Não posso deixar de me espantar com o estado actual do nosso Portugal. Há boas notícias para todos os gostos e em áreas muito diferentes: desde logo, a redução do défice e o disparo do crescimento, a saída do PDE ou a (esperada) escalada nos rankings em fuga à ignominiosa classificação de "lixo"; a vitória encarnada nas competições internas de futebol, satisfazendo plenamente no mínimo 6 lusos em cada 10 (não é felizmente o meu caso); a proeza de Salvador Sobral no concurso da Eurovisão, resgatando décadas de más musicas, prestações sofríveis ou algumas pontuações injustas; as hordas de turistas que nos enchem as cidades e os cofres, numa cabal demonstração de que Portugal está na moda e se recomenda. Enfim, de realçar ainda, sobretudo pela longevidade, os convívios alcançados pelas altas figuras da Pátria e no seio da geringonça.
E novas vitórias se perspectivam. Habituados como estamos a comemora-las, não se estranhe se incluirmos no rol as do Real Madrid, o nosso Benfica castelhano.
Claro que nem tudo são rosas, que a tão falada "sustentabilidade" continua a ser uma incógnita. Mas ai de quem se atreva a lançar avisos à navegação, ou mesmo a suscitar apenas algumas dúvidas. É imediatamente apelidado de "profeta da desgraça" e compelido ao degredo.
Não serei também eu a fazer esse papel, ingrato mesmo que patriótico. Espero apenas que não estejamos a ser enganados. De novo.
«Enquanto olhava alternadamente pelas duas grandes janelas que davam para o passado e para o futuro, os ladrões entraram imperturbáveis no quarto e roubaram-me totalmente o presente.»
Segundo um antigo apólogo rabínico, um dia Deus enviou o anjo Gabriel com o dom da eternidade para oferecer à humanidade. Depois de uma longa exploração, o anjo regressou apertando ainda nas mãos aquele dom.
E explicou ao Senhor: «Não encontrei nenhum homem que me escutasse, porque todos tinham um pé no passado e outro no futuro, ou não tinham um presente para se deterem e ouvirem-me».
É verdade, como dizia Santo Agostinho, que o presente, quando é dito, já se tornou passado, enquanto antes é somente um futuro a realizar-se. E todavia a vida é precisamente um contínuo presente, e tinha razão a poetisa italiana Margherita Guidacci (1921-1992) quando, em 1967, fazia a intensa confissão que acima confiámos aos nossos leitores.
São muitos os ladrões do presente que se aproveitam das nossas distrações para nos roubarem o instante em que vivemos. Há a nostalgia do passado que nos faz olhar para trás com melancolia, como acontece à mulher de Lot ou como aconteceu com o famoso escritor francês Marcel Proust, dedicado só à «procura do tempo perdido».
Quem assim vive torna-se uma pessoa de arrependimento permanente, conservadora, lamentadora, deprimida, convicta de que a idade de ouro só existe atrás de si.
Mas há também o frenesim do futuro que torna a pessoa sempre tensa, exaltada, frenética, febrilmente atraída para um "depois" que lhe escapa das mãos, refugiando-se entre o nevoeiro da utopia.
Torna-se por isso importante «compreender esta hora», como dizia Jesus aos seus ouvintes, amar o instante em que Deus nos coloca continuamente, na expetativa do instante único, perfeito e definitivo da eternidade.
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura Publicado em 26.05.2017
Les beaux esprits se rencontrent, disse-lhe Alfonso quando, à porta do Café Tortoni, começaram o acerto do espectáculo das semanas seguintes. Irene sorriu - conhecia a citação de Voltaire, pois antes de se dedicar também à dança dos tangos e milongas tinha feito uma pós-graduação em pensamento europeu. Meditou sobre essa espécie de força gravitacional que, numa urbe pejada de desconhecidos e numa escala de probabilidades que se aproxima do quase impossível, impele duas pessoas determinadas uma para a outra.
Alfonso era uma homem decididamente bonito - umas pernas altas e esguias, um tronco proporcionado, uma melena negra, muito negra, penteada com esmero e fixador para trás, uns olhos verdes de uma transparência estonteante. Tinha 34 anos e uma vida curta mas intensa dedicada ao estudo de Carlos Gardel, das origens do tango, da influência do clima uruguaio na sensualidade do mestre, da possibilidade de colocar a milonga dançada num trio (dois homens a disputarem a mesma mulher, por exemplo) ao nível de um erotismo marmoreado de infidelidade consentida. Dançar no Tortoni era o sonho de alguém para quem o ambiente vence a quantidade, para quem a pequenez do recinto casa com a grandeza da técnica e com o arrebatamento da alma. Dançar com Irene era o encontro de dois espíritos superiores, como se a brisa porteña só transportasse aquele odor que aproximava os dois amantes da música e da dança.
Irene parava o trânsito, imobilizava uma loja, congelava um assistência. Havia naquele nariz adunco, naqueles olhos negros de azeviche muito abertos, naquele andar de gazela magra e naquela boca quase imperceptível, tal a finura dos lábios, uma mistura milagrosa - ou maldita. Tinha-se formado em literatura sul-americana com uma tese de doutoramento onde defendia que a cegueira de Jorge Luís Borges não era uma fatalidade, mas uma escolha do escritor para se proteger de uma certa barbárie dos costumes e de uma incómoda estética das capas. Aos 31 anos, filha de uma dançarina profissional e de um tocador de bandonéon, optara pela vida nocturna no Tortoni para poder pagar um curso de Verão em Paris sobre o despojamento ao serviço da elevação da alma e da nobreza do carácter.
