Texto apresentado hoje, numa sessão forte sobre famílias em luto, sobre Pais que perdem filhos.
JdB
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
Tomar refeições com pessoas de Espanha, Malásia, Austrália, África do Sul, Zimbabwe, India, Chile e Nova Zelândia tem uma valência sociológica. O neo zelandês não usa faca e descansa o antebraço inútil apoiando-o na mesa; o malaio viaja em permanência com um frasco de chili que adiciona a tudo o que anteceda a sobremesa. Pediu um bacalhau frito e despejou-lhe o picante por cima. Perante a opinião de que estragava a comida porque lhe introduzia um condimento dominante perguntou: porquê? A pergunta feita por quem condimenta uma omeleta ou um bacalhau à Gomes de Sá não suscita resposta. Apesar de estarmos em Espanha, o sul-africano achou que deve pedir um hambúrguer. A indiana não bebe álcool e emborcou 3 copos de vinho. Saiu a rir, corada de vergonha e de braço dado. Acontece-lhe isto sempre que a vejo, duas vezes por ano.
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Assisto a uma sessão sobre a Ucrânia. Como já aqui falei uma vez, a comunidade ligada à oncologia pediátrica evacuou centenas de crianças e famílias para países da Europa (Portugal incluído). À pergunta de quais os desafios para o futuro, um pediatra oncologista afirmou sossegadamente: a manutenção da profissão. Na verdade, o que faz um oncologista pediátrico num país de onde foi retirada uma quantidade muito significativa de crianças com cancro. Tratam de quem, a curto prazo?
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Pela primeira vez desde 2019 (em Lyon) os congressos passaram a ser presenciais. Não preciso de descrever a alegria das pessoas, e da dificuldade que por vezes todos temos de identificar alguém que vemos todos os meses em formato tipo passe. Pessoas até com quem mantemos conversas por vezes de teor pessoal. E voltaram a dizer-me: no zoom pareces mais baixo... Curioso é também o facto de um cumprimento assumido por muitos participantes femininos: um abraço sem beijo. Os homens mantêm o aperto de mão, muitas mulheres abraçam com gosto. Free hugs, no fundo.
JdB
FERNANDO PESSOA GANHOU UMA APOSTA (III)
Estava o poeta com um amigo na Brasileira, animadamente a dissertarem sobre a condição ideal para compor poesia. Defendia o amigo ser crucial haver um factor externo a servir de ignição inspirativa, acreditando na ligação da arte à realidade circundante a partir do ângulo de visão do poeta-observador. Mas Pessoa discordava, considerando suficiente a imaginação fértil e fecunda de um poeta. Tomava-a por magma da sua inspiração.
Sem acordo à vista, fizeram uma aposta, propondo-se Pessoa fazer prova da sua tese ao compor, ali mesmo, um poema de tema livre desligado do ameno convívio no Chiado. Assim escrevinhou em quinze minutos, sobre um guardanapo da Brasileira, «O MENINO DE SUA MÃE», conforme testemunhou o seu interlocutor – avô de uma amiga doutorada em línguas e professora de português, fonte desta ‘inside information’. Intencionalmente, o poema adoptou uma tonalidade fúnebre, estranha àquele encontro amistoso na pacata Lisboa das primeiras décadas do século XX. Apesar da proximidade cronológica da Primeira Guerra Mundial, traumática pela quantidade de portugueses enviados sem condições para trincheiras mortíferas, admitiu-se que Pessoa teria ganho aquele debate, nem que fosse como prémio pela qualidade do texto que, em minutos, soubera impregnar do desgosto indizível de uma mãe que perde o filho numa guerra de outros:
«O MENINO DA SUA MÃE
Primeira publicação, em 1926
Como não haveria de defender a criatividade artística, quem se pulverizou em incontáveis personalidades poéticas, sedento de captar a vida – a interior e a exterior – a partir de todas as perspectivas que a imaginação lhe franqueava? Não por acaso, Pessoa detém o palmarés do escritor com maior número de heterónimos do planeta! Nele, um só coração bateria mas uma profusão de olhares afinavam-se para «sentir tudo de todas as maneiras», na ânsia do infinito:
«Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
(...) Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.»
Data provável: 1915.
