30 setembro 2022

Crónicas de um participante de congresso internacional (II)

 Texto apresentado hoje, numa sessão forte sobre famílias em luto, sobre Pais que perdem filhos.

JdB




29 setembro 2022

Crónicas de um participante de congresso internacional (I)

 Tomar refeições com pessoas de Espanha, Malásia, Austrália, África do Sul, Zimbabwe, India, Chile e Nova Zelândia tem uma valência sociológica. O neo zelandês não usa faca e descansa o antebraço inútil apoiando-o na mesa; o malaio viaja em permanência com um frasco de chili que adiciona a tudo o que anteceda a sobremesa. Pediu um bacalhau frito e despejou-lhe o picante por cima. Perante a opinião de que estragava a comida porque lhe introduzia um condimento dominante perguntou: porquê? A pergunta feita por quem condimenta uma omeleta ou um bacalhau à Gomes de Sá não suscita resposta. Apesar de estarmos em Espanha, o sul-africano achou que deve pedir um hambúrguer. A indiana não bebe álcool e emborcou 3 copos de vinho. Saiu a rir, corada de vergonha e de braço dado. Acontece-lhe isto sempre que a vejo, duas vezes por ano.

***

 Assisto a uma sessão sobre a Ucrânia. Como já aqui falei uma vez, a comunidade ligada à oncologia pediátrica evacuou centenas de crianças e famílias para países da Europa (Portugal incluído). À pergunta de quais os desafios para o futuro, um pediatra oncologista afirmou sossegadamente: a manutenção da profissão. Na verdade, o que faz um oncologista pediátrico num país de onde foi retirada uma quantidade muito significativa de crianças com cancro. Tratam de quem, a curto prazo?

***

Pela primeira vez desde 2019 (em Lyon) os congressos passaram a ser presenciais. Não preciso de descrever a alegria das pessoas, e da dificuldade que por vezes todos temos de identificar alguém que vemos todos os meses em formato tipo passe. Pessoas até com quem mantemos conversas por vezes de teor pessoal. E voltaram a dizer-me: no zoom pareces mais baixo... Curioso é também o facto de um cumprimento assumido por muitos participantes femininos: um abraço sem beijo. Os homens mantêm o aperto de mão, muitas mulheres abraçam com gosto. Free hugs, no fundo.

JdB  

28 setembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

FERNANDO PESSOA GANHOU UMA APOSTA (III) 

Estava o poeta com um amigo na Brasileira, animadamente a dissertarem sobre a condição ideal para compor poesia. Defendia o amigo ser crucial haver um factor externo a servir de ignição inspirativa, acreditando na ligação da arte à realidade circundante a partir do ângulo de visão do poeta-observador. Mas Pessoa discordava, considerando suficiente a imaginação fértil e fecunda de um poeta. Tomava-a por magma da sua inspiração. 


Retratos de Pessoa por Almada Negreiros, em 1954 4 1964, expressões maiores do modernismo português. Sentado no Martinho da Arcada, o poeta míope, sonhador, alheado do mundo, aplica-se na sua escrita.  A versão de 54 foi executada para o restaurante Irmãos Unidos, antigo ponto de encontro do grupo Orpheu.

Sem acordo à vista, fizeram uma aposta, propondo-se Pessoa fazer prova da sua tese ao compor, ali mesmo, um poema de tema livre desligado do ameno convívio no Chiado. Assim escrevinhou em quinze minutos, sobre um guardanapo da Brasileira, «O MENINO DE SUA MÃE», conforme testemunhou o seu interlocutor – avô de uma amiga doutorada em línguas e professora de português, fonte desta ‘inside information’. Intencionalmente, o poema adoptou uma tonalidade fúnebre, estranha àquele encontro amistoso na pacata Lisboa das primeiras décadas do século XX. Apesar da proximidade cronológica da Primeira Guerra Mundial, traumática pela quantidade de portugueses enviados sem condições para trincheiras mortíferas, admitiu-se que Pessoa teria ganho aquele debate, nem que fosse como prémio pela qualidade do texto que, em minutos, soubera impregnar do desgosto indizível de uma mãe que perde o filho numa guerra de outros:  

«O MENINO DA SUA MÃE 

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece. 

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos. 

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.»

Primeira publicação, em 1926

Como não haveria de defender a criatividade artística, quem se pulverizou em incontáveis personalidades poéticas, sedento de captar a vida – a interior e a exterior – a partir de todas as perspectivas que a imaginação lhe franqueava? Não por acaso, Pessoa detém o palmarés do escritor com maior número de heterónimos do planeta! Nele, um só coração bateria mas uma profusão de olhares  afinavam-se para «sentir tudo de todas as maneiras», na ânsia do infinito: 

«Não sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).

(...) Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.

Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.»

Data provável: 1915.

«Sê plural como o universo»

Sem data
«Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência...
Nada que vejo é meu.

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas. (…)

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deixo teu diverso modo
Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.»

24 de Agosto de 1930

«Eu sou uma antologia.
Escrevo tão diversamente
Que, pouca ou muita valia
Dos poemas, ninguém diria
Que o poeta é um somente.