Les beaux esprits se rencontrent, repetiu-lhe Alfonso, estendendo-lhe uma mão firme, bem tratada e sem as calosidades que ofendem um toque que se quer subtil, ainda que erotizado. Ela sorriu e devolveu-lhe cumprimento, apercebendo-se do impacto que causara o nariz, a boca, a perspectiva do andar de elegância animal. E apercebeu-se ainda, fruto de um sexto sentido que mais não é do que o olhar atento a pormenores específicos, do desejo fortemente sexuado do seu parceiro das próximas semanas. Ele queria-a e ela sabia-o; a certeza foi-se confirmando no decorrer dos ensaios semanais que culminariam na estreia do espectáculo, numa noite amena do final de Abril.
O cantor, de olhos fechados, casaco apertado e gravata desalinhada com o renque de botões da camisa azul celeste com folhos, tremia sem remissão à medida que cantava el dia que me quieras / la rosa que engalana / Se vestirá de fiesta con su mejor color, porque não há, no tango, uma emoção de cantar que se desgarre da emoção das palavras. Alfonso sorriu, estreitou Irene nos braços, sentiu-lhe a perna ágil, a coxa torneada, as nádegas rijas, o desejo à flor da pele, a boca quase imperceptível que se abriria para o beijar. Quiero emborrachar al corazón / Para después poder brindar / Por los fracasos del amor. O artista já mudara de tango mas nada se alterava entre eles: as pernas juntas, os lábios tocados, as mãos apertadas, a tensão erotizante.
Já nos camarins Alfonso, afastando uma melena negra que tapava uns olhos verdes, como se houvesse um prenúncio de luto, pegou-lhe nas mãos e sussurrou-lhe: desejo-te como nunca desejei ninguém. Estou certo de que também me desejas. Fica comigo esta noite. Os olhos de Irene abriram-se, a boca desapareceu numa finura rara e o nariz permaneceu adunco e sensual: Sabes Alfonso, o sexo é uma concessão que as pessoas vulgares fazem ao burguesismo conjugal. Danças muito bem, mas não me verás desnuda. Passa bem. Amanhã começamos com a Milonga del Angel?
10 minutos depois Alfonso observava Irene a sair do estabelecimento de braço dado com um senhor mais velho, que ele vira a servir à mesa no café Tortoni. Imaginou que seria o pai, tocador de bandonéon atirado para o olvido por via da idade, das técnicas modernas e da ausência de artroses. Só percebeu que não era quando a mão do acompanhante se agitou num movimento de vaivém erótico e pecaminoso, detendo-se aberta na nádega rija de Irene, doutorada em cegueira borgeana e adepta do despojamento e das carícias idosas.
Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direcção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram n’O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou Se e disse lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e ensinai todas as nações,
baptizando as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
***
Ascensão: Tão longe e tão próximo
O último encontro de Jesus com os seus (Mateus 28, 16-20) é sobre um monte na Galileia, a terra onde tudo tinha começado. Os montes são como dedos apontados para o infinito, a terra que se adentra no céu, banquinho para os pés de Deus, morada da revelação da luz: sobre os montes, com efeito, pousa o primeiro raio de sol e se demora o último.
Quando o viram, prostraram-se. Todavia duvidaram. Jesus deixa a Terra com um balanço deficitário: só ficaram 11 homens amedrontados e confusos e um pequeno núcleo de mulheres tenazes e corajosas. Seguiram-no durante três anos pelas estradas da Palestina, não compreenderam muito mas amaram-no muito, e foram todos ao encontro na última montanha.
E esta é a única garantia de que Jesus precisa. Agora pode voltar ao Pai, seguro de ser amado, ainda que nem de todo compreendido, e sabe que nenhum deles o esquecerá.
Jesus realiza um ato de amor, ilógica confiança em homens que continuam a duvidar, não fica a explicar e a voltar a explicar. O Evangelho e o mundo novo, que sonharam juntos, confia-os à sua fragilidade, e não à inteligência dos primeiros da aula: é a lei do grão de mostarda, da pitada de sal, dos pequenos que podem ser fermento e talvez até fogo, para contagiar de Evangelho e de nascimentos aqueles que encontrarem.
Há uma passagem surpreendente nas palavras de Jesus: a mim foi dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois. Este "pois" é belíssimo: para Jesus é óbvio que cada coisa que é sua é também nossa. Tudo é para nós: a sua vida, a sua morte, a sua força. Ide, pois. Fazei discípulos todos os povos... Com que propósito? Alistar devotos, fazer crescer o movimento com novos adeptos? Não, mas para um contágio, uma epidemia divina a derramar sobre a Terra. Ide, perfumai de céu a vida que encontrardes, ensinai a arte de viver, assim como vistes fazer a mim, mostrai-lhes o quanto são belos e grandes.
E depois as últimas palavras, o seu testamento: Eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo; convosco, sempre, até ao fim.
É destas palavras que compreendemos o que é a ascensão. Não foi para longe ou para o alto, para qualquer canto remoto do cosmo, mas fez-se mais próximo do que antes. Se antes estava junto dos discípulos, agora estará dentro deles. Não foi para além das nuvens mas para além das formas. Ascendeu ao profundo das coisas, no íntimo do criado e das criaturas, e de dentro impulsiona como força ascensional para uma vida mais luminosa.
