30 janeiro 2025

Do amor como ingrediente

Não usarei a expressão sou um ávido consumidor para referir o meu gosto por programas televisivos de cozinha, mas posso garantir que sou um espectador muito regular. Faço-o, não como uma espécie de auto-flagelo (a salivação em frente a um televisor) que compense a minha luxúria, mas como fonte de aprendizagem. Como todos nós, presumo eu, tenho programas de que gosto, programas pelos quais passo com um ar vagamente interessado, programas dos quais fujo como o diabo da cruz. O meu critério não é sempre o tipo de cozinha que é apresentado, mas também a empatia que me suscita o/a cozinheiro/a. Há pessoas que me maçam, outras que me são desagradáveis aos olhos ou aos ouvidos. É a minha noção de estética.

Um determinad@ cozinheir@ terminava o seu programa com uma frase irritante (e não garanto o verbatim): cozinhar é como a vida; é tudo melhor se for feito à nossa maneira. Talvez seja a mesma pessoa que tinha outro pensamento irritante, assente na ideia do amor como o melhor ingrediente numa receita. Por um lado, fazer as coisas à nossa maneira; por outro lado, o amor. Não estou certo do raciocínio, mas parece-me haver aqui uma contradição nos termos: onde é que está o amor numa actividade que se quer feita à nossa maneira?

Derramemos um primeiro olhar sobre o amor como ingrediente, a par dos cominhos, da cebola ou da couve-coração. E olhemos para o amor como factor de diferenciação: há um dever de parcimónia na utilização dos cominhos, de translucidez certa na cebola refogada, de consistência na couve estufada. Mas não há limite definido para o afecto, pelo que se pode - ou deve - colocar q. b. (quanto baste, para quem não domina o jargão) à frente de amor na lista de ingredientes. Assim sendo, a qualidade dos manjares depositados em cima da mesa, ou colocadas a concurso, não depende da perfeição do ponto de estrada, mas da quantidade doseada de sentimento. 

Por outro lado, havendo uma certa arte na feitura de um prato, podemos extrapolar que haverá uma certa arte na pintura de uma aguarela e uma certa arte na composição de uma peça musical. À semelhança do que se passa numa cozinha, o pintor poderá dizer que o factor diferenciador do seu quadro é o amor, não o domínio das cores; e o músico poderá dizer que o factor diferenciador da sua obra musical é o amor, não a entrada dos violinos. A fim de preparar uma futura escola de artistas, sugere-se que, tanto a Escola de Belas Artes, como o Conservatório, incluam no seu curriculum uma cadeira intitulada O impacto do amor na criatividade. A genialidade de Rembrandt ou de Beethoven analisada, não à luz da sua técnica, mas do seu coração. 

Infelizmente - ou talvez não - não é o amor que define um artista, nem é o amor que determina uma obra. Não o perceber é achar que o afecto reside numa vara de arames, num pincel ou num fagote. O pensamento é lindo, mas talvez não seja mais do que possidónio. Como o são algumas coisas que classificamos como lindas. 

JdB

29 janeiro 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 AUSCHWITZ (I) 

No início de Janeiro de 2000, visitei os dois(1) principais campos de Auschwitz: quer o antigo complexo industrial polaco transformado em Campo de Concentração, quer o novo campo Birkenau, celebrizado em filmes e de imediato reconhecível pela tenebrosa linha do caminho-de-ferro, onde gente amontoada em vagões de carga era despejada, para ser eliminada. Logo que ficava vazio, o comboio voltava a rumar a outras cidades europeias, para recolher mais vítimas. Inacreditavelmente cruel! 

Birkenau

O frio cortante naquela planície branca forrada de neve gelada, brilhante e linda, pontuada por árvores esguias de copas verdes e lustrosas, matará em poucos dias os mais débeis. Menos 15ºC é difícil de suportar com agasalhos, fará com aquelas fardas de tecido ralo e frágil. Alguns sobreviventes relatam que o calor asfixiante dos meses de Verão seria ainda mais intolerável, pois a sede devorava-os. 

A paisagem sóbria e altiva em redor de Birkenau não condiz com o inferno ali vivido. Parece afrontosa aquela beleza tranquila num lugar de morticínio. Igualmente imprevista é a quadrícula bem arrumada das casernas de madeira alinhadas geometricamente, com boas proporções e separadas por arruamentos arejados e simétricos, que lembram um retrato vivo dos acampamentos romanos imortalizados na banda desenhada de Goscinny. Só as fotografias de cadáveres dentro dessas casernas e de alguns sobreviventes famélicos junto às portas, não deixam dúvidas sobre as monstruosidades infligidas num sítio calmo e agradável. A clamorosa divergência entre o espaço exterior pacato e a actividade clandestina ali perpetrada dá bem a dimensão do que é a mentira, na acepção mais profunda e tenebrosa, ao esconder sob uma exterioridade inócua (por vezes até atraente) uma realidade pérfida, sempre obscura, sempre avessa a mostrar-se à luz do dia.  

Em contraponto ao célebre e descarado embuste exibido no portão de acesso aos Campos nazis – «Arbeit macht frei» (o trabalho liberta) – outra mensagem foi acrescentada pelos Aliados, para memória futura – a frase atribuída a George Santayana «THOSE WHO CANNOT REMEMBER THE PAST ARE CONDEMNED TO REPEAT IT». Evitar a repetição de tamanho genocídio é o objectivo principal de preservar estes vestígios de crimes com mais de 80 anos. 