Depois para si o poeta
Deve ser poeta também
Se ele não tem a completa
Diversidade
Não é poeta, é só alguém.

Eu graças a Deus não tenho
Nenhuma individualidade
Sou como o mundo (...)»

13 de Dezembro de 1932
«A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
(…)
II 
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
(…)
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
(…)
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me. (…)»

22 de Setembro de 1933

Carta a Adolfo Casais Monteiro

«A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. (…) Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. (...)»

13 de Janeiro de 1935

«Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções… Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia…»   

In “Livro do Desassossego”, do heterónimo Bernardo Soares (1913-…); colectânea de fragmentos, publicada em 1982. 

«II - Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades (Álvaro de Campos)

II

(…) Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.
Que nem são países, nem momentos, nem vidas.
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!»

30 de Junho de 1914

«Sentir tudo de todas as maneiras 
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. (…)

Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 
(…)
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim... (…)
Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito... 
(…)
Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros 
(…)
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte, (…)»

Álvaro de Campos, 25 de Maio de 1916

«A PASSAGEM DAS HORAS  [a] 
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.
(...)
Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...
(…)
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa. (…)»

Álvaro de Campos, 1916

«PASSAGEM DAS HORAS [b] 
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(…)
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
(…)
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
(…)
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri. (…)»

Álvaro de Campos, 22 de Maio de 1916 

«Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.» 

Odes de Ricardo Reis – 14 de Fevereiro de 1933

Pessoa no seu bairro do Chiado.
É pouco conhecida a sua autoria do célebre slogan para a Coca Cola, em 1929:
«PRIMEIRO ESTRANHA-SE. DEPOIS ENTRANHA-SE»,
encomendado pelo fundador da primeira agência de publicidade do país – ‘Hora’.

Fotografia oferecida por Pessoa à sua amada Ophélia Queiroz, em 1929, com a dedicatória:
"FERNANDO PESSOA EM FLAGRANTE DELITRO". 

Nas muitas vozes que convocou para ecoar a infinitude do seu mundo interior, Pessoa conseguiu expandir o campo de visão até periferias inimagináveis, qual actor que se desdobra noutros seres para dar vida a múltiplas personagens. Mas, quem só vive  uma vez, não arrisca algum esboroar de identidade com esta aventurosa pulverização de personalidades? 

Maria Zarco 

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

27 setembro 2022

Poemas dos dias que correm

pecados capitais


Cada vez que tive vontade e pude
entreguei-me à gula e à luxúria.
Com a preguiça vivo amancebada.
Só fui seduzida pela avareza
como meio para outros desvios.
Sempre me mostrei irada e soberba,
orgulhosa, arbitrária e teimosa.
Talvez por isso não sentisse inveja.
Tão segura de mim, tão inflexível,
não podia invejar nada nem ninguém.
Hoje, contudo, derrotada e só,
sem esperança e vencida, tão inútil,
sinto inveja de mim quando me amavas.


amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013

26 setembro 2022

Congressos dos dias que correm

 


Vou estar em Barcelona nos próximos dias, pelo que a minha assistência ao estabelecimento poderá ser mais errática.

JdB

25 setembro 2022

XXVI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 16,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
disse Jesus aos fariseus:
«Havia um homem rico,
que se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias.
Um pobre, chamado Lázaro,
jazia junto do seu portão, coberto de chagas.
Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico,
mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu
e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, estando em tormentos,
levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.
Então ergueu a voz e disse:
'Pai Abraão, tem compaixão de mim.
Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo
e me refresque a língua,
porque estou atormentado nestas chamas'.
Abraão respondeu-lhe:
'Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida
e Lázaro apenas os males.
Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado,
enquanto tu és atormentado.
Além disso, há entre nós e vós um grande abismo,
de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós,
ou daí para junto de nós,
não poderia fazê-lo'.
O rico insistiu:
'Então peço-te, ó pai,
que mandes Lázaro à minha casa paterna
– pois tenho cinco irmãos –
para que os previna,
a fim de que não venham também para este lugar de tormento'.
Disse-lhe Abraão:
'Eles têm Moisés e os Profetas.
Que os oiçam'.
Mas ele insistiu:
'Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão'.
Abraão respondeu-lhe:
'Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos,
não se convencerão'.

23 setembro 2022

like a broken umbrella (in memoriam do nosso rapaz) *

 embalado pela chuva minuciosa de Borges,

pela lacrimejante poesia do José Miguel Silva,
(viva o cosmopolitismo poético, viva!)
pelas bátegas de saudades que caem copiosamente,
podia desatar a escrever poemas,
reacender o rastilho que ensopado
deixei muito lá atrás,
nesse tempo em que ainda.

em tua memória e dos teus conselhos,
não o farei, contudo.
lembro, ademais, toda a minha lógica quebrada
que gritava contra a usura do tempo
e a ferrugem dos nossos dias, enquanto tu
me lembravas uma lição básica da vidinha:
nenhum desespero substitui a dor,
antes amplifica-a, até à exaustão.

era outro tempo, outro século,
esse em que nos aconchegávamos, mui masculinamente
encafuados no carro que calhava, queimando sonhos e cigarros,
sonhando as índias que nunca chegaram.