Esse Jesus que tomou para si a cruz para me oferecer em cada meu sofrer centelhas de ressurreição, para abrir brechas nos muros das minhas prisões, é Ele o meu Deus perito em evasões!
Vejo na televisão Donald Trump a ser recebido pelo Papa e a sentar-se antes dele.
Trump também está sempre de casaco desabotoado. (Calor no umbigo)
Nunca tive paciência para ordinarices.
Bernardo Maria despedira-se do último convidado. Cinco minutos depois, encostado à ombreira da porta de sua casa do Restelo, olhara com uma ternura indisfarçada para a sua filha Carmo, vendo-a afastar-se de braço dado com Tiago, o seu marido. A festa do 10º aniversário do casamento de ambos fora um sucesso.
No quarto do primeiro andar, Carlota, a sua mulher de há mais de 30 anos, sentara-se ao toucador, frente a um espelho, a uma fotografia emoldurada do Pai com o Prof. Marcello Caetano e a uma saudade de um tempo fagueiro que não voltaria. Quedou-se com um boião de creme na mão, enquanto a mente deambulava pelo dia em que recebera a notícia do casamento da filha.
Oh minha querida! Fico tão satisfeita. Enquanto isso, no seu escritório, Bernardo Maria escutava o ruído decrescente de uma casa que se vai arrumando aos poucos. A empatia pelo genro nascera com o primeiro aperto de mão entre ambos, talvez há 20 anos.
Olá Tia, olá Tio. Entrem, se faz favor, que os pais estão lá dentro.
As relações entre as pessoas nem sempre são classificáveis por palavras certas, disponíveis nos manuais da especialidade. Bernardo Maria tinha-se-lhe afeiçoado, se bem que não soubesse caracterizar como. Afinal, enquanto Tiago saía com a sua própria filha, ele alimentava uma clandestinidade com a mãe do rapaz, que fora votada a um abandono, sexualmente injusto e financeiramente confortável, por um marido empresário e passageiro frequente.
Um dia, escrevera no seu livrinho de capa preta que o acompanhava há alguns anos:
Ana Sofia, 15 de Janeiro. Casa bonita, cama larga, música suave. Sexo óptimo; mulher experiente e ágil; criativa e com iniciativa. A repetir e a manter.
Bernardo Maria sorrira ao deambular pelo livro, um verdadeiro who’s who da sua vida paralela.
Irene, 18 de Agosto. Mulher poderosa e esgotante. Pouco versátil, agarrada a fórmulas certas. A espaçar devido à exaustão física que me provoca. Anabela, 1 de Novembro, dia de Todos os Santos. Mulher pequena mas proporcionada, obediente. Sugeri-lhe operação estética aos seios. Dava-lhe outro impacto. Casa pequena, com um cheiro permanente e adocicado que é estranho mas agradável. Dulce, véspera de Natal… Andreia, 1 de Fevereiro, dia do regicídio… Ana Sofia, 2ªfeira de Carnaval. Tiago muito simpático, enternecido pela companhia quinzenal que faço à mãe na ausência do pai. Sexo extraordinário de arrojo, resistência e inovação. Este dia, então, foi de ir às nuvens. Pateta do António, que deixa aquela mulher sem dono.
Bernardo Maria voltou a sorrir, cheio de um encantamento por uma vida secreta e estimulante, repleta de aromas, de posições, de certezas, ausente de remorsos. O sorriso ainda não se desvanecera quando viu, a um canto do escritório, um caderno igual ao seu, mas onde vislumbrou a caligrafia do genro.
Miss X. 15 de Janeiro. Indescritível de ternura, sofreguidão e desejo. Terminou a chorar. Irene, 20 de Agosto. Já vi mais criatividade, mas é um género. Se não fosse a minha preparação física, talvez não aguentasse. Anabela, 3 de Novembro. Gosto daqueles seios pequenos . Quer ser operada e discordei. Casa com cheiro enjoativo. Dulce, 26 de Dezembro… Andreia, 3 de Fevereiro… Miss X. 2ªfeira de Carnaval. Como se descrevem duas horas de pleno gozo? O riso final foi o de um sorriso que findara. Chorou. Bernardo Maria sentiu que ficava sem sangue. Olhou em frente, para uma árvore genealógica onde os seus antepassados se cruzavam com as elites merecidas ou nascidas e não viu orgulho de gente antiga, presunção de mais valor, sangue medieval. Só conseguiu ver uma filha atraiçoada vezes sem conta, um genro que o seguia nas capelinhas do desejo, parando com uma exactidão de complô nas mesmas estações e apeadeiros. Antes de se deixar cair num sofá ainda teve forças para uma última pergunta, gritada para o andar de cima:
Carlota! Lembras-te do que fizeste na 2ªfeira de Carnaval?
JdB
* publicado originalmente a 8 de Fevereiro de 2010
A linguagem gestual permite acompanhar a comunicação daquilo que a fala não alcança a não ser intermitentemente, isto é o silêncio. Ora, o silêncio, do ponto de vista retórico, pode ser um contexto de intensificação da mensagem sobretudo se ela intencionar um cariz mais afetivo. Diz-se de alguns silêncios serem eles eloquentes. Mais ainda quando um gesto os complementa ou mais completamente os exprime. Uma linguagem exclusivamente gestual, como a dos surdos-mudos, opera em silêncio nisso se diferenciando da fala que o rompe. Não totalmente, no entanto, uma vez que a fala é toda ela feita também de silêncios intercalares que é aliás o que lhe permite ser ouvida. A questão mais relevante aqui é: como é que aquele que ouve pode beneficiar do "conhecimento" do silêncio e do corpo que é próprio ao surdo, de modo a nele aprender a parte pulsional do silêncio e da voz?