«Sê plural como o universo»
22 de Setembro de 1933
Carta a Adolfo Casais Monteiro
«A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. (…) Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. (...)»
13 de Janeiro de 1935
«Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções… Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia…»
In “Livro do Desassossego”, do heterónimo Bernardo Soares (1913-…); colectânea de fragmentos, publicada em 1982.
«II - Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades (Álvaro de Campos)
II
30 de Junho de 1914
Álvaro de Campos, 25 de Maio de 1916
Álvaro de Campos, 1916
Álvaro de Campos, 22 de Maio de 1916
Odes de Ricardo Reis – 14 de Fevereiro de 1933
Fotografia oferecida por Pessoa à sua amada Ophélia Queiroz, em 1929, com a dedicatória: "FERNANDO PESSOA EM FLAGRANTE DELITRO". |
Nas muitas vozes que convocou para ecoar a infinitude do seu mundo interior, Pessoa conseguiu expandir o campo de visão até periferias inimagináveis, qual actor que se desdobra noutros seres para dar vida a múltiplas personagens. Mas, quem só vive uma vez, não arrisca algum esboroar de identidade com esta aventurosa pulverização de personalidades?
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Vou estar em Barcelona nos próximos dias, pelo que a minha assistência ao estabelecimento poderá ser mais errática.
JdB
EVANGELHO - Lc 16,19-31
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
disse Jesus aos fariseus:
«Havia um homem rico,
que se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias.
Um pobre, chamado Lázaro,
jazia junto do seu portão, coberto de chagas.
Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico,
mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu
e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, estando em tormentos,
levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.
Então ergueu a voz e disse:
'Pai Abraão, tem compaixão de mim.
Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo
e me refresque a língua,
porque estou atormentado nestas chamas'.
Abraão respondeu-lhe:
'Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida
e Lázaro apenas os males.
Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado,
enquanto tu és atormentado.
Além disso, há entre nós e vós um grande abismo,
de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós,
ou daí para junto de nós,
não poderia fazê-lo'.
O rico insistiu:
'Então peço-te, ó pai,
que mandes Lázaro à minha casa paterna
– pois tenho cinco irmãos –
para que os previna,
a fim de que não venham também para este lugar de tormento'.
Disse-lhe Abraão:
'Eles têm Moisés e os Profetas.
Que os oiçam'.
Mas ele insistiu:
'Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão'.
Abraão respondeu-lhe:
'Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos,
não se convencerão'.
embalado pela chuva minuciosa de Borges,
O tema não é novo neste estabelecimento: porque é que as pessoas querem seguir pessoas nas redes sociais?
Um dia, numa conversa de amigos, o tema voltou à baila: fulano tem não sei quantos mil seguidores, beltrano mais ainda, sicrano bate o recorde. Ao que parece, Cristiano Ronaldo e a mãe, D. Dolores, são dos que mais seguidores têm, e foram um bom exemplo para o meu raciocínio naquela noite à volta de uma mesa.
O Cristiano Ronaldo é um desportista de eleição, destes que faz parte de uma pequena elite. Seguir o futebolista é, num certo sentido, perceber o que é a vida de um desportista superior. Seguir a D. Dolores (contra quem nada me move) é seguir uma pessoa normal, cuja a-normalidade consistiu em gerar e educar um desportista superior. No mais, penso que seguirá uma vida corriqueira não tendo, como a grande maioria da população terrestre, produzido obra, agitado o mundo, arrebatado multidões. O que nos faz seguir pessoas que não se salientarem em nada de especial (sem que a frase seja desprimor)?
À mesa destes amigos disse uma coisa simples, que os "heróis" dos dias de hoje eram os actores / actrizes das telenovelas. O heroísmo deixou de ser físico, a coragem deixou de ser das ideias. Hoje, o que arrasta multidões e cativa as televisões são as vidas dos actores. Quando dei por mim percebi que estava a falar com dois amigos que, por acaso, são pais de um actor de telenovelas. Desculpei-me, talvez tenham percebido e, quem sabe, concordado. Queremos saber as praias paradisíacos onde os actores passam férias, as festas a que vão, que restaurantes frequentam. Querer saber é uma coisa; mas querer seguir a vida destas pessoas? Porque não a de um médico ou de um advogado, que fazem o melhor possível nas suas profissões.