hoje, solitário cavaleiro andante, perpetuo a tua memória,
sabendo que esperas por mim, nesse algures inominável,
a última cartografia absoluta que resta.
estas palavras, sim, estas palavras, eu sei,

são um cenotáfio ridículo erguido na tua ausência,
à falta de melhor – que seria sempre um acto de amor concreto,
tornado agora impossível nesta geometria terrena.
(a minha poesia morreu contigo, penso não raro.)

e é enredado nestas vielas cheias de amargura
que me lembro do teu sonho de menino de teres
toda a colecção Dois Mundos, da editora Livros do Brasil.

não tínhamos dinheiro,
como hoje não nos temos um ao outro,
mas éramos felizes, a sonhar com livros e namoradas e futuros.

embora não o soubéssemos, era sempre de amor que falávamos,
um amor fraternal e desmedido como já não se usa.
ficámos no museu das coisas extintas, querido amigo,

acompanhados por tanta gente outrora vivente
como estas palavras que, daqui a segundos,
me morrerão nas pontas dos dedos, enquanto

enxugo este meu coração-filho-da-outra
mas pai de tanta coisa que felizmente sai à mãe
- ou a uma luminosa e improvável ideia de mãe.

saudades, pá. saudades.

e este nosso telemóvel brother to brother
agora calado para sempre,
bem por dentro do meu peito.


gi.

* publicado originalmente a 23 de Março de 2012

21 setembro 2022

Do voyeurismo que sempre existiu

 O tema não é novo neste estabelecimento: porque é que as pessoas querem seguir pessoas nas redes sociais? 

Um dia, numa conversa de amigos, o tema voltou à baila: fulano tem não sei quantos mil seguidores, beltrano mais ainda, sicrano bate o recorde. Ao que parece, Cristiano Ronaldo e a mãe, D. Dolores, são dos que mais seguidores têm, e foram um bom exemplo para o meu raciocínio naquela noite à volta de uma mesa. 

O Cristiano Ronaldo é um desportista de eleição, destes que faz parte de uma pequena elite. Seguir o futebolista é, num certo sentido, perceber o que é a vida de um desportista superior. Seguir a D. Dolores (contra quem nada me move) é seguir uma pessoa normal, cuja a-normalidade consistiu em gerar e educar um desportista superior. No mais, penso que seguirá uma vida corriqueira não tendo, como a grande maioria da população terrestre, produzido obra, agitado o mundo, arrebatado multidões. O que nos faz seguir pessoas que não se salientarem em nada de especial (sem que a frase seja desprimor)?

À mesa destes amigos disse uma coisa simples, que os "heróis" dos dias de hoje eram os actores / actrizes das telenovelas. O heroísmo deixou de ser físico, a coragem deixou de ser das ideias. Hoje, o que arrasta multidões e cativa as televisões são as vidas dos actores. Quando dei por mim percebi que estava a falar com dois amigos que, por acaso, são pais de um actor de telenovelas. Desculpei-me, talvez tenham percebido e, quem sabe, concordado. Queremos saber as praias paradisíacos onde os actores passam férias, as festas a que vão, que restaurantes frequentam. Querer saber é uma coisa; mas querer seguir a vida destas pessoas? Porque não a de um médico ou de um advogado, que fazem o melhor possível nas suas profissões.

Um dia terei dito que este tipo de voyeurismo é moderno. Nos meus tempo de adolescentes íamos para a praia da Azarujinha, em S. João do Estoril, porque havia casais a beijarem-se (ou a fazer mais alguma coisa) no recanto das rochas escondidas. Achava eu que o voyeurismo tinha uma dimensão erótica - ou escondida. Um dia percebi que o voyeurismo não proibido também existia no meu tempo de menino: chamava-se Hola ou Point de Vue, as revista cor-de-rosa espanholas ou francesas que partilhavam connosco as vidas do jet set espanhol (dos condes aos matadores de toiros) ou da nobreza mundial. Do que iam à procura quem li as revistas (que ainda são lidas): as vidas de luxo, a elegância, a moda, a civilização, o sangue azul, as casas e quintas bem decoradas.

A D. Dolores Aveiro é a o Francis Franco dos tempos modernos.

JdB      


20 setembro 2022

Poemas dos dias que correm

No fundo

No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.


amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020

19 setembro 2022

Da confiança ou do optimismo *

"No melhor dos mundos possíveis, todos os acontecimentos andam encadeados; porque, afinal, se o senhor não tivesse sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunégonde, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse corrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada ao Barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país do Eldorado, não estaria agora aqui a comer pistácios e cidra cristalizada."


***

"- Strangely enough, it all turns out well.
- How?
- I don't know, it's a mistery..."

***

A primeira citação é de Cândido ou o Optimismo, de Voltaire [1694 - 1778]. A segunda citação, que já visita este estabelecimento ad nauseam, é do filme A Paixão de Shakespeare. [o escritor viveu entre 1554 e 1616]. Embora as citações pareçam ter semelhanças, são diferentes. E no entanto, embora pareçam ser diferentes, são muito semelhantes. Não nos autores (se bem que a frase "it's a mistery" não deva ser do dramaturgo), um inglês e um francês que nunca se cruzaram no tempo e no espaço, pois nasceram com 150 anos de diferença. 