O tempo da receção vive-se antes de mais no silêncio. Acolher o dom do amor do Outro passa pelo silêncio da escuta. Ou não fosse o silêncio o pai da palavra, como dizia Domingos de Gusmão. O místico Jean Tauler, evocando o "Dum medium silentium" da liturgia, escreve: «É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devem sair». Receber a palavra não é receber uma mensagem a transmitir, é reconhecer esta palavra num corpo, como palavra da vida. É pelo corpo que passa a receção: não há palavra sem interação. Não há praxis enunciativa sem um corpo que responde a outro corpo. Mesmo que seja virtual: afinal, pensar, recordar, são operações virtuais, não há traços visíveis que as colham, ao contrário da escrita.
O texto de Marcos diz-nos que o gesto de dom tecido na verdade do silêncio é um mais pregnante do que qualquer outro, calculista, dominador, masculino. Como anunciar aquele que nos tocou sem pronunciar uma palavra só? Estando Jesus em Betânia, à mesa, chegou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus (Mc 14,3). Uma mulher coloca um gesto em silêncio: quebra um frasco de perfume e derrama-o na cabeça de Jesus. Gesto que os discípulos não entendem. Jesus assinala a distância entre o gesto e o efeito que criou quando lido e interpretado. As palavras dos discípulos não entendem a perda senão em termos de descodificação. Jesus dirá que ela «fez uma boa obra». Ela não perfuma o corpo morto, mas um corpo à mesa. «Em qualquer parte do mundo onde for proclamado o Evangelho, há-de contar-se também, em sua memória, o que ela fez» (Mc 14,9).
O seu gesto é transformado em palavra de anúncio. O perfume derramado transforma as aparências e aquilo que se diz delas, abrindo um outro espaço. O vaso quebrado assinala a dissociação entre as palavras e as coisas (as aparências) em que diz algo diferente da relação ao outro: este corpo vivo como "coisa" visível não deve ser tido por aquilo que parece ser, transporta um outro tempo e um outro espaço nele: «O filho do Homem será entregue, sofrerá, morrerá e ressuscitará ao terceiro dia». O frasco partido rasga as aparências e faz intervir uma palavra que vem de algures, do fundo das Escrituras. A unção pode ser vista como um gesto colocado sobre o corpo: um corpo morto pede que sobre ele se coloquem gestos de embalsamento. Este gesto é uma porta que abre para um corpo a vir, inscrevendo nas margens do visível o invisível da vida e da morte. O gesto da mulher adverte para a ilusão de poder absoluto sobre o mundo, sobre si e o outro.
A palavra nasce do silêncio. O silêncio da mulher é um silêncio prenhe: o da palavra silenciosa, da palavra do corpo que fala. Esta mulher fala por gestos, não por palavras: prefigura o triunfo da morte. Pode este perfume útil para a conservação do corpo morto servir para a conservação da palavra? De que fala esta fratura do vaso senão do ato de proclamação e da economia, dom do amor que só na brisa ligeira se percebe - que é discreto, silencioso - e nos leva a desconfiar da impostura da língua e dos grandes gestos. O dom da mulher passa por um perfume evanescente que passa numa brisa ligeira e é o seu gesto de derramar este perfume que Jesus associa ao anúncio do evangelho.
Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: O seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra. Deus é percetível como um perfume quando o confessamos e celebramos: "Respire in te paululum (Confissões, XIII). «Eis onde estás! Respiro um pouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em que ressoam ares de festa celebrada» (Agostinho).
Neste ano histórico do centenário das aparições em Fátima, é curioso revisitar os acontecimentos do século passado e redescobrir na História ecos claros da mensagem legada aos três pastorinhos, há cem anos, apesar de parecerem demasiado novos, demasiado pobres e demasiado arredados dos centros nevrálgicos onde “tudo” aconteceria.
Num sumo exagero, estes mensageiros vinham do povoado mais remoto e insignificante de um país pequeno e algo periférico, como era Portugal. Para adensar o paradoxo, que quase roçava a caricatura: dois dos videntes morreram precocemente (1919 e 1920) enquanto a mais velha recolheu à clausura do convento, com proibição de divulgar a mensagem de Fátima. Portanto, o voto de silêncio venceu em toda a linha, indo ao encontro do desejo do anti-clerical Administrador do Concelho de Ourém de calar os pastorinhos. Em 3 anos, tinham-se eclipsado, serenamente.
Então porque não pararam as multidões de acorrer a Fátima? Porque aumentava a devoção popular, com reservas da hierarquia da Igreja e a hostilidade das autoridades civis? Porque foi restaurada, com tanta rapidez, a primeira capela destruída no atentado de 6 de Março de 1922? Porque nunca faltaram dádivas generosas e voluntariado, quando o dinheiro rareava num país depauperado, desde o tempo das Guerras napoleónicas, a que se somaram: a guerra civil, a rotação desenfreada de governos fracos e despesistas, o ambiente de guerrilha da I República?
Sobretudo no início, houve um desencontro abissal entre Fátima e as autoridades/elites. Provocava desconforto e até aversão numa camada mais intelectualizada e cerebral, que se escandalizava com a piedade crua de Fátima, imprevisível, fora dos cânones e desinteressada do politicamente correcto. Ainda hoje subsistem resquícios dessa demarcação, como se representasse um atentado à razão, quando constitui apenas um desafio (abissal, convenhamos) aos condicionalismos da razão. Claro que extrapola as concepções humanas. Basta lembrar a incompreensível escolha dos videntes, do local inacessível, da data, etc. Mais: Fátima não é dogma, sendo a sua crença facultativa e perfeitamente legítimas para um católico/cristão eventuais reservas ou objecções.