É curioso e significativo ter vindo dos aliados anglo-americanos o maior empenho em assegurar o levantamento fotográfico do que restou de Auschwitz, para servir de prova às gerações futuras. E doi constatar a noção de iniquidade que os guardas prisionais teriam do seu trabalho, pelo esforço titânico em destruir o máximo de provas, i.e., de estruturas do Campo, para camuflar o que ali se passara. Quando o Exército Vermelho franqueou as portas de Birkenau encontrou sobretudo ruínas, a começar pelas dos fornos crematórios, cuidadosamente escaqueirados pelos nazis. O maior foi mais tarde reedificado pelos Aliados ocidentais, como testemunho histórico, Mas o forno mais pequeno, onde ardiam os documentos de identidade das vítimas, mantém-se um amontoado de ruínas calcinadas. Para cúmulo das ironias e da crueldade, as tropas estalinistas tinham ordem para levar presos para a URSS quantos encontrassem com vida, desde os alemães aos pobres cativos. 

Nos anos 80, tinha visitado o primeiro Campo de Concentração do regime de Hitler, estabelecido em Março de 1933!, perto de Augsburg e Munique – Dachau. Destinava-se sobretudo a prisioneiros alemães de diversas condições, especializando-se em opositores políticos e, mais tarde, também judeus (cerca de um terço dos aprisionados). Apesar de horrível, não parecia tão sombrio quanto o campo polaco, cuja libertação teve lugar há 80 anos, no dia 27 de Janeiro.  

Se tentasse uma súmula pessoal sobre Auschwitz, lembraria a personificação da mentira que impregna e ressalta subtilmente daquele conjunto, adivinhando-se estar no epicentro do mal ali urdido, entre 1941 e 27 de Janeiro de 1945. Lembraria também o equívoco comum de achar que apenas judeus pereceram em Auschwitz, sendo verdade que aqui foram assassinados às centenas de milhares. Mas além da Cruz de David, mais 8 insígnias eram usadas para diferenciar outras categorias de condenados, como os opositores políticos, em geral, os comunistas em particular, os ciganos, os russos (onde também se misturavam comunistas e judeus), os polacos (sobretudo do clero), os homossexuais, os deficientes, etc. 

Terminada a visita, que foi um murro no estômago, dei-me conta da providencial semelhança das lágrimas com a água salgada dos mares do planeta, pois não há lágrimas suficientes para chorar tanto sofrimento. Felizmente, que quatro quintos da superfície terrestre são oceanos e lagos, que lavam, purificam, choram e exorciza por nós os excessos malignos.  

Lembraria ainda que aquele vestígio de horror, situado nas imediações da magnífica cidade de Cracóvia, persiste apenas como símbolo. E só cumprirá a sua função de alerta, se tivermos consciência de que a(s) Auschwitz(s) da actualidade se deslocou para outras paragens. É essa que urge denunciar e desactivar! 

Talvez o que mais me impressione em Auschwitz e nestes campos de morte seja a capacidade de alguns cativos em vislumbrarem brechas de Esperança e, no limite, de significado numa experiência de inferno. São incontornáveis os testemunhos de grandeza e magnanimidade de Etty Hillesum ou de Maximiliam Kolbe ou de Edith Stein, entre outros, que conseguiram encontrar uma réstia de Amor luminoso e restaurador na e para lá da mortandade que os cercava. Como foi possível não se deixarem submergir?  

Em múltiplos sobreviventes, já todos de provecta idade, sobressai uma coragem e uma vitalidade contagiantes. Um grupo de francesas recentemente entrevistadas pelo Paris Match lembravam o canto militar tradicional gaulês, que lhes deu ânimo. Conhecido por «Chant des marais» foi rebaptizado pelos judeus para «Chant des Deportés». É tocante o volte-face positivo da estrofe final da letra, depois de um longo percurso de luta e de resistência contra um sem-fim de adversidades:  

Todavia, o expoente de bondade na abominação dos Campos de Extermínio, seria encontrar o Perdão das vítimas aos algozes! E encontrou-se, por sinal, junto ao corpo de uma criança morta no Campo de Ravensbruck (Norte da Alemanha), que vitimou perto de cem mil mães e filhos. A mensagem é um supremo acto de perdão e espalhou-se pelo mundo sob a designação de «Ravensbruck Prayer»! Que maravilhoso ser humano terá sido o seu provável autor, de tenra idade e já dotado de uma vontade sobre-humana de perdoar, muito para lá do que está ao alcance da humanidade, pelas suas forças. A oração é um autêntico milagre de plenitude e de elevação humanas, comovente e deslumbrante:  

«LORD
  Remember not only the men and women of good will 
  Also those of ill will. 
 But do not only remember the suffering they have inflicted on us. 
 Remember the fruits we have brought,
 thanks to this suffering – our comradeship, our loyalty, our humility, the courage, the generosity, the greatness of heart which has grown out of all this. 
 And when they come to judgment, 
 let all the fruits we have borne be their forgiveness.
 Amen»

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1)  Havia um terceiro campo, mais distante – o Auschwitz III ou o “Monowitz” – onde funcionavam as fábricas, que laboravam com mão-de-obra escrava, assegurada pelos prisioneiros mais robustos. Eram poupados à câmara de gás para produzirem borracha sintética e outros produtos úteis ao esforço de guerra nazi. Muitos dos sobreviventes provêm deste grupo, como é o caso do filósofo Elie Wiesel. 

28 janeiro 2025

Gente que vou conhecendo *

Chamava-se Hortense e era famosa no casino, onde servia tostas mistas e outras iguarias, pelos seus atributos físicos. Quando dava a volta numa fiada de máquinas surgia, em primeiro lugar, um peito generoso e arrogante; segundos depois surgia ela, com um nariz ligeiramente assimétrico e uns olhos pestanudos; quando o rosto desaparecia noutra esquina, só instantes depois se dava pela sua falta, porque a parte traseira do seu corpo respondia que sim à mesma inquirição elogiosa: generoso e arrogante? A sua vida era esta, cinco dias por semana, com dois de folga para compras parcas e serviço de manicura ao domicílio, porque a vida é difícil e os débitos excedem os créditos. Ao fim de um ano conhecia todos os jogadores das slot-machines pelo nome e, mais do que isso, identificava-lhes as rotinas: as chaves entaladas na ranhura das moedas, o início do jogo a uma hora certa, a fuga horrorizada aos calistos.

