17 maio 2009

Casa Fria

Fátima, o caos urbano disfarçado de cidadezinha de interior, conheço como a palma da minha mão. Ignoro os sentidos proibidos e atalho os caminhos todos, talentos adquiridos muito por culpa dos furos e das tardes livres quando, saltado o portão da escola, havia todo um mundo lá fora. Contudo, aceite o desafio de ensaiar sobre Fátima, não vou desperdiçar a oportunidade divagando sobre as muito ricas memórias da minha adolescência mais rebelde, apurada algures entre a minha terra, perdida na serra, e o labirinto de ruas desta cidade. Vamos falar de Fátima, o Santuário.

Lembro-me de ser pequeno, tanto que só a minha testa aparecia no espelho da casa-de-banho, e de Fátima ser o lugar onde se compravam garrafões brancos, de rolha vermelha e cordão de pôr ao pescoço, que se iam encher a uma fonte que tinha uma estátua no meio. Lembro-me do sabor que o plástico de qualidade duvidosa deixava na água. Bebia sempre até ficar embuchado.
Sempre senti um certo fascínio por aquele lugar, pelo eco dos altifalantes, pelo espaço liso, a alcatrão, ideal para andar de skate (porque é que eu nunca me lembro de trazer o skate?), ano após ano, fui colhendo memórias, edificando lentamente um dos poucos espaços onde, avaliando pelo serenar abrupto da alma, posso dizer que me sinto em casa.

Não acredito em milagres, mas essa é outra conversa, mais longa que estas linhas e menos linear que quatro palavras, que se arrastaria por todo o meu entender sobre a Igreja Católica, que vai um pouco além da posição neutra e desinformada que uma afirmação, assim solta, se arrisca a deixar adivinhar. Sabendo isso e, tendo em conta que cresci empoleirado no muro que separa aqueles que, à fé, à esperança ou ao desespero, peregrinam até Fátima, dos que têm lojinhas de santos que brilham no escuro, restaurantes medíocres, pousadas bafientas ou hotéis cheios de janelas quase sempre vazias, vamos ao que me leva a ter a Cova da Iria em tão boa conta.

Foi de mochila às costas e debaixo de chuva, numa das incontáveis actividades escutistas que fiz a Fátima, que recordo ter notado aquele vento frio. Não que fosse a primeira vez que o sentia, a bem dizer, estava gelado desde que tinha saído à rua, tão cedo que ainda não se via o sol, mas foi nessa manhã que, em jeito de conclusão, decidi que era aquele vento que dava o empurrãozinho que faltava para fazer daquele espaço um dos meus santuários.

O frio deixa-nos surpreendentemente conscientes do nosso corpo e, regra geral, as adversidades são assim, alertam-nos para pormenores nossos que, caso contrário, não reconheceríamos. O santuário é, em todas as ocasiões, em todas as celebrações, um espaço notável, cheio de emoções, de uma intensidade única, mas foram as manhãs frias, as mais vazias, que me cativaram. É por isso que, independentemente das minhas crenças religiosas, sinto Fátima, o santuário, como um lugar livre, não só das hipocrisias que muitas vezes lhe são apontadas, como de todos preconceitos de quem não crê, uma casa onde podemos encher o coração de coragem e a alma de vontade, com um abraço sublime do vento da serra.

Zé-do-Telhado

3 comentários:

maf disse...

tem graça, habituei-me de tal forma a olhar Fatima como um lugar "onde se vai", um lugar santo onde está NªSra., que nunca me tinha passado pela ideia vê-la nesta perspectiva de aldeia ou cidade, onde pessoas vão à escola, vão à farmácia, namoram, trabalham, tiram a carta de condução, etc... Obrigada Zé, por me dar uma nova perspectiva de Fátima. Doravante, acho que vou ter ainda mais ternura por aquele lugar.

Anónimo disse...

Hum... quem será este ZdT? Tenho cá uma ideia... Pictórico a escrever, não há dúvida... Hum.... Rita F

ZdT disse...

Maf, Fátima é, como o são todos os lugares do mundo onde alguém guarda um cantinho a que chama casa, a sua gente. Certo que é o Santuário que nós tão bem conhecemos e, à nossa maneira, acarinhamos, no entanto, apraz-me dizer-lhe que vale a pena conhecer as pessoas, conhecer as instituições de apoio social (de todos os tipos) que escolheram Fátima como sede, conhecer ao ponto de ver além do Santuário e, sobretudo, além do tal "caos urbano" periférico.
Correndo o risco de ser me repetir, Fátima é, sem dúvida, um lugar especial.


Rita F, temo que apenas nos tenhamos cruzado, sem nos apercebermos, enquanto nos deleitávamos com algum dos textos com que o JdB nos tem brindado diariamente. =)

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