A primeira citação fala de optimismo; a segunda de confiança. Ao longo do livro, o sábio Pangloss afirma repetidamente que "este é o melhor dos mundos possíveis". O personagem do filme não sabe como tudo se resolverá, mas sabe que se resolverá. "É um mistério" constitui uma manifestação de confiança no futuro - seja no alinhamento dos astros, seja na mão divina que tudo rege.

Consegue ser-se um sem o outro? A minha intuição inicial é que, talvez não sendo irmãs, confiança e optimismo são, ou primas direitas, ou filhas de primos direitos, que é uma espécie de fim-de-curso de interesse na genealogia dos tempos modernos - não ligamos pessoas mais afastadas. Mas a minha intuição - e por isso não assente em nada vagamente demonstrável, menos ainda científico, é que a confiança é um sentimento com uma profundidade diferente, seguramente maior. Não a confiança no médico e na mão que não treme, mas a confiança que é precedida pela certeza "não sei". 

Optimismo pode ser uma fezada, uma característica de gente muito alegre, contente, que entende, como Pangloss, que este é o melhor dos mundos possíveis. Mas a confiança e a fé são irmãs, talvez siamesas, seguramente de braço dado, sempre. O que define o personagem do filme não é o optimismo, mas a confiança, e esta confiança assenta no desconhecimento, não na ignorância, pois são coisas diferentes. Parafraseando um pequenino texto que me enviaram um destes dias, é como andar de avião: entregamo-nos à confiança, não ao optimismo. Desconhecemos como "aquilo" voa - se soubéssemos éramos apenas engenheiros aeronáuticos, e não mortais crentes.

Pode ser-se confiante sem optimismo? Não sei, mas se tiver de escolher um dos conceitos para me dar o braço já escolhi. Mesmo que ninguém se interesse pelo tema, o que se afigura pensamento de grande inteligência. A actualidade está repleta de temais mais interessantes - mas talvez não tão desafiantes, digo eu...

JdB

* publicado originalmente a 12 de Março de 2018

18 setembro 2022

XXV Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 16,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Um homem rico tinha um administrador,
que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens.
Mandou chamá-lo e disse-lhe:
'Que é isto que ouço dizer de ti?
Presta contas da tua administração,
porque já não podes continuar a administrar'.
O administrador disse consigo:
'Que hei-de fazer,
agora que o meu senhor me vai tirar a administração?
Para cavar não tenho força,
de mendigar tenho vergonha.
Já sei o que hei-de fazer,
para que, ao ser despedido da administração,
alguém me receba em sua casa'.
Mandou chamar um por um os devedores do seu senhor e disse ao primeiro:
'Quanto deves ao meu senhor?'.
Ele respondeu: 'Cem talhas de azeite'.
O administrador disse-lhe:
'Toma a tua conta: senta-te depressa e escreve cinquenta'.
A seguir disse a outro: 'E tu quanto deves?'.
Ele respondeu: 'Cem medidas de trigo'.
Disse-lhe o administrador:
'Toma a tua conta e escreve oitenta'.
E o senhor elogiou o administrador desonesto,
por ter procedido com esperteza.
De facto, os filhos deste mundo são mais espertos do que os filhos da luz,
no trato com os seus semelhantes.
Ora Eu digo-vos:
Arranjai amigos com o vil dinheiro,
para que, quando este vier a faltar,
eles vos recebam nas moradas eternas.
Quem é fiel nas coisas pequenas também é fiel nas grandes;
e quem é injusto nas coisas pequenas também é injusto nas grandes.
Se não fostes fiéis no que se refere ao vil dinheiro,
quem vos confiará o verdadeiro bem?
E se não fostes fiéis no bem alheio,
quem vos entregará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir a dois senhores,
porque, ou não gosta de um deles e estima o outro,
ou se dedica a um e despreza o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro».

15 setembro 2022

Textos dos dias que correm

A nossa tarefa: Viver e morrer como seres humanos

Nos últimos dias faleceram duas pessoas que marcaram a história do último século: Mikhail Gorbachev e Isabel II. Os meios de comunicação deram amplo destaque a estas notícias, percorrendo o arco temporal das duas biografias. Trata-se de pessoas que já entraram nos livros de História. Nestes manuais, com que todos nos cruzámos na nossa experiência escolar, estudam-se, com efeito, os “grandes” da História. Somos feitos assim, nós, humanos, precisamos de fazer classificações, de dar ordens de grandeza, de dividir o mundo em grandes e pequenos, poderosos e fracos, vencedores e derrotados, porque, para usar uma expressão do papa Francisco, estamos todos enclausurados dentro da «cultura do adjetivo», em vez de nos abrirmos à «teologia do substantivo».

Sabemos bem o quanto tudo isto, obviamente, é parcial, redutor, no fim de contas falso, mas é assim que andamos por diante, classificando e celebrando: é uma necessidade instintiva, que talvez nasça da insegurança, da consciência da nossa fragilidade. Sabemos por isso que o papa tem razão quando nos recorda – como também o fez a 20 de março de 2020, durante a “histórica” “Statio Orbis” na praça de S. Pedro, debaixo de chuva – que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – habitualmente esquecidas – que não comparecem nos títulos dos jornais e das revistas nem das grandes passarelas do último espetáculo, mas que, sem dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa História», reevocando assim a intuição de Edith Stein, para quem «seguramente os acontecimentos decisivos da História do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada vem dito nos livros de História».