Um dia terei dito que este tipo de voyeurismo é moderno. Nos meus tempo de adolescentes íamos para a praia da Azarujinha, em S. João do Estoril, porque havia casais a beijarem-se (ou a fazer mais alguma coisa) no recanto das rochas escondidas. Achava eu que o voyeurismo tinha uma dimensão erótica - ou escondida. Um dia percebi que o voyeurismo não proibido também existia no meu tempo de menino: chamava-se Hola ou Point de Vue, as revista cor-de-rosa espanholas ou francesas que partilhavam connosco as vidas do jet set espanhol (dos condes aos matadores de toiros) ou da nobreza mundial. Do que iam à procura quem li as revistas (que ainda são lidas): as vidas de luxo, a elegância, a moda, a civilização, o sangue azul, as casas e quintas bem decoradas.
A D. Dolores Aveiro é a o Francis Franco dos tempos modernos.
JdB
"No melhor dos mundos possíveis, todos os acontecimentos andam encadeados; porque, afinal, se o senhor não tivesse sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunégonde, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse corrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada ao Barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país do Eldorado, não estaria agora aqui a comer pistácios e cidra cristalizada."
EVANGELHO - Lc 16,1-13
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Um homem rico tinha um administrador,
que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens.
Mandou chamá-lo e disse-lhe:
'Que é isto que ouço dizer de ti?
Presta contas da tua administração,
porque já não podes continuar a administrar'.
O administrador disse consigo:
'Que hei-de fazer,
agora que o meu senhor me vai tirar a administração?
Para cavar não tenho força,
de mendigar tenho vergonha.
Já sei o que hei-de fazer,
para que, ao ser despedido da administração,
alguém me receba em sua casa'.
Mandou chamar um por um os devedores do seu senhor e disse ao primeiro:
'Quanto deves ao meu senhor?'.
Ele respondeu: 'Cem talhas de azeite'.
O administrador disse-lhe:
'Toma a tua conta: senta-te depressa e escreve cinquenta'.
A seguir disse a outro: 'E tu quanto deves?'.
Ele respondeu: 'Cem medidas de trigo'.
Disse-lhe o administrador:
'Toma a tua conta e escreve oitenta'.
E o senhor elogiou o administrador desonesto,
por ter procedido com esperteza.
De facto, os filhos deste mundo são mais espertos do que os filhos da luz,
no trato com os seus semelhantes.
Ora Eu digo-vos:
Arranjai amigos com o vil dinheiro,
para que, quando este vier a faltar,
eles vos recebam nas moradas eternas.
Quem é fiel nas coisas pequenas também é fiel nas grandes;
e quem é injusto nas coisas pequenas também é injusto nas grandes.
Se não fostes fiéis no que se refere ao vil dinheiro,
quem vos confiará o verdadeiro bem?
E se não fostes fiéis no bem alheio,
quem vos entregará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir a dois senhores,
porque, ou não gosta de um deles e estima o outro,
ou se dedica a um e despreza o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro».
A nossa tarefa: Viver e morrer como seres humanos
Nos últimos dias faleceram duas pessoas que marcaram a história do último século: Mikhail Gorbachev e Isabel II. Os meios de comunicação deram amplo destaque a estas notícias, percorrendo o arco temporal das duas biografias. Trata-se de pessoas que já entraram nos livros de História. Nestes manuais, com que todos nos cruzámos na nossa experiência escolar, estudam-se, com efeito, os “grandes” da História. Somos feitos assim, nós, humanos, precisamos de fazer classificações, de dar ordens de grandeza, de dividir o mundo em grandes e pequenos, poderosos e fracos, vencedores e derrotados, porque, para usar uma expressão do papa Francisco, estamos todos enclausurados dentro da «cultura do adjetivo», em vez de nos abrirmos à «teologia do substantivo».
Sabemos bem o quanto tudo isto, obviamente, é parcial, redutor, no fim de contas falso, mas é assim que andamos por diante, classificando e celebrando: é uma necessidade instintiva, que talvez nasça da insegurança, da consciência da nossa fragilidade. Sabemos por isso que o papa tem razão quando nos recorda – como também o fez a 20 de março de 2020, durante a “histórica” “Statio Orbis” na praça de S. Pedro, debaixo de chuva – que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – habitualmente esquecidas – que não comparecem nos títulos dos jornais e das revistas nem das grandes passarelas do último espetáculo, mas que, sem dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa História», reevocando assim a intuição de Edith Stein, para quem «seguramente os acontecimentos decisivos da História do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada vem dito nos livros de História».