Retomando o tema central: há múltiplas ligações de Fátima às biografias dos Papas do século XX. A referência sumária a algumas delas desdobra-se por dois gins, tal a quantidade. Este elenco apoia-se no manancial de dados publicados no conjunto de artigos da autoria do professor do Técnico José Maria André (JMA) (1), a quem agradeço o precioso contributo. As “coincidências” seguem por ordem cronológica:
A 30 de Julho de 1916, o Papa que viveu a I Guerra, Bento XV, quis reunir-se com as crianças de Roma –– encomendando-lhes a oração pela paz no mundo. Considerou-as a melhor “cunha” junto do céu, num gesto inédito de valorizar os mais novos numa sociedade que só reparava neles quando começavam a aproximar-se da idade adulta. Lançou também uma campanha de recolha de patrocínios norte-americanos para socorrer as crianças vítimas da Guerra na zona mais encarniçada dos combates, na Bélgica. Dedicou-lhes ainda 2 das suas encíclicas do pós-guerra (1919 e 1920). No ano de 1916, noutra ponta da Europa, tiveram lugar as três aparições do Anjo aos pastorinhos. Com apenas 7, 9 e 10 anos eram escolhidos para transmitir aos crescidos e às gerações futuras a mensagem de paz e de conversão do Céu.
Exactamente, a 13 de Maio de 1917, o Papa Bento XV ordenava Bispo, na Capela Sistina, quem viria a ser o Papa da Segunda Guerra Mundial – Pio XII.
De 1917 até 20 de Fevereiro de 1920, depois de ver e ouvir a Senhora mais branca que o sol, Jacinta ofereceu a vida pelo «homem vestido de branco», sem ter a menor ideia de quem viria a ser. Bastara tê-lo visto na prefiguração dantesca mostrada a 13 de Julho, numa antevisão do sofrimento da Igreja, que ficaria resguardada na parte mais secreta (a terceira) do «segredo de Fátima». Resolvera doar a sua curta vida no escuro, sem o menor consolo, pois só a 18 de Maio de 1920, meses depois da sua morte, nascia o desconhecido. Viria a ser o Papa João Paulo II, reconhecido pela Irmã Lúcia como a figura da aparição de 1917, logo que se deu o atentado de 13 de Maio de 1981. Três curiosidades:
- quem sabe se foram os frutos da oração generosa de Jacinta a melhorar radicalmente o desfecho de uma morte certa, mostrada na visão de 1917 e garantida pela pontaria certeira do homicida turco? O Papa atribuiu o milagre à intercessão de Maria.
- Com a sua originalidade desconcertante, S.João Paulo II resolveu oferecer ao Santuário de Fátima a bala extraída da cirurgia. Em Portugal, vingou a ideia de a associar à Imagem. Para rematar o insólito: o projéctil encaixou na perfeição num orifício descoberto na base da coroa, como se fosse esperado. Bastou colá-lo.
- A última vidente de Fátima morreu a 13 de Fevereiro de 2005 e o Papa João Paulo II logo a 2 de Abril do mesmo ano, outra vez com uma distância de poucos meses, mantendo uma relação estreita com a biografia dos pastorinhos.
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Retrato
de Santa Jacinta de Jesus Marto
Em meados de 1938 (ou logo no ano anterior), a Irmã Lúcia vislumbrou nos céus da Península Ibérica os sinais que Nossa Senhora preanunciara, em 1917, sobre a possibilidade de deflagrar novo conflito, mais feroz que o de 1914-1918, se o mundo não se convertesse. Assemelhava-se, vagamente, a uma aurora boreal. Segundo escreveu: avisou as suas superioras do significado daquele sinal e já não foi apanhada de surpresa quando a Segunda Guerra Mundial teve início, em Setembro de 1939.
Em 1950, a dias da proclamação do dogma da Assunção de Maria em corpo e alma ao céu, Pio XII viu o milagre do sol, no Vaticano. Entre 30 de Outubro e 8 de Novembro, repetiu-se a dança do sol, por 4 vezes, à sua vista.
Ao descobrir a história das aparições em Fátima, percebeu que era a réplica do fenómeno presenciado na Cova de Iria, a 13 de Outubro de 1917, por uma multidão de c. 70.000 pessoas. Segundo um artigo muito recente de JMA, há também notícias (Agência Ecclesia) de um encontro havido entre Pio XII e a Irmã Lúcia, a quem o Papa deu ordem para transcrever as mensagens recebidas de Nossa Senhora. Foi o primeiro pontífice a reconhecer oficialmente a credibilidade das aparições.
Em 1952, a imagem peregrina da Senhora de Fátima foi recebida, pela primeira vez, na Sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. A segunda visita à ONU ocorreu no passado dia 12 de Maio, onde ocupou um lugar na fila VIP. A tabuleta azul destinada às altas individualidades indicava sumariamente «reserved», pois era uma presença auto-explicativa:
-->
O
lugar de Nossa Senhora situa-se na linha das personalidades da mesa de presidência, virada para a audiência.
No ecrã está a imagem que costuma
preceder o anúncio dos oradores principais/dos convidados de honra da sessão.
