AS ARMAS SECRETAS QUE TRAVARAM O IMPÉRIO OTOMANO, NUM 7 DE OUTUBRO
Épocas atribuladas na história da Europa são incontáveis. Estamos longe de viver os tempos mais inseguros. Basta o longo período de paz, em que vivemos, pontualmente interrompido por um ou outro ataque terrorista nalgumas metrópoles.
Recuando ao século XVI, o nosso pequeno continente agonizava sob as guerras fratricidas entre os fiéis ao Papa e os adeptos da Reforma protestante, com as variantes luterana, calvinista ou anglicana. A Oriente, a ameaça ainda se apresentava mais temível, com as investidas violentas do sultão turco, conhecido por O Magnífico.
Sob Solimão, O Magnífico, os avanços militares turcos, iniciados no séc. XIV, aumentaram em número e ferocidade. Estavam apostados em estender o Império Otomano a toda a bacia mediterrânica e implantar um novo modus vivendi na Europa do Sul. Havia mesmo a intenção de transformar a Basílica de S.Pedro em mesquita, qual estocada mortífera no coração da cristandade. Quando Solimão morreu (1566), o filho Selim II continuou a política expansionista do pai, querendo levar ao zénite a bem oleada máquina de guerra que herdara.
Logo em 1570, ciente do perigo que pairava sobre o Vaticano, o Papa Pio V preveniu os soberanos europeus da iminência da tomada da ilha de Chipre pelos turcos, que passariam a controlar a faixa oriental do Mediterrâneo. Apesar da ameaça que representava, a mobilização dos contingentes na Europa ainda tardou. Apenas um cavaleiro abraçou logo a causa, secundado pela Ordem de Malta, sendo-lhe confiada a liderança da iniciativa –– D.João de Áustria –– meio irmão de Felipe II de Espanha [e I de Portugal, a partir de 1580]. Sendo filho ilegítimo de Carlos V, viu na empreitada uma oportunidade de ouro para adquirir estatuto e provar bravura.
A custo, ergueu-se a Liga Santa, formada por: Espanha, que agregava os reinos de Nápoles, Sardenha e Sicília; os Estados Pontifícios; as Ordens de Malta e de Santo Estêvão; os Cavaleiros de S.Lázaro; a República de Génova; o Grão-Ducado da Toscana; o Ducado de Sabóia; o Ducado de Urbino; e a potentíssima armada da República de Veneza, que dispunha de embarcações de guerra revolucionárias – as galeaças. Com apenas seis, revelaram-se cruciais para a vitória.
Estandarte da Liga Santa |
Galeaça veneziana usada em Lepanto. Gravura de 1851, replicando os modelos de 1570s. |
Em Setembro de 1571, os cavaleiros da Liga levantaram ferro rumo ao largo da costa grega, para enfrentar a gigantesca armada turca, em Lepanto. Levavam ordens do Papa para acrescentarem à valentia, tão necessária nesta luta desigual face à supremacia turca, uma preparação espiritual reforçada com jejum, oração, confissão e comunhão, antes da batalha. Para o efeito, cada embarcação transportava um sacerdote encarregue desta “armadura” adicional ao equipamento bélico, puro e duro. O Papa pedira ainda a toda a cristandade para rezar terços, em contínuo, nas vésperas e no dia da batalha, a implorar a intercessão especial de Maria para vencerem um inimigo superior em embarcações e homens. Era a Europa, por junto, que estava no olho do furacão.
Do lado europeu, animava-os a coragem, o carisma e o empenho de D.João de Áustria, além do apelo lancinante do Papa, temendo o pior. Como registaram as crónicas da época, parecia uma missão suicidária. Horas antes do ataque, D.João esgueirou-se num pequeno barco para cumprimentar e incentivar cada galé a dar o máximo.
Na madrugada de 7 de Outubro, a Liga avançou corajosamente sobre o adversário, numa disputa encarniçada, que é considerada a última grande batalha com embarcações a remos, e a maior desde a Antiguidade, envolvendo mais de 400 galés.