É portanto a nossa desesperante fragilidade que nos conduz a recordar publicamente apenas os denominados «grandes», e por isso, nestes dias, recordamos Gorbachev e Isabel II. O primeiro encontrou muito menos espaço nos meios de comunicação em relação à segunda, apesar de ter sido um daqueles poucos homens que verdadeiramente mudou o curso da História. Constantino, Lutero… não são muitos aqueles de quem se possa dizer o mesmo, mas Gorbachev é um deles. Diferentemente, a rainha de Inglaterra que sobretudo acompanhou a História, coisa não menos fácil, durante todo um século, um período que talvez tenha sido o mais perturbador do ponto de vista das mudanças políticas, sociais, económicas, “existenciais”. Mudanças incríveis a uma incrível velocidade. Isabel foi testemunha de um vertiginoso reviramento social, e por isso o mundo da sua infância pouco tem a ver com o da sua velhice. A progressiva aceleração das transformações entre aquele 1926 em que nasceu e este 2022 é algo que toca e inquieta as consciências de todos. «Time is out of joint», dizia Hamlet, colhendo uma sensação comum: o tempo é louco, fora de controlo, fora “dos carris”.

Para onde se dirige a História? A um nível ainda mais radical, fundamental, a morte da rainha inglesa interpela-nos também porque a sua longevidade nos coloca perante o problema humano por excelência: o sentido do tempo e da sua finitude. Ao nascer contraímos uma doença mortal que chamamos vida, «this version of death called life», como canta Dylan. É verdade que a duração de Isabel nos toca e recorda-nos ao mesmo tempo que viver não é durar, que o tempo não pode ser só “krónos”, mas deve ser também “kairós”, «porque sem significado não há tempo» (Eliot).

Vem em nosso auxílio a palavra dos poetas, como este verso poderoso de Szymborska: «Não há vida que pelo menos por um instante não tenha sido imortal/ A morte chega sempre atrasada a esse instante». E então tentamos procurar esse instante e intuir o sentido destas duas mortes, a 30 de agosto Gorbachev e a 8 de setembro Isabel II, e encontrar assim um significado para a nossa.

Para o fazer podemos recorrer a uma terceira pessoa, encontrada morta a 23 de agosto, um homem sem um nome e sem um rosto (no sentido de que nunca foi fotografado ou retratado): o "índio do buraco". Dele fala de maneira tocante Raffaele Luise no recente livro “Amazónia. Viagem ao tempo do fim»: «No Estado de Rondônia move-se um índio isolado, só no mundo, último representante do seu povo, exterminado pela ditadura militar. […] Ameaçado por todos, foge de tudo […], vive a escavar buracos na terra, e por isso é chamado “índio do buraco”. Nestes buracos, diferentes todas as noites, abaixa-se para dormir, depois de ter fixado a rede e coberto a cavidade com um teto de madeira e folhas». Acomodado sobre aquela rede, foi encontrado a 23 de agosto, morto devido a causas naturais, coberto de penas. Nenhum sinal de violência física, nenhum rasto de incursão no terreno. Sozinho, como tinha vivido durante tantos longos anos.

Celebrar a vida deste índio seria cometer o mesmo erro daqueles livros de História nos quais ele talvez nunca entre. Não deve ter sido uma vida fácil, foi o último sobrevivente de um genocídio. Perante a violência do mundo escolheu fugir, escondendo-se. Se Isabel permaneceu dentro da História que vertiginosamente mudava diante dos seus olhos, o “índio do buraco” sepultou-se desde logo em vida, saiu da História para viver na fixidez da natureza, morrendo, como se deveria morrer, por causas naturais. Celebrar, por isso, não a sua vida mas a sua morte, o estilo como que a enfrentou, isto sim, isto talvez fosse acertado e apropriado. Da maneira como foi encontrado intui-se que acolheu a sua morte, não a sofreu. “Dispôs-se”, como exortava Santo Afonso Maria de Ligório, colocando-se a olhar o céu, o gesto mais humano de todos, e abandonou-se com fragilidade ao mistério do fim. Talvez tenha morrido libertado do medo; poderia dizer-se: morreu como um rei. E pode dar-se que tenha dito em alta voz, como a personagem Old Lodge Skins (inesquecível chefe índio do filme “O pequeno grande homem”): «Hoje é um belo dia para morrer». Quem sabe se, finalmente, terá encontrado a paz, mas a quem não agradaria repetir os seus gestos, pronunciar as suas palavras? 

Andrea Monda
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 13.09.2022

14 setembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 NO ANO DA MORTE DE FERNANDO PESSOA (II) 

Na continuação do gin anterior (de 31.Ag.), seguem mais 3 poemas de Pessoa quase inéditos em Portugal, mas não em Itália, onde continuam a ser divulgados! Em Agosto, estiveram nos holofotes da exposição do «Meeting» de Rimini dedicada ao poeta com mais heterónimos do mundo. 