Foi numa 3ª feira invernosa que travou conhecimento com o senhor Rodolfo, um homem pequeno e proporcionado, com dificuldades em se fixar. Entre uma sandes de carne assada em pão aparado e uma Sprite natural, o cavalheiro vagueou pelo recinto, escutando os ruídos próprios, pesquisando técnicas, farejando uma sorte em versão tilintante. Hortense deu-lhe uma ou duas sugestões, que foram acatadas com um sorriso. O senhor Rodolfo perdeu tudo e, às três da manhã, perscrutava os bolsos, imaginando que o cotão que lá vivia se transformaria em fichas metálicas. Voltou a perder na semana seguinte, na outra que se seguiu e noutras ainda. Ao fim de seis meses enroscou-se com a menina Hortense, gabando-lhe por igual a generosidade e a arrogância do físico. Devorou-a de beijos como quem se delicia com um triângulo de pão macio. 

Não tinham passado ainda três meses quando o senhor Rodolfo descobriu o que lhe dava tanto azar: um calisto (indivíduo cuja presença, no jogo, é de mau agouro, segundo os dicionários) que fungava em permanência, lhe espreitava as rotinas com sugestões de eficácia e largava placas de caspa para o alcatifado do casino. Mudou de máquina e, não eram decorridos vinte minutos, a máquina soltou os apitos estridentes com que sempre identifica os grandes vencedores. Sorriu para a Hortense, mas, com tantas palmadas nos costados franzinos, faltou-lhe lucidez para ver a sombra que toldou o rosto da rapariga. Hortense estremeceu e recusou o convite para sexo sensual ao som de boleros e de um champanhe que escorreria pelas costas desnudas. Acabou-se, Rodolfo, já não és o mesmo homem

No dia seguinte foram encontrá-la morta no apartamento, com um tiro direito ao coração que a levou sem sofrimento - para além daquele que sempre provoca uma pistola que nos é apontada. Estava vestida, decente, deitada de lado para que os agentes da Judiciária também lhe admirassem a generosidade e a arrogância perfiladas num sossego de morte. Fora coberta com moedas e, aquando da contagem, perceberam que aquele vil metal correspondia com exactidão aos ganhos do senhor Rodolfo. Acabou-se Hortense, já não és a mesma mulher

JdB

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* publicado originalmente a 2 de Fevereiro de 2011

26 janeiro 2025

III Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 1,1-4; 4,14-21

Já que muitos empreenderam narrar os factos
que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram os que, desde o início,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra,
também eu resolvi,
depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens,
escrevê-las para ti, ilustre Teófilo,
para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado.
Naquele tempo,
Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito,
e a sua fama propagou-se por toda a região.
Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos.
Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado.
Segundo o seu costume,
entrou na sinagoga a um sábado
e levantou-Se para fazer a leitura.
Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías
e, ao abrir o livro,
encontrou a passagem em que estava escrito:
«O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque Ele me ungiu
para anunciar a boa nova aos pobres.
Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos
e a vista aos cegos,
a restituir a liberdade aos oprimidos
e a proclamar o ano da graça do Senhor».
Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se.
Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga.
Começou então a dizer-lhes:
«Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». 

24 janeiro 2025

Divagações soltas sobre um mesmo tema

Sempre que me lembro de um determinado escritor - um bom escritor! - vejo-lhe os tiques de arrogância, inveja e maledicência. Também lhe vejo os livros que escreveu e eu li, mas não é isso que vem ao caso. Como acontece a muitas pessoas, um dia foi diagnosticado com uma doença grave e foi beneficiário de uma epifania (na sua imensa sabedoria, o povo diz: deu uma volta de 360º...) traduzida em pensamentos lindos: é preciso ver o melhor nas pessoas, há que estimar o tempo que é finito, vamos dar a atenção que lhes é devida aos pequenos prazeres e às irrelevâncias da vida, e as crianças Senhor / porque lhes dais tanta dor / porque padecem assim..., etc. Um dia, como acontece, felizmente, a muitas pessoas, recuperou a saúde e foi vítima de uma anti-epifania - regressaram os tiques de arrogância, inveja e maledicência. O contacto deste escritor com um certo alinhamento cósmico sábio esteve indexado à competência dos médicos e à eficácia dos fármacos.

***

Como já tive oportunidade de referir neste estabelecimento, para efeitos do meu doutoramento tenho vindo a entrevistar um conjunto alargado de Pais de crianças com cancro. O último grupo - o mais desafiante - era constituído por Pais cujos filhos tinham morrido há cerca de dois ou três anos. Todos eles referem o mesmo: sentem-se hoje melhores pessoas do que eram antes dos filhos morrerem. Não são forçosamente mais esmoleres, mais santos, mais perfeitos, mas sentem, talvez, um olhar diferente sobre a vida, um olhar mais arguto; e desvalorizam o que não é relevante - afinal, passaram por um problema (quase) sem par na existência de um Pai. 

O discurso destes Pais está alinhado com a minha própria sensação, e com a sensação de muitos outros Pais em luto com quem fui falando ao longo dos meus anos de voluntariado internacional: somos diferentes e - que não se veja nisso presunção - sentimo-nos melhores pessoas. É importante ressalvar que estes Pais que eu conheço se dedicam ao voluntariado, não sabendo eu se se dedicam aos outros porque são melhores pessoas ou se tornaram melhores pessoas porque se dedicam aos outros.