No Sábado 13 de Maio de 1967, Paulo VI presidiu às celebrações do cinquentenário das aparições de Fátima. Assim confirmava a validade e o alcance histórico daquela mensagem mariana, crivada de evocações à Guerra Fria, em concreto ao avanço imparável do comunismo e da ameaça nuclear. Numa mensagem dramática durante a homilia, vinha à Cova de Iria implorar pela paz:
«Dois motivos principais tornam, por isso, grave esta situação histórica da humanidade: ela possui um grande arsenal de armas terrivelmente mortíferas, mas o progresso moral não iguala o progresso científico e técnico. Além disso, grande parte da humanidade encontra-se ainda em estado de indigência e de fome, ao mesmo tempo que nela se acha tão desperta a consciência inquieta das suas necessidades e do bem-estar dos outros. É por este motivo que dizemos estar o mundo em perigo. Por este motivo, viemos Nós aos pés da Rainha da paz a pedir-lhe a paz, dom que só Deus pode dar.
Sim, a paz é dom de Deus, que supõe a intervenção de uma acção do mesmo Deus, acção extremamente boa, misericordiosa e misteriosa. Mas, nem sempre é dom miraculoso; é dom que opera os seus prodígios no segredo dos corações dos homens; dom que, por isso, tem necessidade da livre aceitação, depois de se ter dirigido ao céu, dirige-se aos homens de todo o mundo: Homens, dizemos neste momento singular, procurai ser dignos do dom divino da paz. Homens, sede homens. Homens, sede bons, sede cordatos, abri-vos à consideração do bem total do mundo. (…).
Vede, Filhos e Irmãos, que aqui Nos escutais, como o quadro do mundo e dos seus destinos se apresenta aqui imenso e dramático. É o quadro que Nossa Senhora abre aos Nossos olhos, o quadro que contemplamos com os olhos aterrorizados, mas sempre confiantes (…) seguindo a admoestação que a própria Nossa Senhora nos deu: a da oração e da penitência; e, por isso, queira Deus que este quadro do mundo nunca mais venha a registar lutas, tragédia e catástrofes, mas sim as conquistas do amor e as vitórias da paz.»
O próximo gin remontará aos episódios mais directamente relacionados com o derrube do comunismo, sem derramamento de sangue.
Mas impõe-se saltar esta sequência para os dias de hoje: no Sábado 13 de Maio de 2017, no epicentro do conflito mais sangrento da actualidade, os sírios puderam retomar a procissão com a imagem da Virgem de Fátima! Depois de um interregno de 5 anos, estavam comovidos por voltar a percorrer as ruas de Alepo com a Rainha da Paz, a quem consagraram a cidade martirizada: «Muitos de nós choramos porque, depois de seis anos, pudemos voltar a organizar a procissão pelas ruas de Alepo, sem medo dos mísseis. Com emoção, acolhemos Nossa Senhora de Fátima em Alepo, com a esperança de que a Virgem Maria rogará pela paz em toda a Síria».
São impressionantes e tocantes os caminhos da Mãe da humanidade para se tornar presente junto dos mais desprotegidos. Como prometeu em Fátima, não se cansa de ir aos lugares obscuros e assustadores de onde todos tentam fugir. Mantém-se, por isso, uma viajante em contracorrente, porque assim decidiu viver a sua maternidade até ao fim dos tempos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________
(1) Conjunto de artigos publicados a partir de Fátima, logo após o dia 13, em jornais e blogs anglo-portugueses (ABC Portuguese Canadian Newspaper, Correio dos Açores, Spe Deus, Clarim, O Alcoa, etc.).
Sequência dos títulos: O homem vestido de branco; O milagre do sol em Roma; Ensinar os Papas (ref. a Lúcia); Vivi distraído?...; Os protestantes; Impressões de Fátima; Ofertas do Papa a Portugal; «Não vês tanta estrada?...»; «Quereis oferecer-vos a Deus?...»; Nossa Senhora de Fátima na ONU; «As mulheres sabem tudo!»; Mais real que a pedra.
Muito se disse e falou do Salvador Sobral nos últimos dias. Talvez se tenha falado demais, não só para mim, que sou mais recatado nestas coisas, mas também para o cantor em questão, que não terá gostado de tanta exposição e mediatização. Não tiro o mérito, o grande mérito, ao Salvador que interpretou muito bem uma música muito bonita com uma letra pouco mais que engraçada. Mas ver o Parlamento em pé a aplaudir os dois irmãos parece-me excessivo. Talvez seja por ganharmos tão pouco, ou sermos tão pouco relevantes no quadro internacional, que uma vitória, qualquer que ela seja, se transforma numa gesta histórica e que exacerba um nacionalismo momentâneo que contrapõe uma maledicência quase endémica.
Apesar de um claro exagero com que se falou do cantor e da irmã - ficámos a saber tudo, só desconhecemos os gostos pessoais em termos de comida - esta música redimiu-me com a Eurovisão. De facto, há muitos muitos anos que não via o concurso que juntava a minha geração de volta de um televisor e de uma aposta. Tanto assim é que ainda me lembro de muitas músicas - até ao final dos anos 70, talvez... - que ganharam a versão nacional ou europeia. Agora vi, enervei-me, achei que o Salvador ia ganhar, depois ia perder, depois ia ganhar...
Deixo-vos com Salvador Sobral a cantar Fernando Pessoa. A música começa aos 3'15", mais coisa menos coisa.
