15 setembro 2021

Vai um gin do Peter’s?

VATICANO PRECURSOR DAS PARAOLIMPÍADAS

No alvor do século XX, o mundo assistiu impotente ao despique agressivo entre as grandes potências europeias, no limite da irresponsabilidade para deflagrar em conflito bélico, como veio a acontecer no Verão de 1914. Guerreavam-se na expansão ultramarina. Nessa corrida aos territórios além-mar, esquartejavam África a régua e lápis nos gabinetes do Velho Continente, com o fito de ter acesso aos recursos naturais do continente africano. Assim se afanavam na construção dos seus impérios.

Em contraciclo, o Papa da altura – Pio X – procurava ajudar os mais necessitados e criar uma onda solidária (dito na linguagem do nosso tempo) a favor dos esquecidos do progresso industrial e tecnológico, que enfeitiçava as sociedades mais ricas e pujantes. Com originalidade, inventou uma réplica das competições olímpicas para atletas com deficiências, oferecendo-lhes um palco para poderem mostrar ao mundo as suas proezas. Para tal, abriu as portas do Vaticano e, entre 1905 e 1908, acolheu os jogos desportivos, que foram pioneiros dos Paraolímpicos.  Na edição de 1908, concorreram 2.000 atletas, quase metade dos que marcaram presença no Japão (4.400)! 

Primeira página do L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908 

Para acolher aquele projecto de desporto inclusivo, o espaço vaticano “Cortile del Belvedere” foi transformado em pista de atletismo, no Pátio de S.Dâmaso decorreram a maioria das actuações desportivas e na Porta de Bronze foi montada a recepção e o ponto informativo. Por junto, tudo ficou ao serviço dos Jogos: a Guarda Suíça e o corpo de polícias da Santa Sé asseguravam o acolhimento aos atletas, quer no apoio organizativo, quer na animação do ambiente com as suas bandas. O “L'Osservatore Romano” garantia a cobertura mediática, qual gazeta de desporto, com entrevistas aos campeões, a mensagem do Papa aos jogadores, notas de informação aos participantes, fichas técnicas sobre os principais acontecimentos, até os reportados pela equipe médica Fatebenefratelli, que incluía o diagnóstico das lesões. 

Nos Jogos de setembro de 1908: competiram, na velocidade, atletas com membros amputados, como Baldoni (vitória irlandesa). No salto em altura, participaram atletas surdos e 9 jovens cegos do Instituto Sant'Alessio. 

À época, a iniciativa de Pio X deu brado e não pouca polémica, mesmo na Santa Sé, onde a imagem de atletas deficientes levou um interlocutor mais próximo do círculo papal a dar voz ao típico anúncio da desgraça iminente: «onde vamos parar?». Sem se intimidar, Pio X respondeu em veneziano: «Meu caro, ao paraíso!» E assim se antecipava a promoção de uma percepção diferente da deficiência. 

Primeira página do L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908

L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908

Quase quatro décadas depois, a estreia das Paraolimpíadas decorreram na Grã-Bretanha, em 1948, numa iniciativa de Sir Ludwig Guttmann (1899-1980, judeu nascido em território alemão, hoje pertencente à Polónia, que se mudou para Inglaterra, em 1939, em fuga aos Nazis) para honrar os veteranos da II Guerra, que tinham ficado feridos durante o conflito. Quatro anos depois, em 1952, a segunda edição dos Jogos ganhou um pouco de internacionalidade com a participação de atletas holandeses. Aos poucos, outros países se juntaram, até se atingir a universalidade merecida. 

Na senda de Pio X, em 2019, o Papa Francisco lançou a equipa de desporto da Santa Sé – a Athletica Vaticana – para participar em competições desportivas, onde prevaleça o cunho fraternal. As recomendações de Francisco à Athletica Vaticana foram claras: «viver sempre um estilo de comunidade, treinando juntos, correndo juntos, sem nunca perder de vista a dimensão amadora da atividade desportiva», bem nos antípodas do espírito de alta competição, por que se pauta a carreira dos atletas de nível olímpico. 

Há dias, na cerimónia de encerramento das Paraolimpíadas de Tóquio (5 de Set.), França protagonizou um dos momentos mais elevados, com a apresentação oficial da próxima edição dos Jogos, em Paris – no ano de 2024. Resumindo: após a passagem do testemunho com a bandeira paraolímpica a mudar de mão, o hino francês foi entoado à vista da Vitória de Samotrácia, na escadaria do Louvre, enquanto a letra da música era legendada coreograficamente em linguagem gestual (1:33:15 da versão integral da cerimónia com link infra*). Seguiu-se a coreografia composta por Sadeck Waff, interpretada por bailarinos em cadeiras de rodas, que usaram apenas os braços para comporem uma dança magnífica, ao som da música composta por Yoann Lemoine (versão compactada abaixo e ao 1:35:11 na cerimónia).  Por videochamada, de Tóquio saltou-se até ao Trocadero, onde estava reunida a equipa gaulesa paraolímpica, que iria dançar ao som do DJ tetraplégico, a comandar o som só com os olhos (1:37:29). Por fim, a bandeira das Paraolimpíadas de Paris’ 2024 foi desfraldada na Torre Eiffel, onde ficou a esvoaçar com garbo (1:40:46).

https://www.instagram.com/p/CTcgw6OCOwA

São espantosos os efeitos da criatividade, quando rola para o bem, multiplicando-se em rastilhos de bondade com ignições benignas por todo o planeta, ao longo das gerações que alinhem na boa onda.   


Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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1 comentário:

Anónimo disse...

Muito interessante. Eu ignorava o facto totalmente.
Obrigado
ao

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