***

Ofereço-vos um lugar-comum: a valorização que fazemos das qualidades dos outros (ou das qualidade humanas, em sentido genérico) varia com a nossa idade e circunstância: aquilo que eu valorizava nos meus amigos aos 20 anos, ou antes de 2001 - ano de todos os anos! - não é o que valorizo agora. Tenho uma idade diferente, vivo circunstâncias diferentes. 

A partir de uma determinada altura, comecei a dar importância à gratidão e a usar a expressão pouco consensual: tenho uma dívida de gratidão com... Não vulgarizo a expressão através da utilização excessiva, mas aplico-a a quem me resgatou em tempos difíceis, a quem me abriu os olhos para um mundo diferente, a quem me ajudou a encontrar um sentido para a vida, ou a quem me orientou - no sentido metafórico do termo - a regressar a casa. Também gosto de usar a expressão com quem, não sendo protagonista de nada impactante, se manteve firme e, com isso, marcou a diferença: a transparência em tempos de opacidade, a fidelidade em tempos de traição, a honestidade em tempos de canalhice, a memória em tempos de esquecimento.     

***

Aquilo que diferencia um Pai que perdeu um filho, de um escritor quezilento que passa pelo desafio de uma doença grave é, ironicamente, a indexação à competência dos médicos e à eficácia dos fármacos: o escritor repõe as condições iniciais quando se encontra curado. Um Pai não o consegue - aquilo em que se tornou é para a vida...  

JdB

23 janeiro 2025

like a broken umbrella (in memoriam do nosso rapaz) *

embalado pela chuva minuciosa de Borges,
pela lacrimejante poesia do José Miguel Silva,
(viva o cosmopolitismo poético, viva!)
pelas bátegas de saudades que caem copiosamente,
podia desatar a escrever poemas,
reacender o rastilho que ensopado
deixei muito lá atrás,
nesse tempo em que ainda.

em tua memória e dos teus conselhos,
não o farei, contudo.
lembro, ademais, toda a minha lógica quebrada
que gritava contra a usura do tempo
e a ferrugem dos nossos dias, enquanto tu
me lembravas uma lição básica da vidinha:
nenhum desespero substitui a dor,
antes amplifica-a, até à exaustão.

era outro tempo, outro século,
esse em que nos aconchegávamos, mui masculinamente
encafuados no carro que calhava, queimando sonhos e cigarros,
sonhando as índias que nunca chegaram.

hoje, solitário cavaleiro andante, perpetuo a tua memória,
sabendo que esperas por mim, nesse algures inominável,
a última cartografia absoluta que resta.
estas palavras, sim, estas palavras, eu sei,

são um cenotáfio ridículo erguido na tua ausência,
à falta de melhor – que seria sempre um acto de amor concreto,
tornado agora impossível nesta geometria terrena.
(a minha poesia morreu contigo, penso não raro.)

e é enredado nestas vielas cheias de amargura
que me lembro do teu sonho de menino de teres
toda a colecção Dois Mundos, da editora Livros do Brasil.

não tínhamos dinheiro,
como hoje não nos temos um ao outro,
mas éramos felizes, a sonhar com livros e namoradas e futuros.

embora não o soubéssemos, era sempre de amor que falávamos,
um amor fraternal e desmedido como já não se usa.
ficámos no museu das coisas extintas, querido amigo,

acompanhados por tanta gente outrora vivente
como estas palavras que, daqui a segundos,
me morrerão nas pontas dos dedos, enquanto

enxugo este meu coração-filho-da-outra
mas pai de tanta coisa que felizmente sai à mãe
- ou a uma luminosa e improvável ideia de mãe.

saudades, pá. saudades.

e este nosso telemóvel brother to brother
agora calado para sempre,
bem por dentro do meu peito.


gi.

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* publicado originalmente a 23 de Março de 201

22 janeiro 2025

Poemas dos dias que correm

 O Beijo


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'


***


O Instante Antes do Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
O instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

Mia Couto, in 'Tradutor de Chuvas'

***

Mais Beijos

Devagar...
outro beijo... ou ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!

Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!

Sim, amor..
deixa que se alongue mais
este momento breve!...
— que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
e nos leve!

Judith Teixeira, in 'Antologia Poética'

21 janeiro 2025

Da morte dos trastes

Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um. Mesmo que a vida de uma pessoa tenha sido um desastre, tenha sido destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está naquela vida. Pode-se e deve-se procurar na vida humana. Mesmo que a vida de uma pessoa tenha sido um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode crescer. É preciso confiar em Deus.

Papa Francisco, in Esperança (não garanto a transcrição correcta)

***

Todos nós fomos confrontados com o pensamento interior, ou verbalizado, relativamente a alguém que morreu: era um traste, não faz cá falta nenhuma. Foi um alívio para quem cá fica. Penso que nunca a disse de ninguém, já a ouvi a alguém. Nalguns casos a irritação vem acompanhada de outra ideia: se calhar arrependeu-se à última da hora para garantir que não ia para o inferno. Estas frases, não totalmente desprovidas da mais elementar justiça ou razão, enfermam de presunção mas, também, de alguma lógica cuja discordância é desafiante. 

Em primeiro lugar, não nos compete, na maioria das vezes, ajuizar sobre a falta que fazem os que partem, ou sobre o sentimento com que ficam os seus mais próximos. A menos que todos verbalizem o mesmo, quem somos nós para dizer que a morte de fulan@ foi um alívio para os sobrevivos? A falta que as pessoas fazem às pessoas não estará, penso eu, no domínio das ciências exactas. A História, o nosso conhecimento da espécie humana, ou a literatura assente nalgum realismo, estão repletas de exemplos de pessoas - trastes - que fizeram falta. Admito que, por vezes, sejam motivos misteriosos e, por isso, quem sou eu para afirmar o alívio que a morte de alguém representa? Esta é a parte da presunção que me é fácil denunciar.