Batalha naval, em Lepanto, a 7 de Outubro de 1571. De autor anónimo, a tela data do final do séc. XVI e pertence ao «Maritime Art Greenwich», em Londres. |
No Vaticano, o Papa tinha rezado intensamente noite adentro. E, mal a luta terminou, Pio V interrompeu a reunião, que decorria no Vaticano, para anunciar o sucesso e pedir que agradecessem a Deus por aquele resultado inalcançável só por meios humanos. A forma misteriosa como o pontífice conhecera, de imediato, o desfecho da luta, quando não havia meios de comunicação à distância, ajudou a certificar o favor divino neste brutal embate entre civilizações e religiões. Até o vento começara por desfavorecer a Liga; inesperadamente, mudou e passou a penalizar o poderoso flanco otomano.
Lepanto foi de tal modo decisiva para travar as investidas turcas, que a Batalha se tornou de imediato um marco histórico e tema de telas, frescos, romances, poemas. Chesterton dedicou-lhe um; Cervantes, o genial criador de D.Quixote, participou na luta e contagiou o seu protagonista da loucura desproporcionada que viveu naquele 7 de Outubro, onde foi ferido, perdeu a mobilidade da mão esquerda e acabou prisioneiro dos turcos durante 5 anos; Emilio Salgari também tratou o tema em duas novelas históricas: «Capitan Tempesta» (1905) e «Il Leone di Damasco» (1910).
No rescaldo da luta, as encomendas aos pintores e artistas garantiram que a memória daquele feito basilar para a preservação da Europa, não se perderia, observando-se nos artistas venezianos um tom de reportagem quase jornalístico:
Fresco do veneziano Fernando Bertelli, 1572, em destaque no final da Galeria dos Mapas, nos Museus do Vaticano. |
«Batalha de Lepanto» de Martin Rota, 1572, Veneza. |
«A Batalha de Lepanto», de Andrea Vicentino (c. 1600, Palácio Doge, em Veneza). |
Rapidamente, a representação da Batalha acrescentou ao mar tingido de sangue e cadáveres, o suspense vivido num Vaticano orante, onde se acumulou ao milagre do êxito militar, a antevisão, em tempo real, desse desfecho magnífico. Dois anos depois, Pio V instituiu, a 7 de Outubro, uma festa em honra de «Nossa Senhora da Vitória». Volvido mais de um século, a solenidade foi estendida a toda a cristandade (1716) com uma nova evocação – «Nossa Senhora do Rosário», numa referência directa à arma mais secreta da vitória.
«Alegoria da Batalha de Lepanto», Paolo Varonese, em 1572, no ano a seguir à grande proeza. |
Fresco de Giorgio Vasari, de 1572, na Sala Regia. Alegoria sobre Lepanto com os três poderes da Liga Santa, em primeiro plano. |
Para lá da eficácia das galeaças venezianas e de alguns pontos fracos imprevistos no lado turco, atribui-se à Senhora a espantosa reviravolta no curso dos acontecimentos em favor da Liga, a ponto de ter desfeito o sonho otomano de conquista da Europa. Também eles tinham ficado intimidados com a magnitude de uma derrota, difícil de prever e de entender a fundo.
Coincidentemente, também o Papa do nosso tempo aproveitou o mês de Outubro para lançar um apelo forte aos cristãos para rezarem o terço diário, pedindo pela união da Igreja, que defronta ameaças divisivas, precisando de encontrar o ponto de equilíbrio numa unidade disponível para se deixar enriquecer continuamente por uma diversidade que também recuse ser desagregadora.
Vem a calhar o alerta dos U2 a convidar as mulheres a avançar. Numa balada suave e interpelativa, cantada na tournée de 2018 (com passagem por Lisboa, em Setembro), entoam um refrão telegráfico e apocalíptico, em crescendo: «Women of the world take over, because if don’t, the world will come to an end and it won’t take long». No ecrã vão desfilando frases alusivas à influência benigna e específica da sabedoria feminina. Um dos escritos evoca a atitude fraterna que as mulheres inspiram na humanidade: «Sisters and brothers stand up for each other». De certo modo, ecoa o modo poético como a feminista norte-americana Camille Paglia caracteriza a feminilidade a partir da marca maternal escondida, mas omnipresente nos refolhos da sua carne: «cada corpo feminino contém uma célula da noite arcaica, diante da qual o conhecimento se sustém»(1). Não faltam momentos na história que o confirmam, como o prova cada intervenção da Senhora, a quem voltamos a pedir ajuda, no Outubro do nosso tempo.
Nota – o vídeo com a música surge mais abaixo, neste link:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Citação do livro da norte-americana «Mulheres Livres, Homens Livres», recentemente traduzido para português e publicado pela Quetzal.
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