Atenhamo-nos numa parecela da estante de Marinela Muñoz Balducci, uma porteña de 67 anos, pernas finas e curtas, braços com tendência para o grosso, peito proeminente, olhos verdes e uma cara considerada de uma beleza rara e surpreendente. Digamos, ainda antes de nos fixarmos nos livros que são sua compra e sua herança, que à D. Marinela faz sentido vê-la de baixo a alto, porque se dá início à viagem com ligeiro desinteresse e se termina a mesma viagem com espanto.
Livros, então:
- Gymnopedies: há um Richard Strauss por trás de um Eric Satie?
- Música rock - um estudo comparado entre o movimento e o crime organizado;
- A ópera bufa: dos primórdios ao rap, sempre a descer;
- 100 librettos de óperas que tem de ler antes de morrer;
- Wagner - a intemporalidade de um homem para todas as ocasiões;
- A prevalência dos meios tons nas óperas alemãs, russa e italiana;
- Música clássica como auto-ajuda: uma visão holística e terapêutica.
Se uma estante fala mais de um indivíduo do que o seu cônjuge, de D. Marinela está tudo dito: é a ópera, a música clássica, o ódio ao rock e à modernidade e às atonias dos cantautores, o fascínio evidente - e algo maçador, porque imposto a quem a visita - pelo belcanto, pelos românticos, pelo minimalismo de Satie ou pela gravidade de Mussorgsky. Entre os livros há pequenos nadas, bibelots que confirmam, mas não se impõem: um postal de Bayreuth e de Salzburgo, uma dedicatória da Schwarzkopf, um busto de Beethoven em marfinite, uma fotografia com Jacqueline du Pré ou da sua récita no conservatório antes de uma variz, persistente e demolidora, a ter atirado para uma cama com vista de esguelha para o cemitério da Recolecta e, com isso, ter visto a cremação da sua própria carreira.
D. Marinela tem rotinas: de manhã são as óperas italianas, pela alegria; em dias de chuva e ventania conforta-se com os russos, cuja gravidade da voz lhe dá segurança e conforto perante a natureza em exibição. De tarde, nas tardes muito alegres, vai a um Lehar, não sem antes informar a empregada, uma índia da Bolívia que sorri numa vacuidade de dentes: é opereta, percebe a diferença? Nos dias certos de luto e saudade, corre os Requiem - ou música semelhante - por ordem alfabética: Berlioz, Brahms, onde se demora chorosa, Mahler, Mozart, durante o qual debica um alfajorre de maicena com os lábios espetados e os olhos a piscarem muito num ritmo de gula pecaminosa. Raramente, porque a arrogância é uma constante citadina não assumida, embora exibida, chama a boliviana e explica-lhe com acinte: está a escutar este Confuntatis? Notou a declinação latina? Sabe quem é o paráclito?
Às primeiras terças feiras do mês, qualquer que seja o clima, Marinela Muñoz Balducci sai de casa pela escuridão da noite, demorando-se na porta de entrada, perscrutando o horizonte silencioso de uma cidade que vai adormecendo. Apanha um táxi e o destino sai-lhe com um misto de tremor e convicção, porque em ambos os sentimentos não há incompatibilidade. Volta duas horas depois, chorosa e nostálgica, coxeando levemente porque a variz não lhe dá tréguas, muito pelo contrário. Olha para a estante: acerta o postal de Salzburgo com a esquadria da biografia de Mozart, ajeita o busto de Beethoven para que não tape a dedicatória da Schwartzkopf. Depois deita-se, rememorando tudo: os sons, os movimentos, o palco com a fotografia reconfortante ao fundo, a decoração do recinto e a memória do contacto com quem ainda sabe ensinar. Por fim, já de camisa de noite cor de rosa, muito abotoada e até aos pés, enrosca-se na cama abraçada à fotografia de Gardel e chora copiosamente, não porque a variz a incomode sobremaneira e a aula de tango e de milonga tenha sido exigente, mas porque o mestre já partiu, levando para o túmulo a sensualidade que a Lacrimosa não lhe dá. Reza uma avé-Maria sentida, lembra os seus mortos, as crianças que sofrem e os velhos abandonados e, antes ainda de adormecer, tem lucidez para cantar el dia que me quieras, sabendo que uma letra de música pode ser um prenúncio de desejo.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos.
E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Defensor,
para estar sempre convosco:
o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não O vê nem O conhece,
mas que vós conheceis,
porque habita convosco e está em vós.
Não vos deixarei órfãos: voltarei para junto de vós.
Daqui a pouco o mundo já não Me verá,
mas vós ver Me eis, porque Eu vivo e vós vivereis.
Nesse dia reconhecereis que Eu estou no Pai
e que vós estais em Mim e Eu em vós.
Se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre,
esse realmente Me ama.
E quem Me ama será amado por meu Pai
e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele».
***
A primeira palavra de Jesus no Evangelho do quinto domingo da Páscoa (João 14, 15-21) é «se»: «Se me amardes». Um ponto de partida tão livre, tão humilde, tão frágil, tão confiante, tão paciente. Não diz: tendes de me amar. Nenhuma ameaça, nenhuma obrigação, podereis aderir e podereis recusar em total liberdade.
Mas, se me amardes, sereis transformados numa outra pessoa, tornar-vos-eis como Eu, prolongamento dos meus gestos, eco das minhas palavras: se me amardes, observareis os meus mandamentos. Não por dever, mas como expansão para o exterior daquilo que já aperta dentro, como a linfa da vida na primavera, quando aperta no córtex duro dos ramos e abre-os, para nascer em forma de gema e folhas.