Há alguma lógica, no entanto, relativamente à irritação que as pessoas têm quanto aos arrependimentos de última hora. Uma pessoa é um traste uma vida toda e, num repente, quando vê aproximar-se o momento do seu encontro com Deus, decide arrepender-se, temente da Geena, onde o verme não morre e o fogo não se apaga (Mc. 9:47, 48). Faz algum sentido? Há alguma justiça divina neste arrependimento que, para algumas pessoas, não é mais do que um truque malandro? A resposta é dupla: (i) Deus não se deixa enganar... e (ii) há aquela famosa passagem da Bíblia no diálogo entre o ladrão e Cristo, ambos pregados na cruz (Lc, 23:42,43):

E acrescentou: "Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino."
Ele respondeu-lhe: "Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso." 

Podem morrer os trastes - e de alguns sei que o foram uma parte substantiva da vida - mas tento não ser eu a dizer que não fazem falta a ninguém, nem a denunciar os golpes baixos para garantir uma salvação eterna. Não sei o suficiente para ter estas certezas.

JdB 

19 janeiro 2025

II Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – João 2,1-11 

Naquele tempo,
realizou-se um casamento em Caná da Galileia
e estava lá a Mãe de Jesus.
Jesus e os seus discípulos
foram também convidados para o casamento.
A certa altura faltou o vinho.
Então a Mãe de Jesus disse-Lhe:
«Não têm vinho».
Jesus respondeu-Lhe:
«Mulher, que temos nós com isso?
Ainda não chegou a minha hora».
Sua Mãe disse aos serventes:
«Fazei tudo o que Ele vos disser».
Havia ali seis talhas de pedra,
destinadas à purificação dos judeus,
levando cada uma de duas a três medidas.
Disse-lhes Jesus:
«Enchei essas talhas de água».
Eles encheram-nas até acima.
Depois disse-lhes:
«Tirai agora e levai ao chefe de mesa».
E eles levaram.
Quando o chefe de mesa provou a água transformada em vinho,
– ele não sabia de onde viera,
pois só os serventes, que tinham tirado a água, sabiam –
chamou o noivo e disse-lhe:
«Toda a gente serve primeiro o vinho bom
e, depois de os convidados terem bebido bem,
serve o inferior.
Mas tu guardaste o vinho bom até agora».
Foi assim que, em Caná da Galileia,
Jesus deu início aos seus milagres.
Manifestou a sua glória
e os discípulos acreditaram n’Ele.

17 janeiro 2025

Fado perseguição

Ontem a minha tese de doutoramento sofreu um impulso motivacional (expressão muito moderna): de manhã tive reunião com o meu orientador, de tarde com a minha co-orientadora. Em bom rigor não sei se preciso de motivação ou de disciplina: não sei se lá vou com uma frase que estimula - tu consegues, é só quereres - se com uma frase que educa - devias ter vergonha! Todas as razões são boas para se adiar a redacção de uma tese de doutoramento: a faixa de Gaza, uma ligeira tosse que pode ser tuberculose, uma viagem em Novembro que requer planeamento, uma mosca que zumbe ou um cão que ladra, um teclado que evidencia uma nódoa misteriosa. Nada há de mais fácil do que justificar uma indolência chamando-lhe outras coisas, tal como arritmia de vontade, o que quer que isso queira dizer. 

Tanto numa conversa como noutra falámos de temas que quero abordar: luto, fé, morte, silêncio, combate, metáfora, milagres, Deus, tristeza, oração. Não sei se são temas que me perseguem, se são temas que persigo. Podiam responder-me que os temas, com a sua dimensão imaterial, não perseguem ninguém, pelo que me restaria ser eu a persegui-los. Não estou certo disso. Talvez esta imaterialidade me persiga há 24 anos e seja agora momento de qualquer coisa, de que não estou certo. Ou talvez não haja perseguição nenhuma, mas apenas uma companhia que me vai lembrando das coisas importantes, como referem tão bem estes versos de T S Eliot (in The Waste Land)

Who is the third who walks always beside you?
When I count, there are only you and I together
But when I look ahead up the white road
There is always another one walking beside you
Gliding wrapt in a brown mantle, hooded
I do not know whether a man or a woman
—But who is that on the other side of you?’

Se calhar o terceiro que caminha ao meu lado é, também, este conjunto de temas importantes.

JdB

16 janeiro 2025

Em memória de Fernanda Maria (1937 - 2024)

Não passes com ela na minha rua 

Ao fim de tantos anos de ser tua
Amaste outra, casaste, foste ingrato
Vi-te passar com ela à minha rua
Abracei-me a chorar ao teu retrato 

Podia insultar-te quando te vi
Ferida neste amor supremo e farto
Mas vinguei-me a chorar, chorei por ti
Por entre as persianas do meu quarto 

Eu bem sei que me tentas convencer
Mas o que me propões, não é bastante
Se não servi, p'ra ser tua mulher
Também não devo ser a tua amante 

Casaste, sê feliz, Deus te proteja
Não te desejo mal, e tanto assim
Que não tenho ciúme nem inveja
Como a tua mulher teve de mim 

Mas olha meu amor, eu não me importa
Antes que fosses dela, eu já fui tua
Podes sempre bater à minha porta
Mas não passes com ela à minha rua 

***

Ler esta letra com atenção (talvez antes de a ouvir cantada por Fernanda Maria) é perceber uma certa genialidade de Carlos Conde, o seu autor. Em cinco quadras conta-se uma vida - ou um fim de vida: o ciúme, a dor, a dignidade de não ser amante de ninguém. Carlos Conde é impar, basta ler alguns versos de grande criatividade: um amor supremo e farto, o choro entre as persianas do meu quarto, o trocadilho em antes que fosses dela, eu já fui tua, ou a ligação entre porta e rua.