É portanto a nossa desesperante fragilidade que nos conduz a recordar publicamente apenas os denominados «grandes», e por isso, nestes dias, recordamos Gorbachev e Isabel II. O primeiro encontrou muito menos espaço nos meios de comunicação em relação à segunda, apesar de ter sido um daqueles poucos homens que verdadeiramente mudou o curso da História. Constantino, Lutero… não são muitos aqueles de quem se possa dizer o mesmo, mas Gorbachev é um deles. Diferentemente, a rainha de Inglaterra que sobretudo acompanhou a História, coisa não menos fácil, durante todo um século, um período que talvez tenha sido o mais perturbador do ponto de vista das mudanças políticas, sociais, económicas, “existenciais”. Mudanças incríveis a uma incrível velocidade. Isabel foi testemunha de um vertiginoso reviramento social, e por isso o mundo da sua infância pouco tem a ver com o da sua velhice. A progressiva aceleração das transformações entre aquele 1926 em que nasceu e este 2022 é algo que toca e inquieta as consciências de todos. «Time is out of joint», dizia Hamlet, colhendo uma sensação comum: o tempo é louco, fora de controlo, fora “dos carris”.
Para onde se dirige a História? A um nível ainda mais radical, fundamental, a morte da rainha inglesa interpela-nos também porque a sua longevidade nos coloca perante o problema humano por excelência: o sentido do tempo e da sua finitude. Ao nascer contraímos uma doença mortal que chamamos vida, «this version of death called life», como canta Dylan. É verdade que a duração de Isabel nos toca e recorda-nos ao mesmo tempo que viver não é durar, que o tempo não pode ser só “krónos”, mas deve ser também “kairós”, «porque sem significado não há tempo» (Eliot).
Vem em nosso auxílio a palavra dos poetas, como este verso poderoso de Szymborska: «Não há vida que pelo menos por um instante não tenha sido imortal/ A morte chega sempre atrasada a esse instante». E então tentamos procurar esse instante e intuir o sentido destas duas mortes, a 30 de agosto Gorbachev e a 8 de setembro Isabel II, e encontrar assim um significado para a nossa.
Para o fazer podemos recorrer a uma terceira pessoa, encontrada morta a 23 de agosto, um homem sem um nome e sem um rosto (no sentido de que nunca foi fotografado ou retratado): o "índio do buraco". Dele fala de maneira tocante Raffaele Luise no recente livro “Amazónia. Viagem ao tempo do fim»: «No Estado de Rondônia move-se um índio isolado, só no mundo, último representante do seu povo, exterminado pela ditadura militar. […] Ameaçado por todos, foge de tudo […], vive a escavar buracos na terra, e por isso é chamado “índio do buraco”. Nestes buracos, diferentes todas as noites, abaixa-se para dormir, depois de ter fixado a rede e coberto a cavidade com um teto de madeira e folhas». Acomodado sobre aquela rede, foi encontrado a 23 de agosto, morto devido a causas naturais, coberto de penas. Nenhum sinal de violência física, nenhum rasto de incursão no terreno. Sozinho, como tinha vivido durante tantos longos anos.
Celebrar a vida deste índio seria cometer o mesmo erro daqueles livros de História nos quais ele talvez nunca entre. Não deve ter sido uma vida fácil, foi o último sobrevivente de um genocídio. Perante a violência do mundo escolheu fugir, escondendo-se. Se Isabel permaneceu dentro da História que vertiginosamente mudava diante dos seus olhos, o “índio do buraco” sepultou-se desde logo em vida, saiu da História para viver na fixidez da natureza, morrendo, como se deveria morrer, por causas naturais. Celebrar, por isso, não a sua vida mas a sua morte, o estilo como que a enfrentou, isto sim, isto talvez fosse acertado e apropriado. Da maneira como foi encontrado intui-se que acolheu a sua morte, não a sofreu. “Dispôs-se”, como exortava Santo Afonso Maria de Ligório, colocando-se a olhar o céu, o gesto mais humano de todos, e abandonou-se com fragilidade ao mistério do fim. Talvez tenha morrido libertado do medo; poderia dizer-se: morreu como um rei. E pode dar-se que tenha dito em alta voz, como a personagem Old Lodge Skins (inesquecível chefe índio do filme “O pequeno grande homem”): «Hoje é um belo dia para morrer». Quem sabe se, finalmente, terá encontrado a paz, mas a quem não agradaria repetir os seus gestos, pronunciar as suas palavras?