Estas composições mais votadas ao esquecimento datam do último biénio de vida do poeta, que expirou a 30 de Novembro de 1935. Chegaram-me por mão amiga, participante no badalado Meeting italiano, onde costumam intervir artistas, Nobéis e grandes figuras da política internacional (raridades…):  

«VIRGEM MARIA

Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço
Poisa a cabeça a dor universal
E dorme, ébria do fim do seu cansaço...
E tens na mão, usado e nunca imundo,
O pequenino lenço maternal
Com que enxugas as lágrimas do mundo.

De 21 de Agosto de 1935.

A EGREJA MATERNA 

A Egreja materna cobriu como uma redoma
Meus dias serenos.
Chamo-lhe agora, com razões, a Egreja de Roma.
Sei mais ou sou menos?

Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias
Tudo tive na mão
Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias.
Mas nunca no meu coração.

De que fui desherdado pela verdade?
A maçã diabólica
Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh a saudade
Da Egreja Catholica!
Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó
Que cahisse mal.
Em pequeno eu seguia, magnanimamente só 
Sem nada fatal.

De 20 de Abril de 1934. 

«À MINHA MÃE

  Ave Maria, tão pura,
  Virgem nunca maculada
  Ouvi a prece tirada
  No meu peito da amargura!
  
Vós que sois cheia de graça,
  Escutai minha oração,
  Conduzi-me pela mão
  Por esta vida que passa!

  O Senhor, que é vosso filho,
  Que seja sempre connosco,
  Assim como é convosco
  Eternamente o seu brilho.

  Bendita sois vós, Maria,
  Entre as mulheres da terra;
  E voss’alma só encerra
  Doce imagem d’alegria!

  Mais radiante do que a luz
  E bendito, oh Santa Mãe
  É o fruto que provém
  Do vosso ventre, Jesus!

  Ditosa Santa Maria,
  Vós que sois a Mãe de Deus
  E que morais lá nos céus
  Orai por nós cada dia!

  Rogai por nós, pecadores,
  Ao vosso filho, Jesus,
  Que por nós morreu na cruz
  E que sofreu tantas dores!

  Rogai, agora, oh Mãe querida,
  E (quando quiser a sorte)
  Na hora da nossa morte
  Quando nos fugir a vida!
 
  Avé Maria, tão pura,
  Virgem nunca maculada,
  Ouvide a prece tirada
  No meu peito da amargura.»

 (Data incerta: 1935 ?, 1902 ?)  

São desencontradas as opiniões sobre o gnosticismo pessoano, que ora rasga um horizonte maior, ora desespera com o limite curto da existência. Há exemplos para vários lados, embora no meio da sua angústia de viver também tenham despontado momentos inequívocos de luz, a somar à devoção antiga do poeta pela figura maternal de Maria, a quem personalizou a oração da Avé-Maria (citada acima).  

              «QUERO, TEREI  

                Se não aqui, 
                Noutro lugar quinda não sei. 
                Nada perdi. 
                Tudo serei.»

Data atribuída:  9 de Janeiro de 1933 
            «ISTO

              Dizem que finjo ou minto
              Tudo o que escrevo. Não.
              Eu simplesmente sinto
              Com a imaginação. 
               Não uso o coração.

               Tudo o que sonho ou passo,  
               O que me falha ou finda, 
               É como que um terraço 
               Sobre outra coisa ainda. 
               Essa coisa é que é linda
.  (…)»

(data desconhecida)

           «NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO (…) 

             De tanto ser, só tenho alma.
             Cada momento mudei.
             Continuamente me estranho. 
             Nunca me vi nem achei.
             De tanto ser, só tenho alma. 
             Quem tem alma não tem calma. (…)
            
             Por isso, alheio, vou lendo
             Como páginas meu ser (…)   
             Noto à margem do que li
             O que julguei que senti.
             Releio e digo: “fui eu?”
             Deus sabe, porque o escreveu.» 
          
De 24 de Agosto de 1930. 

           «DEU-ME DEUS O SEU GLÁDIO, (…) 

             Pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou me
             A fronte com o olhar:
             E esta febre de Além, que me consome,
             E este querer-justiça são Seu Nome
             Dentro em mim a vibrar.

              E eu vou, e a luz do Gládio erguido dá
              Em minha face calma.
              Cheio de Deus, não temo o que virá,
              Pois, venha o que vier, nunca será
              Maior do que a minha alma!»   

In ‘Orpheu’, nº 3, 1916.

Vale sempre a pena revisitar as reflexões do autor de frases magistrais, como estas assinadas pelo heterónimo mais vanguardista – Álvaro de Campos: «VIVER TUDO DE TODOS OS LADOS» e «NÃO SOU NADA. NUNCA SEREI NADA. NÃO POSSO QUERER SER NADA. À PARTE ISSO, TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO.» (in “Tabacaria”). Esta tirada poderia ser complementada pela observação da escritora brasileira de origem ucraniana – Clarice Lispector: «TODAS AS MANHÃS ELA DEIXA OS SONHOS NA CAMA, ACORDA E PÕE A SUA ROUPA DE VIVER.». Por seu turno, o heterónimo com que mais se identificava – Alberto Caeiro – sintetizou neste dizer um sentido de vida: «SINTO-ME NASCIDO A CADA MOMENTO / PARA A ETERNA NOVIDADE DO MUNDO…». 

