08 outubro 2018

Das vidas das pessoas

Há um certo furor imaginativo que elimina qualquer necessidade de voyeurismo. Isto é, se considerarmos o voyeurismo como "curiosidade mórbida com relação a aspectos privados ou íntimos da vida de alguém", opto claramente pela imaginação, essa louca da casa, como lhe chamava Santa Teresa de Ávila. Imaginar pode ser melhor do que ver, e supor mais interessante do que conhecer. 

Já aqui escrevi sobre uma certa forma de viajar que se foi instilando em mim, uma forma que é cada vez menos possível dadas as multidões em perpétuo movimento. Fui-me tornando turista de praças, de esplanadas, de escadarias ao ar livre, locais por onde se vê a circulação suficiente de pessoas, mas a um ritmo que permite fixar rostos, perfis, contornos de costas, movimentos de mãos ou formas de olhar. Agora tudo isso acabou, pois os espaços públicos estão pejados de nómadas acelerados que circulam atrás de um cavalheiro de sombrinha colorida ou de mais uma selfie, como se conhecer um local fosse apenas percorrer uma via crucis com paragens obrigatórias e tempo limite. 

Este meu lado imaginativo  - por trás de uma forma de prender o cabelo há uma forma de amar ou de sorrir ou de arrumar a roupa num armário - encontrou um certo destino nas orquestras. Na verdade, durante duas horas posso olhar para o naipe de cordas ou de metais onde estão pessoas relativamente imóveis e, nesse exercício, adivinhar-lhes uma vida privada, perceber-lhes os anseios, as adições, a forma de beijar ou de circular em casa; numas costas direitas intuir como lêem, na delicadeza de uns braços identificar a forma como abraçam ou se deixam abraçar. Na verdade, a competência da violoncelista pode não estar na forma como ataca um andamento ou segue as instruções do maestro, mas naquilo que revela de si, no que deixa entrever no jogo de dedos nas cordas ou na forma como coloca as pernas escondidas por uma saia comprida. O encanto do elemento anónimo da orquestra (ou da rapariga que bebe um refresco na Piazza Navona ao estalar do Verão) está na imaginação que suscita e que parte do total desconhecimento. Adivinhar é avançar uma posição no jogo da glória.

Coimbra, Setembro de 2018

Samuel Johnson (1709 - 1784), conhecido como Dr. Johnson, escreveu um ensaio (o nº 14) ao qual deu o título "The difference between an author's writing and his conversation". Diz ele a certa altura: It has been long the custom of the oriental monarchs to hide themselves in gardens and palaces, to avoid the conversation of mankind, and to be known to their subjects only by their edicts. The same policy is no less necessary to him that writes, than to him that governs; for men would not more patiently submit to be taught, than commanded, by one known to have the same follies and weaknesses with themselves. A sudden intruder into the closet of an author would perhaps feel equal indignation with the officer, who having long solicited admission into the presence of Sardanapalus, saw him not consulting upon laws, inquiring into grievances, or modelling armies, but employed in feminine amusements, and directing the ladies in their work.   

Interessa-me a última frase, que traduzo livremente: um súbito intruso que entrasse nos aposentos de um autor talvez sentisse indignação igual à de um oficial que, tendo desde há muito pedido para ser recebido por Sardanápolo, o visse, não a consultar papéis, a indagar sobre queixas ou a distribuir exércitos, mas ocupado com divertimentos femininos, dirigindo as mulheres nas suas actividades.

Ora, quer isto dizer que o movimento imaginativo descrito por Dr. Johnson vai num sentido diferente ao do meu. Para mim, imaginar a vida desconhecida de uma violoncelista desconhecida é motivo de encanto; para o ensaísta, conhecer a vida desconhecida de um rei conhecido (ou, analogamente, de um escritor conhecido) pode ser motivo de indignação. Não há contradição entre ambas as leituras o que, considerando que se trata de Samuel Johnson, me descansa sobremaneira. Serei criativo, tentarei não ser néscio.

Continuarei a criar vidas por trás das violoncelistas das orquestras ou das turistas das praças, imaginando com educação e pudor o que se passa através da vidraça de uma janela. No minuto em que se tornarem conhecidas eliminá-las-ei do meu imaginário, pois a vida desconhecida das pessoas conhecidas deve ser excessivamente corriqueira, ao contrário da vida desconhecida das pessoas desconhecidas, que pode ser um fascínio. Conhecer pode ser recuar uma casa no jogo da glória.

JdB     

2 comentários:

NP disse...

"Conhecer pode ser recuar uma casa no jogo da glória". Ocorreu-me a cena de Downton Abbey em que a família e criados se juntam para ouvir em directo, pela primeira vez, um discurso do Rei. A verrinosa condessa mãe não encontra encanto algum na telefonia.
- "Podemos ouvir o Rei como se estivéssemos com ele, como se ele estivesse aqui...
- Pois. Mas isso é bom?"
Há na verdade muitas pessoas que ganham em não ser conhecidas. Já tinha lido Lídia Jorge quando comecei a ouvi-la. Essa audição, sem que disso me apercebesse propriamente, empurrou os seus livros para fora do alcance do meu braço. Pode ser que me volte a eles quando o meu braço cresça ou quando a minha memória encurte ...

JdB disse...

NP,

Obrigado pela visita. E obrigado ainda pelo genial episódio relatado no seu comentário.
Percebo o que diz relativamente àquilo que pode afastar livros do nosso alcance. Não me revejo na sua aversão "lidiana" pela simples razão que só terei lido um livro (quiçá dois...) dela. Mas reconheço que há escritores que não deveríamos ver ou ouvir. E imaginar-lhes uma vida ainda pior, não se sabe que características maçadoras arrastam consigo elos corredores da casa.
Imaginemos em vez de ver, suponhamos em vez de conhecer.
Para que não nos encurte o braço...

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