Não devemos matar o tempo, porque é ao tempo que compete matar-nos.
Ocorre-me esta alegação porque estou sentado no meu banco a olhar para o relógio, entretido a ver os ponteiros a moverem-se, e dou comigo a pensar quantas vezes acumulo inércias, apatias, rotinas, com o único propósito de matar o tempo cuja existência me aborrece e enfada.
Esse consumir do tempo em obra nenhuma, como fim em si mesmo, é um desperdício, um esbanjamento da alma.
E pior, é perigoso, porque esse esbanjamento da alma, por ser seu consumo, a vai reduzindo - de cada vez um pouco mais - até que a sobrante já só consegue servir para nos animar em ténue distinção daquilo que alma não tem.
A alma, que é o ânimo da vida humana, é consumível e perecível (pelo menos enquanto ânimo de corpo determinado).
Importa, pois, salvaguardar a alma, não em sentido metafísico ou religioso, mas literalmente, materialmente, pois dessa protecção e preservação depende a felicidade, a qualidade, a ventura da vida humana.
É curioso tanto cuidado com a matéria orgânica e tanta negligência com a alma. Repetem-se os votos de “boa saúde”, mas nunca se formulam votos para a alma, augura-se “saudinha” com desvelo, mas para a alma nem sequer léxico existe, (pela prevalência, vou passar a desejar “Boa Alma” prioritariamente a “Boa Saúde”).
Retomando. A salvaguarda da alma, entre outros requisitos de que aqui não cuido, exige, pois, que não se mate o tempo, mas sim que se passe por ele com avidez e sofreguidão relativamente a cada segundo, em feroz disputa, cedendo cada minuto apenas em contrapartida de pontos conquistados, num deve e haver constante e de ganho; “olho por olho, dente por dente”.
Estratégia para essa disputa, para esse jogo? Sonhar e Criar.
Sonhar. Esta acção, na realidade, desdobra-se em duas bem distintas e que se completam: a “Arte do Sonho” e o “Sonho da Arte”.
A ”Arte do Sonho” é idealizar, projectar, planear empreendimentos espirituais, sentimentais, afectivos, ou materiais. Não falo de calculismo, mas da descoberta de si próprio, da compreensão plena do seu precisar, das suas capacidades e potencialidades, da sua medida, dos seus valores e paradigmas, das suas condicionantes. Em suma, da sua essência de cada um.
Descobertas e fixadas essas, com autenticidade de consciência, segue-se o encontrar, para cada plano e momento da vida, os empreendimentos que passem a ser um querer, um desejar, uma vocação, para os quais convergirão todas as energias e recursos de que se disponha.
Trata-se de eleger um querer ser, um querer fazer, um querer dar, um querer ter, cuja prossecução consumirá exaustivamente o caminho de cada dia.
São múltiplos e cumulativos estes sonhos. Abarcam sentimentos, pessoas, religião, pátrias, cultura, filosofias, aparências, fortuna ou outras materialidades, estados, honras, poder, o que seja. O que a cada um disser sinceramente respeito, desde que sacie o seu coração, dando-lhe a plenitude da razão de ser, do seu ser específico.
Tem este sonhar, todavia, um limite: o da exequibilidade, o de ser possível ser realizado, dada a dimensão e seriedade do empenho, comprometimento, escolhas, renúncias e recursos cuja respectiva execução exige. A decepção e frustração são sempre um risco associado ao sonho, mas não podem, neste plano, ser uma certeza ou mesmo uma forte probabilidade,
É a imperatividade deste limite que abre espaço e justificação ao outro sonhar, que reputo indispensável e que completa o primeiro. Falo da fantasia, do devaneio, da ilusão e da utopia.
Este empreender para lá da realidade, do tangível, do provável, é o “ Sonho da Arte” e penso que se intui e explica por si mesmo, sem necessidade de mais considerandos.
Sobre o criar. Elegido o empreendimento pelo sonho, criar é convertê-lo em realidade. Sonhar é a inspiração, criar a transpiração.
Fé, confiança, trabalho e perseverança, são os ingredientes básicos aos quais é indispensável o fermento a que chamamos, simplificadamente, de sorte.
Sobre a sorte muito haverá a dizer. Faço tábua rasa dos muitos adágios, ditados e demais sobre o tema, porque discordo de todos os que conheço, e entendo ser um tema muito sério, a ser um dia tratado com a dignidade que merece.
O que quero relevar hoje é que, vivendo empenhados na concretização dos nossos sonhos, sendo essa concretização o nosso foco - ponto de convergência e irradiação da nossa luz - jamais perderemos o jogo contra o tempo, ganhando por cada minuto que passa a contrapartida justa e merecida, que é a nossa realização.
Na verdade, conseguirmos ou não concretizar os empreendimentos que sonhámos pode não ter tanta importância, porque a verdadeira coragem e vitória é termos ousado sonhar e lançado mãos-à-obra, com tudo o que somos e temos, em cada dia, hora e minuto que o tempo nos concedeu.
Por outro lado, também a nada nem a ninguém deve importar a dimensão, importância, e impacto relativos dos nossos sonhos. São matéria privada e privativa, a ser avaliada não por comparação com os outros e com a dos outros, mas por confronto consigo próprio, num sincero exame de consciência sobre o que sabia, podia, queria e devia ter sonhado, considerando as circunstâncias únicas do ser que se é e da sua envolvente, antecedente e presente, e que são irrepetíveis e incomparáveis com quem seja.
Cada um é único no seu ser e no seu quadro de existência. Essa singularidade é a dignidade da identidade de cada um de nós. Património, por natureza, vedado ao dever de explicação e interdito ao julgamento pelos nossos pares.
Neste novo ano, neste novo ciclo, que cada um aceite e se entregue, à “Arte do Sonho” e ao “Sonho da Arte”, na sua única e pessoalíssima medida, e tenha a força, coragem e determinação para, comprometidamente, arregaçar as mangas e ir à luta, criando. Pode não ganhar, mas pelo menos deixa de matar o tempo, arrastando a alma para o esvaziamento e perdendo, por isso, o jogo, já que é ao tempo que compete matar-nos, não o inverso.
Mas o tempo é matreiro e por isso cautela, porque há sonhos a longo prazo e é certo o aforismo:
o tempo não dá tempo a quem ao tempo tempo não dá.
ATM
* publicado originalmente em 7 de Janeiro de 2009
Sem comentários:
Enviar um comentário