É fantástica a rapidez com que os poetas condensam o mistério grandioso e paradoxal da humanidade em palavras breves e lindas. Bem hajam pela sua arte!   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

13 setembro 2022

Da tradição

Não foi nem uma nem duas vezes que falei sobre monarquia inglesa com amigos, fossem eles republicanos ou monárquicos. Mais nos primeiros do que nos segundos havia uma ideia forte: a de que, desaparecida a Rainha Isabel, o trono passaria directamente para William, o filho mais velho do filho mais velho. A razão era simples: o príncipe Carlos não era capaz ou, mais recentemente, o príncipe William tinha um capital de popularidade muito superior.

Não sendo um homem rasgado ou com uma visão sobre o futuro superior à do comum dos mortais, sempre acreditei que isso não aconteceria. Primeiro, que a decisão estava tomada há muito; segundo, que a sucessão seguiria os trâmites normais. Não sendo o príncipe Carlos mentecapto (nalgumas áreas até terá sido um homem à frente do seu tempo) passar por cima dele na linha da sucessão seria abrir uma brecha perigosíssima - talvez mesmo fatal: a de que a monarquia se rege, também, por questões de popularidade. Isto é, que A é rei/rainha, não porque é o/a primeiro/a na linha da sucessão, mas porque o povo (cuja opinião, não tendo sido expressa em urnas, é interpretada pelos politólogos) acha B mais capaz. Acontece que ninguém definiu o que é ser-se capaz. A apreciação é subjectiva. 

O que salva a monarquia inglesa, como me dizia (ou me citava, não sei) ontem um amigo, insuspeito de anglofilia, depois de ter visto o príncipe Carlos a discursar perante a Casa dos Comuns e a Casa dos Lordes: este é que é o Reino Unido a sério, incluindo o cerimonial. A conclusão de tudo é que "a tradição em Inglaterra, é maior do que a gigante Isabel II. E esta predominância é extraordinária. O Reino Unido será eterno enquanto esta tradição for assim, com esta força e imposição." E a tradição é, salvo circunstâncias muito evidentes, respeitar a linha da sucessão. Por isso William nunca poderia ser Rei agora.

A propósito de cerimonial não resisto a citar-me a mim próprio, tirado de um texto que escrevi em Abril de 2022.      

A monarquia inglesa, plena de tradições e costumes, é, também ela, um esplendor de ritos. Num dos episódios da série Crown, de que já aqui falei, o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. À medida que a cerimónia se desenrola o Duque explica o que se passa, e o que está por trás de cada gesto. Nota-se nele conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista. A um dado momento um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo, e ela desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta por que razão a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos

Quando a tradição acabar muito se acaba com ela. 

JdB

12 setembro 2022

Poemas dos dias que correm *

Em vida eu fui o bêbado da vila;
quando morri o padre negou-se a enterrar-me
em solo sagrado.
E isso acabou por ser para mim uma sorte,
pois os Protestantes compraram este lote
e enterraram aqui o meu corpo,
junto à campa de Nicholas, o banqueiro
e de Priscilla, a sua mulher.
Considerai, ó almas prudentes e piedosas,
como a vida, contra a corrente,
traz honras funerárias a quem viveu na humilhação.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003

* tirado daqui


11 setembro 2022

XXIV Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 15,1-32

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximaram-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Quem de vós, que possua cem ovelhas
e tenha perdido uma delas,
não deixa as outras noventa e nove no deserto,
para ir à procura da que anda perdida, até a encontrar?
Quando a encontra, põe-na alegremente aos ombros
e, ao chegar a casa,
chama os amigos e vizinhos e diz-lhes:
'Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida'.
Eu vos digo:
Assim haverá mais alegria no Céu
por um só pecador que se arrependa,
do que por noventa e nove justos,
que não precisam de arrependimento.
Ou então, qual é a mulher
que, possuindo dez dracmas e tendo perdido uma,
não acende uma lâmpada, varre a casa
e procura cuidadosamente a moeda até a encontrar?
Quando a encontra, chama as amigas e vizinhas e diz-lhes:
'Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida'.
Eu vos digo:
Assim haverá alegria entre os Anjos de Deus
por um pecador que se arrependa».

08 setembro 2022

Da TAP e das low-costs

 Há duas semanas, um post no Linkedin sobre a TAP - especialmente sobre um acontecimento com troca de aviões, que foi noticiado nas televisões - gerou, quase de imediato, mais de 100 comentários. Os campos eram ferozmente opostos: a TAP como uma companhia má versus a TAP como uma companhia boa. Falamos do tempo actual e não falamos de segurança de voo. Eu sentei-me claramente na bancada dos que acham a TAP uma companhia má. Na minha avaliação não entra a componente sustentada no raciocínio: o que a TAP devia ser para aquilo que nos custa. Avalio a TAP por aquilo que é.

