mero marido ressuscitado fora da estação, é a própria pátria." Mais do que uma obra romântica, Frei Luís de Sousa teria uma "natureza histórico-política, ou, se se prefere, simbólico-patriótica."

Pela simbologia, mais do que pela revelação de uma realidade, gosto muito desta leitura de Eduardo Lourenço, tão diferente daquela que nos apresentaram - se é que o fizeram - há mais de 40 anos. Se o nosso teatro nacional for este a nação está encontrada, ainda que pelos piores motivos.

JdB 

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