Desaparece Fernanda Maria, e já não há ninguém (parece-me) daquela geração de fadistas. 

JdB 


15 janeiro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 VISTA ALEGRE EM FESTA, RELÓGIOS ANTIGOS E BEETHOVEN

Até 31 de Janeiro, está patente na Medeiros e Almeida uma exposição bem recheada de peças da Vista Alegre (cerca de um milhar), que superabundam no acervo da Fundação, pois Margarida Medeiros e Almeida descendia do fundador da conhecida fábrica de porcelanas e era filha do administrador-delegado da V.A. – João Theodoro Pinto Basto.

O casal coleccionador, que não teve filhos.

Em Junho de 1923, Margarida Rita de Jesus da Santíssima Trindade de Castelbranco Ferreira Pinto Basto (1898-1971) casa-se com António de Medeiros e Almeida (1895-1986), que foi um empresário de sucesso. Aos carros acrescentou, mais tarde a aviação, entrando depois na produção de açúcar e noutros negócios, que lhe deram folga para investir em arte. Assim constituiu uma colecção privada com boas peças e primorosamente expostas na casa aconchegante e bonita onde viveu o casal. 

A exposição temporária toma o diminutivo por que Margarida era conhecida entre os mais chegados – «Coleção da Titita. Vidros & Porcelanas Vista Alegre» – e enquadra-se nas comemorações dos 200 anos da V. A. Terá visitas guiadas (de 30 minutos, sem marcação, admissão por ordem de chegada) nos próximos dias 16 Jan. às 13h30, 23 Jan.  às 18h30 e 30 Jan. às 13h30.  


Conjunto de c. 40 peças de vidro da Real Fábrica da Vista Alegre, realizados entre 1837 e 1846,
com camafeus cerâmicos incrustados, por recurso à técnica de “Crystallo Ceramie”.
Os camafeus apresentam efígies de personalidades nacionais e internacionais conhecidas,
entre artistas, soberanos, políticos, etc.

Uma colecção valiosa do acervo Medeiros e Almeida inclui 600 relógios, em que alguns dos modelos mais emblemáticos mereceram curta-metragens explicativas sobre as histórias imprevistas que guardam, como o artefacto da famosa casa Breguet encomendado pelo general Junot, depois adquirido pelo Duque de Windsor e, em 1964, comprado por Medeiros e Almeida num leilão compreensivelmente renhido. A série intitula-se «LaMontre» e já conta 9 episódios, dos quais três são dedicados a peças da Fundação: LaMontre. (@lamontremag) • fotos e vídeos do Instagram.

A 24 de Janeiro, às 19h00, a Gulbenkian passará em sinal aberto (nas plataformas digitais), o magnífico concerto para piano e orquestra, de Beethoven, conhecido por «Imperador». Será interpretado pelo grande pianista russo Alexander Melnikov e o maestro será o finlandês Hannu Lintu. O programa desse final de tarde inclui também a Sinfonia «Mathis o Pintor» de Hindemith, baseada na ópera homónima, que questiona o papel do artista na sociedade. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 janeiro 2025

D' A Banda como metáfora

A Banda

***

A letra desta música de Chico Buarque (letra que também é dele), tem, como provavelmente muitas músicas, uma dupla leitura. A primeira - mais óbvia e imediata - é a de uma banda que passa por uma povoação, trazendo alegria, transformação e esperança; tudo volta à primeira forma quando a banda se vai embora. A segunda leitura, também óbvia para quem gosta de ver além do desfocado, ou quem gosta, simplesmente, de ser criativo, é que a letra é uma metáfora; e sendo uma metáfora o horizonte que se abre é vasto, quase infinito. Divaguemos:

A letra de A Banda pode ser uma metáfora para o 25 de Abril de 1974, um momento de alegria, esperança e transformação para Portugal que redunda em tristeza, desesperança e imobilismo. 

Parte da letra de A Banda pode ser uma metáfora para o Carnaval, tão bem retratada na Marcha da 4ªfeira de Cinzas, 

Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou  

ou também uma metáfora para o fim de uma feira, tão bem retratada no fado Arraial, da autoria de João Ferreira Rosa

Acabou o arraial
Folhas e bandeiras já sem cor
Tal qual aquele dia em que chegaste
Tal qual aquele dia, meu amor 

A letra de A Banda pode ser, numa última entrada desta possível lista de sugestões, uma metáfora para uma noite de amor carnal: o anúncio (uma promessa de beijo / dois braços à minha espera), a exaltação, a transformação, o êxtase e, por fim, o retomar da rotina rotineira.

Acima de tudo, a letra de A Banda é uma metáfora para o dia seguinte - o day after - e não para o dia anterior, nem para o dia durante. Apesar da toada alegre, sambista (que eu tive oportunidade de dançar numa passagem de ano longínqua e brasileira de 1975, talvez) esta letra é sobre a desilusão das coisas que acabam, que morrem, que desaparecem. Nesse sentido - e só nesse sentido - afasta-se da Marcha da 4ªfeira de Cinzas que, apesar de tudo, tem um final esperançoso

E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz    

para se aproximar do Arraial, que acaba com uma nota de tristeza:

Abro as janelas, ainda cheira a rosmaninho
Vejo-me ao espelho, ainda vejo luto

É disto que fala Chico Buarque, arrisco eu.