NO ANO DA MORTE DE FERNANDO PESSOA (II)
Na continuação do gin anterior (de 31.Ag.), seguem mais 3 poemas de Pessoa quase inéditos em Portugal, mas não em Itália, onde continuam a ser divulgados! Em Agosto, estiveram nos holofotes da exposição do «Meeting» de Rimini dedicada ao poeta com mais heterónimos do mundo.
Estas composições mais votadas ao esquecimento datam do último biénio de vida do poeta, que expirou a 30 de Novembro de 1935. Chegaram-me por mão amiga, participante no badalado Meeting italiano, onde costumam intervir artistas, Nobéis e grandes figuras da política internacional (raridades…):
«VIRGEM MARIA
De 21 de Agosto de 1935.
A EGREJA MATERNA
De 20 de Abril de 1934.
(Data incerta: 1935 ?, 1902 ?)
São desencontradas as opiniões sobre o gnosticismo pessoano, que ora rasga um horizonte maior, ora desespera com o limite curto da existência. Há exemplos para vários lados, embora no meio da sua angústia de viver também tenham despontado momentos inequívocos de luz, a somar à devoção antiga do poeta pela figura maternal de Maria, a quem personalizou a oração da Avé-Maria (citada acima).
(data desconhecida)
«DEU-ME DEUS O SEU GLÁDIO, (…)
In ‘Orpheu’, nº 3, 1916.
Vale sempre a pena revisitar as reflexões do autor de frases magistrais, como estas assinadas pelo heterónimo mais vanguardista – Álvaro de Campos: «VIVER TUDO DE TODOS OS LADOS» e «NÃO SOU NADA. NUNCA SEREI NADA. NÃO POSSO QUERER SER NADA. À PARTE ISSO, TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO.» (in “Tabacaria”). Esta tirada poderia ser complementada pela observação da escritora brasileira de origem ucraniana – Clarice Lispector: «TODAS AS MANHÃS ELA DEIXA OS SONHOS NA CAMA, ACORDA E PÕE A SUA ROUPA DE VIVER.». Por seu turno, o heterónimo com que mais se identificava – Alberto Caeiro – sintetizou neste dizer um sentido de vida: «SINTO-ME NASCIDO A CADA MOMENTO / PARA A ETERNA NOVIDADE DO MUNDO…».
É fantástica a rapidez com que os poetas condensam o mistério grandioso e paradoxal da humanidade em palavras breves e lindas. Bem hajam pela sua arte!
Não foi nem uma nem duas vezes que falei sobre monarquia inglesa com amigos, fossem eles republicanos ou monárquicos. Mais nos primeiros do que nos segundos havia uma ideia forte: a de que, desaparecida a Rainha Isabel, o trono passaria directamente para William, o filho mais velho do filho mais velho. A razão era simples: o príncipe Carlos não era capaz ou, mais recentemente, o príncipe William tinha um capital de popularidade muito superior.
Não sendo um homem rasgado ou com uma visão sobre o futuro superior à do comum dos mortais, sempre acreditei que isso não aconteceria. Primeiro, que a decisão estava tomada há muito; segundo, que a sucessão seguiria os trâmites normais. Não sendo o príncipe Carlos mentecapto (nalgumas áreas até terá sido um homem à frente do seu tempo) passar por cima dele na linha da sucessão seria abrir uma brecha perigosíssima - talvez mesmo fatal: a de que a monarquia se rege, também, por questões de popularidade. Isto é, que A é rei/rainha, não porque é o/a primeiro/a na linha da sucessão, mas porque o povo (cuja opinião, não tendo sido expressa em urnas, é interpretada pelos politólogos) acha B mais capaz. Acontece que ninguém definiu o que é ser-se capaz. A apreciação é subjectiva.
