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Fechar uma casa pode equivaler a fechar um passado, independentemente da relação que temos com a casa. Há quem lá tenha sido imensamente feliz, imensamente infeliz ou, pelo contrário, veja na casa apenas uma casa, com valência, quase, de águas correntes quentes e frias e serventia de cozinha. Mas fechar uma casa é encontrar um passado - não nas portas, nas divisões, ou mesmo nos quadros que enfeitavam uma parede; nem sempre nos cheiros que ficam, na ligação entre divisões por onde passavam pessoas, se cruzavam destinos, educações, afectos; nem sempre, também, nos móveis, nos livros, nas molduras que ilustram preferências ou ligações familiares. Por vezes encontra-se um passado naquilo que não se via há muitos anos ou, mais interessante ainda, naquilo que não se sabia que existia mas que, num repente, abre uma porta para uma história, para uma explicação, para um espanto: a dedicatória de um livro, um santinho com um nome público, uma nota à margem de um parágrafo, uma fotografia datada de uma paisagem que permite uma reconstrução.
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A frase é atribuída a Vinicius de Moraes: a gente não faz amigos, reconhece-os. A ideia subjacente implica - ou obriga - a uma certa crença no destino, como se as nossas amizades já estivessem gravadas no livro da vida e nos competisse identificá-las nos cruzamentos da estrada. Há também uma certa dimensão de discernimento: numa época em que muitos de nós entendem já não fazer amizades, porque as existentes já bastam, aparece alguém, e esse alguém é identificado, com o qual não se faz amizade - mas se reconhece a amizade, mesmo aquelas que alguém poderia considerar improvável. Foi o que aconteceu comigo e com determinada pessoa, com quem me cruzei num determinado momento. Daqui, desta improbabilidade temporal e de naturezas, nasceu uma amizade forte e partilhada, que tem pouco mais de quinze anos.
Este amigo manda-me um dia destes a fotografia acima com a pergunta: conheces alguém...? Na fotografia constava um trio a tocar fado e a acompanhar uma senhora. Olhei com atenção: identifiquei o guitarrista e o cavalheiro da viola, não fazendo ideia de quem era o outro acompanhante. Arrisquei o nome de quem cantava - e falhei. Horas depois, quem me enviava a fotografia deslindava o mistério: a pessoa que cantava era mãe dele (penso que terá cantado muito esporadicamente) acompanhada pelo meu pai.
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Fecha-se uma casa. Dá-se destino aos pratos e aos copos, aos quadros e à mobília. Fica-se com parte, aliena-se parte, somos devorados por um misto de nostalgia, indiferença e pó dos tempos. Numa caixa insuspeita e não aberta está uma fotografia - a mãe dele acompanhada pelo meu pai, vinte anos antes dos nossas caminhos se cruzarem. Vinte anos antes de sabermos da existência mútua.
A gente não faz amigos, reconhece-os.
JdB
2 comentários:
JdB
Foi uma emoção encontrar naquela arrumação de desfazer memórias um testemunho da premonição de nós virmos os dois a cantar as melodias da vida.
Estou certo que foi um momento feliz e divertido para o seu Pai e para a minha Mãe, e seguramente mais afinado e acertado do que nós em algumas vezes soamos..
Pelo acerto eles eram fado, nós, olhando ao costumeiro desacerto, é mais Jazz , mas ambos gostamos e muito da banda.
bem haja
ATM
Um a prima minha, precocemente desaparecida, dizia à mesa das cartas: cada jogo tem a sua beleza. Seremos jazz, a sua mãe o meu pai talvez tenham sido o Mouraria, o Menor, ou o Fado Vitória, sei lá eu. Eles gostaram, nós gostamos. No fundo, a modalidade sai prestigiada.
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