11 maio 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de todos os sonhos

É educado e simpático, mas talvez seja das pessoas mais feias que tenho visto. O Sr. Pompeu da Silva, dono de uma cadeiazita de tabacarias em vários centros comerciais, obedecendo todas ao lema

à tabacaria Pompeu, quem lá vai sou eu

é profundamente inestético. Eu explico: altura média, cabelo preto pintado, uma testa baixíssima quase integralmente tapada com uma gaforina que lhe nasce na intersecção das duas sobrancelhas, que são pouco mais do que um tufo corrido de lado a lado dos olhos, praticamente sem separação. Vítima provável daquilo que o povo chamaria bexigas doidas, tem a face marcada por pequenos sulcos, que lhe ampliam a fealdade. Porque o adágio popular

não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe

está longe de ser uma verdade permanente, tem um olho de cada cor. Os meus dois - castanhos escuros e que a terra há-de comer - ainda lhe viram duas orelhas grandes, com tufos de pilosidade que se projectam negros e compactos dos ouvidos. De facto, não é vulgar um homem concitar, em si, uma dose tão grande de feiura.

Há pessoas cuja entrada nos sítios se não faz anonimamente, mas que provocam, pelo contrário, uma onda qualquer – seja de espanto, de fascínio, ou de repulsa. O Sr. Pompeu da Silva levou, seguramente, a primeira e a terceira hipóteses: ao pasmo seguiu-se a aversão. Estou certo de que na mente de todas as raparigas perpassou uma ideia:

independente dos prémios associados à satisfação do cliente, que não me caiba a mim…

A Dra. Clara, ao contrário do que é costume, pediu-me logo:

- Amália; importa-se de encaminhar o Sr. Pompeu da Silva ao meu gabinete? E traga-me dois cafés, se não se importa. Traga também um pratinho com pastéis de nata.

Ainda não tinham passado dez minutos e já ambos saíam sorridentes, como quem encetou uma negociação curta, porque as partes se entenderam numa cordialidade que se antevia improvável. O Sr. Pompeu sacudia um pedaço de massa folhada de um casaco roxo, com fios de um doirado quase imperceptível, e sorriu à indicação que me foi dada num tom de voz afável, mas que não admitia discórdias:

- A Eduarda, se faz favor.

Vi o cliente seguir para o quarto indicado, deixando um rasto de roxo e dourado, o que não deixava de ser estranho. Uma hora depois saía de braço dado com esta operária da Fábrica da Ilusão a quem ofereceu dois beijos ternurentos e um desejo:

- Se calhar até daqui a um mês…

A Eduarda encostou-se ao balcão, passou a mão pelo cabelo e pelos lábios e percebi que se recolhia numa recordação breve.

- Digo-te, Amália. Há muito tempo que não tinha uma hora de prazer tão boa, tão desafiante, tão sensual. O Sr. Pompeu é um amante como nunca vi. Não quero entrar em pormenores, como perceberás, mas tem umas mãos mágicas, se me é permitida a expressão. Não houve sítio do meu corpo que não me tivessem afagado, não houve local que os seus dedos não tivessem percorrido, como se fossem um explorador que quer conhecer tudo de um terra desconhecida. Alternou a ternura mais suave com o desejo quase violento; as suas mãos afagaram o cristal delicado mas agarraram a rocha dura. A sua boca. Ai, Amália, nem te digo. Nunca vi nada assim, podes crer. Ainda estou a tremer… Sabes qual é o mal?

- Diz, Eduarda.

- Gostei tanto que temo achar que os outros são de menor qualidade. Vou ficar um mês desesperada à espera do cavalheiro. Será que aguento? E tu, diz-me, o que achaste dele?

Tive dois segundos para tomar uma decisão. Ou lhe emitia a minha opinião sincera - que era demolidora -, ou reforçava a convicção da rapariga. Porquê desiludi-la com um juizo cru, pouco motivador – talvez mesmo desmoralizador? A franqueza é uma qualidade ou uma característica? É para se exercer sempre, ou com parcimónia, como uma erva aromática forte e dominante?

- Olha Eduarda, deixa-me dizer-te o que penso. O Sr. Pompeu da Silva é um homem muito bonito, com charme, dono de alguma sensualidade misteriosa. De facto, olhei para a boca dele, bem desenhada, e para as mãos, que aliam a delicadeza à força, e não tive uma dúvida de que te irias encantar. Na realidade a Dra. Clara acerta quase sempre. Há nela um sexto sentido que é fundamental - para além de invejável.

- Obrigado, Amália. Foste muito simpática.

Olhei para a rapariga e pensei que nuns olhos que não vêem pode haver um coração que se fascina. Foi isso que aconteceu com a Eduarda, a única invisual a trabalhar nesta Fábrica da Ilusão.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

7 comentários:

Ana CC disse...

Não há dúvida que os olhos nos enganam. Há sensibilidades, compatibilidades, e promessas de futuro que o nosso olhar não vê, nem ouve. Deixamo-nos controlar pelos padrões mínimos e aceitáveis, por aquilo que "agrada ás vistas" e lá vamos nós, perdendo o rasto, a quem muitas vezes nos segreda ao ouvido e que, independentemente das nossas medidas, gosta realmente de nós. Se eu fosse invisual, talvez estivesse na Austrália, ou em Sintra. Parabéns, mais uma vez suave, musical e destabilizador.

MTS disse...

Ana: obrigado pela visita. Haverá sempre algum mistério entre aquilo que os olhos vêem e o que o coração sente. Às vezes, nem o próprio sabe. Austrália? Sintra? Tudo bons destinos, desde que não fiquem outros interessantes pelo caminho.

cris disse...

MTS,

A descrição do Sr.Pompeu, é perfeita, conheci algumas personagens assim, e curiosamente sempre atrás de um balcão das velhas lojas da Baixa Lisboeta, ou da Av de Roma.
Para este quadro ser perfeito, só lhe faltava o anel com a libra de ouro, e a unha do dedo mindinho comprida.
Mas falando a sério, temos sempre a mania de julgar as pessoas pela maneira como se apresentam ou falam, mas, por vezes as maiores lições de vida e a grande sabedoria, vêm das pessoas mais puras de coração.
Talvez de houvessem muitos Srs. Pompeus, o Mundo seria......
Até para a semana....

MTS disse...

Cris: agradeço a visita. Não me lembraria do anel (talvez duas iniciais floreadas) mas seguramente que a unha comprida faz falta. Questiono-me se precisamos de mais "senhores pompeus" se de mais "eduardas". Porque nuns olhos que não reparam pode haver um coração que se fascina.

Anónimo disse...

Diz-se que o maior cego é aquele que não quer ver; e quando o cego também não quer ver como se diz? Parabéns! RF

MTS disse...

RF: sempre uma alegria vê-la por esta lanterna vermelha. A Eduarda, estou certo, terá dito: sou ceguinha mas feliz...
Um cego que não quer ver? Talvez prudente, como o que se vê por aí...

maf disse...

Num mundo ideal, todos deveriamos ser Eduardas, mesmo não sendo invisuais. Diz o povo "quem feio ama, bonito lhe parece". Uma nota de louvor à nossa Amália, ela sim, enxergou mais longe e, por opção, cegou perante a fealdade do cliente.
Parabéns MTS, excelente

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