O que salva a monarquia inglesa, como me dizia (ou me citava, não sei) ontem um amigo, insuspeito de anglofilia, depois de ter visto o príncipe Carlos a discursar perante a Casa dos Comuns e a Casa dos Lordes: este é que é o Reino Unido a sério, incluindo o cerimonial. A conclusão de tudo é que "a tradição em Inglaterra, é maior do que a gigante Isabel II. E esta predominância é extraordinária. O Reino Unido será eterno enquanto esta tradição for assim, com esta força e imposição." E a tradição é, salvo circunstâncias muito evidentes, respeitar a linha da sucessão. Por isso William nunca poderia ser Rei agora.
A propósito de cerimonial não resisto a citar-me a mim próprio, tirado de um texto que escrevi em Abril de 2022.
A monarquia inglesa, plena de tradições e costumes, é, também ela, um esplendor de ritos. Num dos episódios da série Crown, de que já aqui falei, o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. À medida que a cerimónia se desenrola o Duque explica o que se passa, e o que está por trás de cada gesto. Nota-se nele conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista. A um dado momento um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo, e ela desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta por que razão a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos.
Quando a tradição acabar muito se acaba com ela.
JdB
Em vida eu fui o bêbado da vila;
quando morri o padre negou-se a enterrar-me
em solo sagrado.
E isso acabou por ser para mim uma sorte,
pois os Protestantes compraram este lote
e enterraram aqui o meu corpo,
junto à campa de Nicholas, o banqueiro
e de Priscilla, a sua mulher.
Considerai, ó almas prudentes e piedosas,
como a vida, contra a corrente,
traz honras funerárias a quem viveu na humilhação.
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003
EVANGELHO - Lc 15,1-32
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximaram-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Quem de vós, que possua cem ovelhas
e tenha perdido uma delas,
não deixa as outras noventa e nove no deserto,
para ir à procura da que anda perdida, até a encontrar?
Quando a encontra, põe-na alegremente aos ombros
e, ao chegar a casa,
chama os amigos e vizinhos e diz-lhes:
'Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida'.
Eu vos digo:
Assim haverá mais alegria no Céu
por um só pecador que se arrependa,
do que por noventa e nove justos,
que não precisam de arrependimento.
Ou então, qual é a mulher
que, possuindo dez dracmas e tendo perdido uma,
não acende uma lâmpada, varre a casa
e procura cuidadosamente a moeda até a encontrar?
Quando a encontra, chama as amigas e vizinhas e diz-lhes:
'Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida'.
Eu vos digo:
Assim haverá alegria entre os Anjos de Deus
por um pecador que se arrependa».
Há duas semanas, um post no Linkedin sobre a TAP - especialmente sobre um acontecimento com troca de aviões, que foi noticiado nas televisões - gerou, quase de imediato, mais de 100 comentários. Os campos eram ferozmente opostos: a TAP como uma companhia má versus a TAP como uma companhia boa. Falamos do tempo actual e não falamos de segurança de voo. Eu sentei-me claramente na bancada dos que acham a TAP uma companhia má. Na minha avaliação não entra a componente sustentada no raciocínio: o que a TAP devia ser para aquilo que nos custa. Avalio a TAP por aquilo que é.
Um dos problemas que eu tenho com a TAP é a memória. É diferente avaliar a TAP quando se viaja na companhia há quase 50 anos ou avaliar a TAP quando se viaja na companhia há 10 ou há 15 anos. Também é diferente avaliar uma companhia aérea (qualquer que ela seja) quando se conheceu o que era a realidade das viagens aéreas há 40 ou 50 anos.
Há 50 anos o turismo era uma actividade de elites. Embarcava-se com uma roupinha mais composta, a profissão de assistente de bordo estava envolvida numa aura de beleza e glamour. Os bilhetes de avião eram caros e o serviço a bordo (na TAP, muito em particular) era de excelência: aperitivo, talheres de metal e copos de vidro, ementa em papel de boa gramagem, opção de peixe ou carne, refeições quentes e possibilidade de um digestivo. Não falo de longo curso - esta era a realidade numa viagem Lisboa - Londres. E voos nem sempre cheios, o que não é despiciendo. Foi esta a realidade que eu conheci, a voar na Europa ou em longo curso. A TAP estava seguramente nas cinco (para não ser muito ousado) melhores companhias do mundo.
