28 maio 2020

Crónica do confinamento

Vejo na televisão uma reportagem sobre os tempos de confinamento. Fala-se de separação, de excesso de proximidade, de teletrabalho com crianças enérgicas e sem espaço. Fala-se do corte com hábitos de contacto físico. Há uma senhora que, entrevistada, confessa: não sou muito de beijos, de grandes demonstrações de afecto; sou mais de fazer coisas... Percebo o que está por trás, até porque conheço gente assim, em cujas vidas só aparentemente têm de escolher entre dar beijos ou executar uma tarefa. Na verdade, entre ambas as actividades não está, normalmente, uma condição "ou" - ou isto ou aquilo. Quem está de fora percebe, simplesmente, que algumas pessoas preferem isto a aquilo, não lhes cabendo optar com angústia ou denodo. Também eu prefiro um belo peixe assado a uma declaração trimestral do IVA.    

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Diz-se que toda a crise é uma oportunidade. É bem verdade, se bem que a definição de oportunidade varie entre as pessoas. Eu explico, na sequência da entrada acima: conheço pelo menos três pessoas (raparigas nos 30 anos e rapaz pouco acima dos 40) para quem a eliminação do beijo social foi uma alegria ou um alívio. Também conheço gente do mesmo sexo e da mesma idade que não pensa assim. Porém, a pandemia introduziu uma variável nova ao nível dos contactos sociais. A partir de agora teremos de perguntar: queres ser beijada? Posso apertar-te a mão? Talvez ganhemos o hábito do simples olá e nos aproximemos da frieza anglo-saxónicaCuriosamente, a pandemia promoveu o hábito dos mecânicos de cumprimentar com o cotovelo numa prática sanitária - mas detestável. Há gente feliz, para quem este hábito tão latino do beijo (que se estendeu ao mundo profissional) e do abraço deveriam acabar - com ou sem pandemia. Tenho pena.

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Leio nos jornais que os tatuadores vivem uma situação insustentável: estamos com a corda ao pescoço, afirmaram. A expressão é corrente, e eu percebo o drama: preferiam uma agulha junto ao pescoço para cumprir a sua arte; a corda não lhes serve para nada. Tenho respeito por essa classe laboriosa e criativa, mas não sei se o jornal que lhes deu voz decidiu fazer uma ronda pelas actividades profissionais do país, e eu deparei-me com a letra 'T'. Na verdade, serão os tatuadores, as costureiras, os donos de lojas de retrós, os / as pedicuras ou os profissionais diligentes e corajoso que conduzem os cestos de vime com turistas pelas ladeiras abaixo na bela Madeira. A respeito de tatuagens não resisto a uma pequena citação. Alfred Loos, um arquitecto vienense nascido em 1870, escreveu, em 1908, um texto a que chamou Ornamento e Crime. E afirma, a certo momento: o Papua faz tatuagens na sua pele, canoa, remo – enfim, em tudo o que puder alcançar. Ele não é nenhum criminoso. O homem moderno que faça tatuagens, ou é criminoso ou é degenerado. Há prisões em que 80% dos reclusos apresentam tatuagens. Os tatuados que não estão presos ou são potenciais ladrões ou aristocratas degenerados.     

JdB

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