Um dos problemas que eu tenho com a TAP é a memória. É diferente avaliar a TAP quando se viaja na companhia há quase 50 anos ou avaliar a TAP quando se viaja na companhia há 10 ou há 15 anos. Também é diferente avaliar uma companhia aérea (qualquer que ela seja) quando se conheceu o que era a realidade das viagens aéreas há 40 ou 50 anos.

Há 50 anos o turismo era uma actividade de elites. Embarcava-se com uma roupinha mais composta, a profissão de assistente de bordo estava envolvida numa aura de beleza e glamour. Os bilhetes de avião eram caros e o serviço a bordo (na TAP, muito em particular) era de excelência: aperitivo, talheres de metal e copos de vidro, ementa em papel de boa gramagem, opção de peixe ou carne, refeições quentes e possibilidade de um digestivo. Não falo de longo curso - esta era a realidade numa viagem Lisboa - Londres. E voos nem sempre cheios, o que não é despiciendo. Foi esta a realidade que eu conheci, a voar na Europa ou em longo curso. A TAP estava seguramente nas cinco (para não ser muito ousado) melhores companhias do mundo.

Hoje o turismo é de massas. A segurança a bordo obrigou ao plástico, o ambiente obrigou à madeira. A necessidade de reduzir custos substituiu a refeição quente por uma sandes má de atum, a necessidade adicional imitou o costume das low-costs: comida paga. A profissão de assistente de bordo perdeu o glamour - hoje serão pouco mais do que empregadas de mesa (com todo o respeito) que circulam entre aeroportos e aviões, cuja actividade principal é servir clientes nem sempre educados. Uma viagem de avião deixou de ser um acontecimento para ser um mal necessário para quem quer ir de A para B. 

O que diferenciava a TAP de uma low-cost não era só o preço do bilhete - era também a qualidade dos vários serviços - de embarque e a bordo. Hoje já não é isso as que diferencia. O serviço numa low-cost não engana, já que não podemos esperar mais com aquilo que pagamos. Ora, a TAP não cobra bilhetes de low-cost, mas presta serviço de low-cost: o serviço informativo no embarque é mau (tenho várias experiências), a comida a bordo quase nunca chega. Neste afã de eliminar o desperdício, e ao contrário do que diz o adágio popular, decidiu-se que faltar era melhor do que sobrar. Diz-me uma assistente de bordo (que teve a amabilidade de disponibilizar um copo de vidro para eu não ter de beber vinho com sabor a cartão) que em todas as viagens se pede mais sanduíches. E em todas as viagens faltam sanduíches, porque não disponibilizam mais. Antes sobre do que faça falta é um pensamento a não seguir.

Falando em bom português, o meu problema com a TAP é dois. De facto, vi a degradação (replicada em muitas companhias aéreas) de uma companhia fantástica - maldita memória de outros tempos. Por outro lado, o serviço é mau (e pelo mesmo preço não tinha de ser tão mau), pese embora o esforço de alguns profissionais. De tudo isto safam-se os que começaram a viajar na semana passada - nunca conheceram outra realidade. 

Nota final: viajei na TAP 3 ou 4 vezes nos últimos 3 meses. Costumavam pedir-me para responder a um inquérito; deixaram de o fazer, talvez pelo meu tom excessivamente crítico. Qualquer dia eliminam-me o número de passageiro frequente.

JdB 

06 setembro 2022

Regresso a Praga (II)



Já aqui abordei este tópico. A cidade mais feia do mundo pode parecer-nos belíssima num momento de enorme felicidade? E a cidade mais bonita pode surgir-nos como horrível num momento de enorme infelicidade? Há algum nexo causal entre o estado interior e a beleza de um local? Não sei, não me lembro de alguma vez ter passado por essa experiência

Cheguei ontem da minha quarta viagem a Praga, como já aqui referi. A informação estatística não tem um propósito vaidoso ou apenas pateta. Serve apenas para evidenciar um ponto de fascínio que se mantém. Em 1982, quando a visitei pela primeira vez, classifiquei-a como a mais bonita cidade do mundo. Viviam-se ainda os tempos da Cortina de Ferro. Quando lá voltei, no princípio dos anos de 2000 – já num momento político totalmente diferente – confirmei a minha apreciação inicial. Em 2019, o carácter de serviço da viagem não me permitiu conformar a impressão, já que passeei pouco e estava focado noutras prioridades mentais. A viagem de agora permitiu confirmar a minha primeira impressão, já com 40 anos.

A classificação de “cidade mais bonita do mundo”, em não havendo critérios muito objectivos ou um júri que faça a apreciação, é totalmente pessoal. Eu elegi Praga, como outros elegerão Paris, Budapeste, Rio de Janeiro ou Lisboa. O que me fascina em Praga? A escala humana da beleza. O passeio por Praga não esmaga, isto é, não há uma profusão enorme de palácios magníficos e imponentes, não há uma sucessão esmagadora de peças arquitectónicas de grande volume. O que me agrada em Praga é, repito, a escala humana. Uma beleza e um equilíbrio muito acessíveis aos olhos e ao intelecto; uma conjugação equilibrada de estilos diferentes mas harmónicos, um enquadramento fantástico com o rio. Uma cidade macia o suficiente, rugosa o suficiente. A cidade mais bonita do mundo... 

JdB

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