 JdB

13 janeiro 2025

Poemas dos dias que correm

 ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito. 

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. 

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. 

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca. 

Konstantínos Kaváfis
Tradução de Jorge de Sena

12 janeiro 2025

Festa do Baptismo do Senhor

 EVANGELHO – Lucas 3,15-16.21-22

Naquele tempo,
o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias.
João tomou a palavra e disse-lhes:
«Eu batizo-vos com água,
mas vai chegar quem é mais forte do que eu,
do qual não sou digno de desatar as correias das sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo».
Quando todo o povo recebeu o batismo,
Jesus também foi batizado;
e, enquanto orava, o céu abriu-se
e o Espírito Santo desceu sobre Ele
em forma corporal, como uma pomba.
E do céu fez-se ouvir uma voz:
«Tu és o meu Filho muito amado:
em Ti pus toda a minha complacência».

09 janeiro 2025

Pensamentos dos dias que correm

 O Início do Conhecimento

Um primeiro sinal do início do conhecimento é o desejo de morrer. Esta vida parece insuportável, a outra, intangível. A pessoa já não se envergonha mais de querer morrer, pede para ser levada da velha cela que ela odeia para uma nova, que só então aprenderá a odiar. Persiste um resíduo de fé durante a transferência se o senhor do lugar casualmente passar pelo corredor, avistar o prisioneiro e disser: «Este homem vocês não podem prender outra vez. Ele vai para a minha casa».

Franz Kafka, in 'Os Aforismos de Zurau ou Reflexões no Pecado, Esperança, Sofrimento, e o Caminho da Verdade (13)'

07 janeiro 2025

Da surpresa *


Velha Deli, Janeiro 2017

Uma conversa ainda com resquícios indianos faz-me abordar o tema: como nasceu o (sor)riso? No fundo, o que me interessa saber é quem / o quê, quando e em que circunstâncias (sor)riu pela primeira vez.

Vou presumir que há inúmeras teorias mas, para o devaneio em apreço, bastam-me duas: (i) o primeiro (sor)riso nasceu, primitivamente, do alívio de uma situação de perigo; (ii) o primeiro (sor)riso nasceu nos animais inferiores que o utilizavam pelo som - o repuxar dos cantos da boca e a exibição dos dentes provocava um ruído que para os outros animais significava "não sou perigoso". 

Como já aqui escrevi uma vez, é pelo sorriso que se estabelece o comércio entre os Homens. Rimos de (ou por causa de), mas sorrimos para. É por isso, por esta ligeira nuance, que acredito que as duas definições acima se referem a manifestações diferentes, embora correlatas: a primeira, a riso; a segunda, a sorriso.

A surpresa - ou uma certa surpresa, ou ainda uma surpresa manifestada de determinada forma - é o equivalente do sorriso, seja na sua versão facial, seja na sua versão verbal, que se desenvolve de seguida. Ou seja, é também a surpresa que estabelece o comércio entre os Homens, porque o comércio é uma troca de elementos, uma permuta de informações, opiniões, sensações ou artigos que determinam uma transacção. Se o sorriso diz ao outro "não sou perigoso", a surpresa abre uma porta: "estou interessado".

Uma troca de bens, serviços, palavras, emoções faz-se através de uma oferta e procura: do lado da oferta, quando alguém quer disponibilizar algo que outro (ainda) não tem; do lado da procura, a inversa do raciocínio precedente. Só me vendem cachimbos se eu não tiver nenhum e estiver interessado na sua aquisição, ou, tendo já muitos, quiser acrescentar ao stock (e um stock é uma colecção não trabalhada). O sorriso significa "pode entrar"; a surpresa (na sua íntima união com o verbo surpreender) significa "vai enriquecer o meu espólio". 

O sorriso estabelece um clima; a surpresa alavanca o clima, colocando o sucesso da troca no interlocutor. Quando nos surpreendemos por aquilo que o outro nos diz ou apresenta ou disponibiliza, estamos a revelar uma certa inferioridade saudável perante outro - descemos para que o outro suba, ou ficamos quietos para que o outro suba. O contrário disto é receber o vendedor de cachimbos com frases repetidas: "já tenho" ou "já tinha visto" ou "tem pouca relevância" ou "é só isto?". Onde quer que estejamos, o outro desce.      

Não sei como, onde e por quem se manifestou a surpresa pela primeira vez. Mas estou certo de ter sido alguém que quis dizer através de um sorriso: "estou interessado." Porque uma voz que não se surpreende é um rosto que não sorri. 

JdB

* publicado originalmente a 6 de Março de 2017

06 janeiro 2025

Dia de Reis

 

Adoração dos Magos [Domingos António de Sequeira (1768-1837), MNAA]


Poemas dos dias que correm

 RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


05 janeiro 2025

Solenidade da Epifania do Senhor

 EVANGELHO – Mateus 2,1-12

Tinha Jesus nascido em Belém da Judeia,
nos dias do rei Herodes,
quando chegaram a Jerusalém uns Magos vindos do Oriente.
«Onde está – perguntaram eles –
o rei dos judeus que acaba de nascer?
Nós vimos a sua estrela no Oriente
e viemos adorá-l’O».
Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado,
e, com ele, toda a cidade de Jerusalém.
Reuniu todos os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo
e perguntou-lhes onde devia nascer o Messias.
Eles responderam:
«Em Belém da Judeia,
porque assim está escrito pelo profeta:
‘Tu, Belém, terra de Judá,
não és de modo nenhum a menor
entre as principais cidades de Judá,
pois de ti sairá um chefe,
que será o Pastor de Israel, meu povo’».
Então Herodes mandou chamar secretamente os Magos
e pediu-lhes informações precisas
sobre o tempo em que lhes tinha aparecido a estrela.
Depois enviou-os a Belém e disse-lhes:
«Ide informar-vos cuidadosamente acerca do Menino;
e, quando O encontrardes, avisai-me,
para que também eu vá adorá-l’O».
Ouvido o rei, puseram-se a caminho.
E eis que a estrela que tinham visto no Oriente
seguia à sua frente
e parou sobre o lugar onde estava o Menino.
Ao ver a estrela, sentiram grande alegria.
Entraram na casa,
viram o Menino com Maria, sua Mãe,
e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O.
Depois, abrindo os seus tesouros,
ofereceram-Lhe presentes:
ouro, incenso e mirra.
E, avisados em sonhos
para não voltarem à presença de Herodes,
regressaram à sua terra por outro caminho.