Hoje o turismo é de massas. A segurança a bordo obrigou ao plástico, o ambiente obrigou à madeira. A necessidade de reduzir custos substituiu a refeição quente por uma sandes má de atum, a necessidade adicional imitou o costume das low-costs: comida paga. A profissão de assistente de bordo perdeu o glamour - hoje serão pouco mais do que empregadas de mesa (com todo o respeito) que circulam entre aeroportos e aviões, cuja actividade principal é servir clientes nem sempre educados. Uma viagem de avião deixou de ser um acontecimento para ser um mal necessário para quem quer ir de A para B.
O que diferenciava a TAP de uma low-cost não era só o preço do bilhete - era também a qualidade dos vários serviços - de embarque e a bordo. Hoje já não é isso as que diferencia. O serviço numa low-cost não engana, já que não podemos esperar mais com aquilo que pagamos. Ora, a TAP não cobra bilhetes de low-cost, mas presta serviço de low-cost: o serviço informativo no embarque é mau (tenho várias experiências), a comida a bordo quase nunca chega. Neste afã de eliminar o desperdício, e ao contrário do que diz o adágio popular, decidiu-se que faltar era melhor do que sobrar. Diz-me uma assistente de bordo (que teve a amabilidade de disponibilizar um copo de vidro para eu não ter de beber vinho com sabor a cartão) que em todas as viagens se pede mais sanduíches. E em todas as viagens faltam sanduíches, porque não disponibilizam mais. Antes sobre do que faça falta é um pensamento a não seguir.
Falando em bom português, o meu problema com a TAP é dois. De facto, vi a degradação (replicada em muitas companhias aéreas) de uma companhia fantástica - maldita memória de outros tempos. Por outro lado, o serviço é mau (e pelo mesmo preço não tinha de ser tão mau), pese embora o esforço de alguns profissionais. De tudo isto safam-se os que começaram a viajar na semana passada - nunca conheceram outra realidade.
Nota final: viajei na TAP 3 ou 4 vezes nos últimos 3 meses. Costumavam pedir-me para responder a um inquérito; deixaram de o fazer, talvez pelo meu tom excessivamente crítico. Qualquer dia eliminam-me o número de passageiro frequente.
JdB
Já aqui abordei este tópico. A cidade mais feia do mundo pode parecer-nos belíssima num momento de enorme felicidade? E a cidade mais bonita pode surgir-nos como horrível num momento de enorme infelicidade? Há algum nexo causal entre o estado interior e a beleza de um local? Não sei, não me lembro de alguma vez ter passado por essa experiência
Cheguei ontem da minha quarta viagem a Praga, como já aqui referi. A informação estatística não tem um propósito vaidoso ou apenas pateta. Serve apenas para evidenciar um ponto de fascínio que se mantém. Em 1982, quando a visitei pela primeira vez, classifiquei-a como a mais bonita cidade do mundo. Viviam-se ainda os tempos da Cortina de Ferro. Quando lá voltei, no princípio dos anos de 2000 – já num momento político totalmente diferente – confirmei a minha apreciação inicial. Em 2019, o carácter de serviço da viagem não me permitiu conformar a impressão, já que passeei pouco e estava focado noutras prioridades mentais. A viagem de agora permitiu confirmar a minha primeira impressão, já com 40 anos.
A classificação de “cidade mais bonita do mundo”, em não havendo critérios muito objectivos ou um júri que faça a apreciação, é totalmente pessoal. Eu elegi Praga, como outros elegerão Paris, Budapeste, Rio de Janeiro ou Lisboa. O que me fascina em Praga? A escala humana da beleza. O passeio por Praga não esmaga, isto é, não há uma profusão enorme de palácios magníficos e imponentes, não há uma sucessão esmagadora de peças arquitectónicas de grande volume. O que me agrada em Praga é, repito, a escala humana. Uma beleza e um equilíbrio muito acessíveis aos olhos e ao intelecto; uma conjugação equilibrada de estilos diferentes mas harmónicos, um enquadramento fantástico com o rio. Uma cidade macia o suficiente, rugosa o suficiente. A cidade mais bonita do mundo...
JdB