ARMADILHA DA NOUVELLE CUISINE
Há uns anos, circulou um texto atribuído a Rui Vieira Nery (RVN) sobre a moda dos Chefes e da panóplia de novidades com que revolucionaram e também desassossegaram a ida ao restaurante. Em vez de esclarecedores, os menus encriptaram-se com termos estranhos ao universo gastronómico e incontáveis estrangeirismos. Óbvio mesmo foi o descarte da cozinha tradicional, pelo menos a portuguesa: rica, farta e descomplicada.
Como se a nomenclatura indecifrável fosse pouco, ainda veio a redução abrupta das quantidades, demasiado evidente porque o tamanho dos pratos de porcelana se manteve. O cocuruto de outrora deu lugar a um minúsculo epicentro comestível, enquadrado por um emaranhado de pingos a enfeitar ou, melhor, a preencher o vazio da loiça, qual arte efémera. Passou a investir-se no efeito estético (nem sempre conseguido), tomando-se à letra a boa divisa de que também ‘se come com os olhos’, embora não apenas… Naturalmente que a ideia é o cliente embarcar na modalidade ‘menu degustação’ – quase sempre cansativa pela extensão e uma carestia – para ter acesso a um rodopio de amostras de comida, que tentam somar a massa crítica adequada à dieta alimentar de adultos saudáveis.
A legenda é eloquente sobre o cariz do prato e da moda: «nouvelle cuisine delicada», equivalendo delicado por etéreo, desmaterializado ou invisível |
Apanhámo-nos assim numa era, onde a mera lembrança da refeição simples e divinal servida ao Jacinto numa povoação perdida do Norte de Portugal, faz crescer água na boca! Aliás, para quem dispense doses avantajadas, a canja suculenta que deliciou o protagonista de «As cidades e as Serras» já dará uma refeição muito aconchegante.
De facto, para lá das quantidades exíguas, falta à frieza laboratorial das cozinhas vanguardistas, o desvelo maternal que embeveceu Jacinto e o libertou do “mal de vivre” em que se enfastiara na glamorosa Paris do século XIX. A beleza arquitectónica (quando há) que aterrou nos pratos da actualidade, aproxima-se mais de uma peça de museu cristalizada, que conviria deixar intacta. Percebe-se por que RVN fala do sentido de comunidade das boas cozinheiras de outros tempos. Podíamos acrescentar a ternura e a generosidade, que transbordam das suas mesas:
As cozinheiras do antigamente...
Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adozinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão.
Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro das mais velhas. E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume.
A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si.
Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”..., - “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”... - , “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”...
Ficavam depois a olhar discretamente para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.
Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”.
Os nomes próprios seguem um abcedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvão, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaísmos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas…
Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural.
A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.
A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós.
Seja o que Deus quiser! E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…
E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que em tempos caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos.
Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado.
A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénea, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhes davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. Wow!
Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade.»
Rui Vieira Nery
Será que estas modas extremistas, caras e algo descarnadas terão longevidade?…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
1 comentário:
Um tema tão diferente mas tão semelhante.
Bem acompanhado por um texto gostoso.
Ri-me com os nomes.
Grato,
oliveira
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