02 janeiro 2025

Em memória de Adília Lopes (1960 - 2024)

Deus é a Nossa Mulher-a-Dias

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa 

Adília Lopes, in 'Florbela Espanca Espanca'
***
Para um Vil Criminoso

Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe

Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'

01 janeiro 2025

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

 EVANGELHO – Lucas 2,16-21

Naquele tempo,
os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém
e encontraram Maria, José
e o Menino deitado na manjedoura.
Quando O viram, começaram a contar
o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino.
E todos os que ouviam
admiravam-se do que os pastores diziam.
Maria conservava todas estas palavras,
meditando-as em seu coração.
Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus
por tudo o que tinham ouvido e visto,
como lhes tinha sido anunciado.
Quando se completaram os oito dias
para o Menino ser circuncidado,
deram-Lhe o nome de Jesus,
indicado pelo Anjo,
antes de ter sido concebido no seio materno.

Vai um gin do Peter’s ?

 ONDE CONCORDAM LEONARDO DA VINCI, HOPKINS E OS SCORPIONS? 

Sabem tão bem as boas companhias, ao longo da vida! E são tantas, numa exuberância de formas deliciosamente imprevistas. Até de gente distante, no tempo e no espaço, nos chegam palavras de ânimo e de esperança espontâneas, por pura gratuitidade.  Com um pouco de atenção, descobrimos incontáveis gestos humanos que ajudam a iluminar o nosso dia-a-dia, inclusive onde menos se esperam e de épocas recuadas, como de geografias longínquas! 

Para o começo do Novo Ano – do novo tempo inteiro e límpido que se reergue no horizonte da nossa vida – o primeiro dia é dedicado à Paz. A Cristandade juntou-lhe a festa de Santa Maria Mãe de Deus, medianeira e guardiã-mor da Paz. Há bons anos, os Scorpions surpreenderam os milhares de fãs reunidos na Cidade do México, para um concerto memorável, dedicando ao público entusiasmado a composição do brasileiro Herivelto Martins: «Avé Maria no Morro». É uma coincidência curiosa ser interpretada por um grupo de heavy metal alemão a música composta em plena Segunda Guerra Mundial – 1942 –, quando as tropas de Hitler semeavam o terror pelo mundo. A voz cristalina de Klaus Meine, imortalizada em “Winds of Change” e “Still loving you” entre outras, com um domínio extraordinário dos agudos, soa incrivelmente doce nesta ária transposta para a língua falada no país onde actuou a banda de Hannover:  


Letra em espanhol 

«AVE MARIA DEL MONTE …

«Ave Maria del monte preciosita, chiquitita
Es el morro de los negros la mansion
Extraño mundo tan desgraciada y tan sencilla
Ni siquiera una capilla te aprovecha para rezar

Pero si vive en Tierra y Cielo y (cambiara)
Y la noche con su manto cubre las losas que van a amar

Alla se escucha, al fin del dia una plegaria
Ave Maria
Alla se escucha, al fin del dia una plegaria
Ave Maria
Ave Maria
Aunque no tenga capilla, reza la gente sencilla

Ave Maria»

De Herivelto Martins (1912-1992) 

Outra voz penetrante, como a de Anthony Hopkins, oferece-nos uma súmula interpelativa sobre o alcance histórico do Bebé, nascido há dias, em Belém, que se oferece à humanidade como fonte de Paz. O premiadíssimo actor de Hollywood desfia num minuto e meio os múltiplos paradoxos que, pelos critérios humanos, tornam única e misteriosa a figura que mais revolucionou a História, mesmo se considerássemos apenas a dimensão humana de Cristo, sem atender à sua natureza divina. Por que terá sido temido por governantes um rei sem exércitos, e chamado de Mestre, seguido por multidões, embora não fosse reconhecido na hierarquia judaica e menos ainda na romana? Por que foi violentamente invejado pelas elites do seu povo, apesar de não possuir riquezas exteriores e levar uma vida errante, sumamente desconfortável, cuja maioria dos discípulos era pobre e insignificante?  E por que continua, hoje, a ser invocado e seguido um proscrito do Império Romano, condenado à mais humilhante e dolorosa das mortes?... 


Coube ao genial pintor da Mona Lisa uma reflexão imperdível e auspiciosa para inaugurar o Novo Ano: «As mais sublimes palavras de amor, são ditas no silêncio de um olhar.»  Quem melhor do que um pintor da craveira de Leonardo da Vinci (1452-1519) para falar da força ímpar do silêncio, quando é habitado por uma presença de Amor?  Na mesma senda, C.S.Lewis lembrou que a existência humana se eleva e completa, quando ecoa uma grandeza infinita gravada no seu coração: «Não sou eu. Sou só um sinal. Olha! Olha! Quem te lembro?» Na gruta de Belém, os pastores e os Magos encontraram a resposta… igualmente ao nosso alcance. FELIZ 2025!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

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