11 maio 2020

Da pintura e dos alienados

Num texto intitulado Questões de Estética (Da Pintura, Gradiva, 2017) diz Eduardo Lourenço:

No asilo de alienados de Verona há mil e quinhentas pessoas em vias de cura. Entre essas 1500 encontram-se uma vintena com disposições reais para a pintura. Esta disposição é um dos maiores mistérios. Os pintores dos hospitais psiquiátricos antes de serem enterrados não eram artistas, mas artífices, simples cidadãos. 

E mais à frente:

A vista destas telas [a dos alienados] põe algumas questões inquietantes. Por exemplo: no tempo de Rafael, os doentes mentais, se tivessem tido a possibilidade de pintar, teriam pintado à maneira de Veronese ou à maneira de Rafael? Não estou muito seguro disso, mas penso que ela teria sido abstracta como a dos dementes de hoje. E isto porque a loucura se encontra fora do tempo e da História, e porque é sempre igual a si mesma. 

Esta percepção de Eduardo Lourenço suscita devaneios interessantes. Como seria vista a pintura abstracta no início do século XV? Provavelmente como a obra de um alienado. Como é vista a pintura abstracta no século XX? Como um estilo, aqui e ali como uma genialidade. Entre a abstracção daquele tempo e a deste existem cinco séculos. Se a percepção de Eduardo Lourenço estiver certa, foram precisos 500 anos para dar um carácter de sanidade a um estilo. Ou, numa visão mais arrojada e provocadora, os alienados do século XV são os lúcidos do século XX: ambos pintam o que conseguem, não forçosamente o que querem.

JdB 

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