04 maio 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia do nascimento de Stanley Ho, o grande mecenas do jogo

O Dr. Guimarães e Costa é um homem educado, bonito, com uma figura que deixa marcas por onde passa: alto, relativamente magro, um cabelo castanho penteado para o lado, umas mãos esguias e finas em cujo dedo anelar desponta um anel de brasão discreto. Veste-se de uma forma impecável – não de acordo com a ditadura da moda, mas segundo um padrão clássico e intemporal.

Desde que surgiu, pela primeira vez, na Fábrica da Ilusão, que foi cobiçado pelas raparigas, que suspiraram desejos umas às outras. Dirigiu-se àquelas com quem se cruzou num cumprimento simples, despreconceituado, convicto de que por vezes é a pessoa que dignifica o trabalho. Levantou-se do sofá para saudar a Dra. Clara, não sem antes ter abotoado um casaco espinhado verde-seco que lhe assentava particularmente bem. Deu-lhe um aperto de mão forte, sorridente e genuíno.

Ao contrário do que é habitual, a Dra. Clara não indicou nenhuma rapariga. Conversaram ambos no gabinete ao som de uma música suave e de um gin tónico, enquanto o sol se punha, grande e alaranjado, com um vagar de câmara lenta.

- O Sr. Doutor volta cá para a semana. Depois falamos, Amália.

Nos corredores, pelos cantos, no resguardo dos quartos, cada uma das raparigas imaginava-se com o Dr. Guimarães e Costa, administrador de um banco privado, que ainda não chegara aos 60 anos e que descendia de uma nobreza relativamente recente, mas que lhe dera mais ensinamentos do que privilégios.

O cavalheiro regressou na data aprazada e tinha à sua espera a Joana Maria, uma rapariga lisboeta, bonita, alta e esguia, dona de uma elegância natural revelada pela forma de andar, de se sentar, de afastar os cabelos dos olhos, de conversar com os clientes. Apesar da sua licenciatura em Farmácia tinha concorrido ao Corpo Diplomático depois de meses insanos de estudo e pesquisa, persistindo contra uns pais que teimavam em deixar-lhe um estabelecimento nas avenidas novas.

- Quero conhecer o mundo, não vender aspirinas -, respondera-lhes, determinada numa independência e vontade de voar que eram incompatíveis com uma placa na qual o seu nome apareceria por baixo de uma designação importante mas limitadora: directora técnica.

O gestor chegou-se ao balcão e perguntou se podia fazer alguma coisa pelas minhas deficiências físicas – a cicatriz no olho e o defeito na perna. Fê-lo por uma mistura de educação, simpatia, vontade genuína de ajudar o próximo. Quando lhe agradeci, declinando a oferta, não insistiu, e pediu com uma voz suave e grossa:

- A Sra. D. Amália não tem por acaso cartas de jogar? Esqueci-me das minhas em casa e faziam-me falta.

Entreguei-lhe uma caixa com dois baralhos e, à medida que o via desaparecer de braço dado com a futura diplomata, dei por mim a fantasiar aquele casal, algo que nunca tinha feito. Em primeiro lugar, imaginei-os juntos, na caminhada de uma vida conjugal, a rondarem entre instituições bancárias e embaixadas asiáticas, impressionando quem os visse pela beleza do conjunto, o ar distinto de ambos, a diferença de idades a acrescentar um ar misterioso àquela relação.

Acordei deste devaneio e fixei-me naquilo que seria mais provável, e que se passaria quarto adentro entre a Joana Maria e o Dr. Guimarães e Costa. Algumas cartas numa mesa, regras bem definidas para um strip poker: quem perde a mão vai-se despindo com uma lentidão lasciva e perturbadora. Uma trinca vence dois pares e é uma camisa de que alguém se despoja, revelando a quem ali está um tronco ainda forte, resultado de jogos de ténis duas vezes por semana; uma sequência ao rei derrota uma asa de mosca e há um peito firme que se desnuda, mostrando uma pele escura que contrasta com marcas eróticas de uma brancura nívea. Mais uma mão, mais cartas que se revelam, mais vencedores e vencidos, mais risos, mais não sei o quê atirado com uma gargalhada para um canto do quarto. Um beijo aqui, um afago ali, um bluff desmascarado, dois corpos que se unem e que se agitam, sensuais, ao ritmo do desejo. Um rei, um ás, um oito, cartas alinhadas numa mesa em que o erotismo vence tudo, devora tudo, desde a dimensão da diplomacia económica ao crescimento do crédito mal parado. Mais cartas, mais mãos, mais surpresas, e uma nudez que caminha sem retorno na direcção da apoteose.

Acordei desta fantasia para receber, das mãos do distinto Dr. Guimarães e Costa, uma caixa de plástico duro com dois baralhos de cartas Kem. Sorriu-me, amável e educado como sempre, o casaco espinhado verde-seco abotoado, como mandam as regras quando um cavalheiro conversa com uma senhora:

- Sabe, Sra. D. Amália, digo isto sem qualquer espécie de vaidade pateta por quem sou, mas o facto é que não tenho dificuldade em encontrar parceiras para estas aventuras do sexo. Para um homem descomprometido e com algumas características há, de facto, algum embarras du choix. Mas a verdade é que não encontro ninguém com quem jogar crapaud suíço. A Joana Maria, para além de uma beleza elegante e sem rival, joga magistralmente. Confesso que não sei onde aprendeu. Talvez para a semana me veja obrigado a reservar duas horas, para irmos à desforra e ao desempate, se for caso disso.

Sorri-lhe e despedi-me. Senti a frustração natural de uma fantasia própria que se desfaz num vendaval de realidade. E o strip poker? E a magia da roupa que se tira ao ritmo das cartas que se voltam? E a nudez crescente, a imaginação, o fullen revestido com um aroma de volúpia?

- Está lá, Marco? Sim, sou eu, Amália. Jantas em casa esta noite? Óptimo! Levo um baralho de cartas. Vais ver que te divertes.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS


3 comentários:

Ana CC disse...

Agradavelmente desconcertante! Isto está a tornar-se num caso sério. Erotismo e suspense. Aposto que já há montes de leitores, à espera das cenas dos próximos capítulos. Até para a semana.

cris disse...

MTS,
A solidão é terrível, a Amália pelo menos tem o Marco.
Bom texto.
Até para a semana.....

Anónimo disse...

Ana CC: Obrigado pela visita e até para a semana, para o erotismo e suspense possíveis.

Cris: agradecimento semelhante. Se calhar todos nós somos uma "Amália" e todos nós temos um "Marco". Às vezes é preciso saber encontrá-lo, talvez dentro de nós.

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