Até agora o mandamento de Jesus dizia: Amarás Deus, amarás o teu próximo, amar-vos-eis uns aos outros como Eu vos amei; agora acrescenta-se a si próprio aos objetivos do amor. Não dita regras, faz-se mendigo do amor, respeitoso e generativo. Não reivindica o amor, espera-o.
Mas amá-lo é perigoso. Com efeito, nos sete versículos do trecho evangélico Jesus reitera um conceito, ou melhor, um sonho: unir-se a mim, habitar em nós. E fá-lo com palavras que dizem união, companhia, encontro, intimidade, numa divina uniformidade, humilde e sublime: estarei convosco, irei para junto de vós, em vós, para vós, vós em mim e Eu em vós.
Jesus procura espaços, espaços no coração, espaços de transformação: se me amardes, tornar-vos-eis como Eu. Eu posso tornar-me como Ele, adquirir nos meus dias um sabor de Céu e de história boa; sabor de liberdade, de mansidão, de paz, de força, de inimigos perdoados, e depois de mesas cheias, de pequeninos abraçados, de relações boas e fecundas que são a beleza do viver.
Quais são os meus mandamentos de que fala Jesus? Não são o elenco das Dez Palavras do monte Sinai; não são as ordens exigentes ou os conselhos sábios dados naqueles três anos de itinerância livre e feliz do rabi de Nazaré.
Os mandamentos a observar são, antes, aqueles gestos que reassumem a sua vida, com os quais não há engano possível: é verdadeiramente Ele. Ele que se perde atrás da ovelha perdida, atrás de publicanos e prostitutas, que faz das crianças os príncipes do seu Reino, que ama em primeiro, ama em perda, ama sem esperar retribuição.
«Como Eu o fiz, assim fareis também vós.» Ele que se cinge com uma toalha e lava os pés, que parte o pão, que no jardim estremece juntamente com o tremente coração da sua amiga («mulher, porque choras?»), que na praia prepara o peixe sobre brasas para os seus amigos. Mandamentos que confortam a vida. Enquanto que nas suas mãos arde o orifício dos pregos incandescentes da crucificação.
Tinha tantos filhos varões que alguns foram sustentar cortinados.
Gordos
Se gordura é formosura, porque é que a obesidade é fatalidade?
Bichezas
Foi descoberta no deserto do Sahara uma raça de pinguins que só come ursos polares.
Grandezas
Portugal está a atravessar uma época que deixa os reinados de D. Manuel I e D. Joao V a perder de vista: Guterres, Ronaldo, Papa, campeões da Europa de futebol, festival da Eurovisão... Enquanto isso, Marcelo põe as mãos nas costas do Papa. Deplorável.
Em terra de cegos...
A edição do livro "Ensaio sobre a Cegueira" foi vista com bons olhos.
Animalidades
O PAN é um conjunto de 'maduros', ou será que ainda estão 'verdes'?
Com este post interrompo a minha série de apontamentos sobre Buenos Aires. Voltarei, que devemos voltar aos sítios onde fomos felizes - e eu fui feliz em Buenos Aires, apesar do roubo, e sou feliz a escrever ou a falar sobre Buenos Aires, como fiz ontem com uma voluntária da Acreditar que por acaso é argentina e me deu dicas locais.
Como já devo ter dito neste estabelecimento, há dois tipos de música que me prendem durante horas a fio. Apesar de gostar de música clássica, de algum jazz, de música tipo crooners, das melodias de sempre ou de alguma música étnica, o fado e a música sul-americana estão no topo dos topos. Se quanto ao fado a explicação é simples, há uma certa estranheza no facto de me perder horas a fio a escutar milongas, tangos, boleros e ritmos semelhantes. De tal forma é que, no café Tortoni, companhia ao meu lado me olhou com um misto de ternura e espanto, tal era o gozo com que ouvia e via o mini-espectáculo que se desenrolava a poucos passos de mim.
Não sei explicar o meu gosto pelo tango. Tenho com muitas músicas - ou géneros musicais - uma relação de memória. Isto é, faço uma associação imediata a pessoas, a locais, a sentimentos, a épocas. No fado são as letras, que fixo com facilidade e encanto, mesmo - ou sobretudo - as que falam em freiras absortas. E o tango? E a milonga ou o bolero? Nada me liga a nada - não sei dançar, não é música do meu tempo, estive este mês em Buenos Aires pela primeira vez, em minha casa de menino ou de jovem ouvia-se tanto este género musical como outros. Talvez o meu encanto, no que se refere ao tango, esteja relacionado com o meu gosto por músicas tristes e o tango, como alguém o definiu, es un sentimiento triste que se baila.
Em 2019, já o disse particularmente, regressarei à América Latina, desta vez para ir ao Chile e ao Perú. E voltarei, gostava eu, a Buenos Aires. Para ouvir tangos, para me emocionar com o Mi Buenos Aires Querido ou com o El Dia Que Me Quieras.
Nota: no estabelecimento fotografado acima, que o meu filho disse chamar-se La Catedral, tive a primeira e única aula de tango. 1 hora a treinar passos insípidos, dançando com uma senhora ou até com o instrutor, um rapaz que apreciou sentir os meus braços sobre os seus braços. Na mesa onde depois nos sentámos, baratas percorriam o labirinto entre copos e garrafas, indiferentes ao retrato do grande mestre que, ao fundo, nos sorria de forma bondosa e compreensiva. Acho que até apanhei uma dentro do meu copo que continha vinho tinto mau. Como era escuro achei que era rolha...