30 abril 2009

A mala Louis Vuitton

Olhos negros de veludo. Olheiras românticas, naturais, nariz perfeito, cabelo grosso apanhado na nuca, pele translúcida. Mulher fatal, mulher menina, que conhece os seus encantos e que os usa alegremente, a seu belo prazer. Mancebos e homens, todos caíam aos trambolhões quando o seu olhar se cruzava com o dela. Olhar expressivo, trocista, divertido mas, tantas vezes, longínquo, introspectivo, intenso. E que gozo era vê-la rir alto, abrindo a boca grande e bem desenhada. Confiança transbordante, inteligência rápida, cortante, modos ora elegantes ora bruscos, nervosos. Adivinhava-se-lhe um temperamento forte e indomável. Ou talvez não … talvez tanta graça ocultasse muita fragilidade e uma fuga para a frente de um passado de dor, de dias e noites solitárias, ela com os seus livros, os seus livros com ela, tentando abstrair-se duma infância e juventude sem amor ou atenção.

Quem era ela afinal? Aparecia todas as noites, qual rainha, no pub barulhento e cheio de fumo. Do fundo da sala cheia, duma juke box que mais era uma velharia, arfava uma música country que ninguém ouvia. Sofás puídos, bancos forrados a couro encarnado, cervejas douradas brilhando à luz das lanternas baixas. A atmosfera era pesada mas animada, ao gosto da gente das redondezas. Gente ruidosa, mal lavada, rude e honesta, tal era a população que vivia naquele pedaço de terra fria e brumosa. Por isso se encantavam todos com os seus modos, a sua elegância e a sua aura de mistério.

Passava os dias em casa e as noites no pub, falando com todos e com nenhum, alegrando-os com a sua presença requintada, o seu olhar sedutor e aquele riso de perder a cabeça! Nunca explicava o que fazia durante o dia e muito menos as suas origens ou passado.

Chegara certa manhã, em meados de Setembro, com uma enorme mala Louis Vuitton, já velha e coçada, um casaco de astracã e um chapéu de aba larga e arredondada. A primeira coisa que fez foi dirigir-se à mercearia local, que sabia de todos os quartos para alugar. Alugara um com vista rasgada para o porto de mar e para uma pequena escola primária. Não tinha qualquer luxo, mas era agradável na sua simplicidade e tecidos desbotados.

E assim se passaram 3 meses. Em casa durante o dia, à noite no pub. Não saía, não se encontrava com ninguém. Havia quem a tivesse visto à janela do quarto, olhando demoradamente o recreio da escola primária. Mas para além disso, nada. Sempre elegante, fina, bem maquilhada. Só tinha dois vestidos, de corte impecável, ainda que antiquado, que usava alternadamente, e que lembravam tempos mais fartos. Se calhar tinha esbanjado a fortuna em casinos. Era o que constava …

E um belo dia, já próximo do Natal, apanhou o primeiro autocarro da manhã, era ainda noite, e abandonou a povoação sem se despedir de ninguém.

A senhoria, que nunca tinha trocado mais que duas palavras com ela, nem sequer entrado no quarto durante aquele tempo, e que se limitara a preparar-lhe as refeições servidas religiosamente às 8, 13 e 19:30, assustou-se quando o vizinho do lado a informou que tinha visto a sua inquilina na paragem de autocarro antes do raiar do dia. Ainda o homem não tinha acabado de falar, já ela lhe virara as costas, correndo escada acima rumo ao quarto dos tecidos desbotados.

O quarto estava meticulosamente arrumado. Os lençóis da cama usados dobrados aos pés da cama, um pequeno monte de notas num envelope e um bilhetinho azul claro, pousado na escrivaninha, com a seguinte mensagem: Obrigada por tudo. Encontrei o que precisava neste recanto do mundo: sossego, liberdade, convívio com gente sã e despreocupada que me fez rir e voltar a ser eu. Pedia-lhe o grande favor de entregar o que aqui deixei, na mala junto à janela, a uma menina de tranças loiras, alta e esguia, bibe verde às riscas e laçarotes cor-de-rosa no cabelo, que todos os dias via da janela deste quarto. Diga-lhe que encheu de alegria os meus dias tristes. Até sempre. M.

A senhoria, intrigada, voltou-se e deparou com a enorme mala Louis Vuitton debaixo da janela. Lentamente, um pouco a medo, aproximou-se e abriu-a. De tantos nervos, a tampa caiu-lhe das mãos e a mala voltou a fechar-se com um ruído seco. Tentou novamente, agora com as duas mãos. Desta vez a mala abriu-se, revelando o seu conteúdo. Cuidadosamente dobrada e maravilhosamente executada, estava uma colcha de cama em magnífica renda de Bilros cor de pérola.

Então era isso, disse a velhota com os seus botões, aqui fechada a fazer renda… deve ter trazido o baú cheio de novelos em vez de vestidos. Para o que lhe havia de dar ... ele há cada maluco…

PCP

1 comentário:

cris disse...

PCP,

A mulher é a salvação ou a destruição da família.
Ela carrega o seu destino nas pregas do seu manto.
Mas, deu a sua maior riqueza.
Riqueza é o Poder de dar aos outros, sem que nós próprios o tenhamos.
Quantas malas louis vuitton, estam abandonadas pelo mundo à espera de encontrar umas tranças loiras....
Até ao próximo texto. Gostei.

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