01 outubro 2009

Deixa-me rir...

Era meia-noite de uma noite deliciosamente perfumada de Julho. As janelas, abertas de par em par sobre uma varanda de pedra que se prolongava para o jardim de buxo, convidavam os mais velhos a descansarem do barulho que se fazia sentir dentro do palácio, e os mais enamorados a momentos de maior intimidade, longe dos olhares curiosos. “Mas que calor que está lá dentro”… dizia uma rapariga, empoleirada nuns extraordinários Manolo Blatnik, ao descer os degraus de pedra a caminho das sombras e da frescura dos bancos de jardim.

Dentro do velho palácio, espelhos antigos, de vidros manchados e molduras sumptuosamente douradas, decoravam as paredes de um verde jade um pouco fanné da extensa sala de baile. Tecto pintado com frescos e três enormes candelabros venezianos iluminavam a sala, roubando reflexos dourados aos belos e trabalhados cabelos das convidadas. A música tinha sido pensada ao pormenor e o DJ de serviço marcava o ritmo das músicas com a cabeça, satisfeito por ver tantos corpos dançando e rodopiando livremente ao som de canções de décadas em que o ritmo era espontâneo, descontraído e alegre. Tinha sido uma ideia engraçada da dona da casa pensava ele, enquanto mudava o vinyl no seu gira-discos de estimação, esta de organizar uma festa com músicas dos anos 50 e 60, décadas que ainda por cima lhe eram particularmente queridas. Gira também a ideia de pedir aos convidados para se vestirem à época, incorporando o espírito do swing, do rock & roll, do boogie woogie, da pop … e giríssima a ideia de ter pegado na lista telefónica e de, aleatoriamente, ter convidado 200 desconhecidos… semelhante ideia, semi extravagante no enquadramento de um grupo muito agarrado às convenções sociais, estava a revelar-se o maior sucesso!

A dona da casa estava feliz com o que via. A casa, já um pouco decadente, parecia ter voltado aos seus tempos áureos … os risos, o tilintar dos copos, o brilho dos tecidos, o menear alegre dos corpos, a brisa carregada do aroma do jasmim, e a música … sempre a música … faziam-na vibrar e pensar que tinha de organizar mais festas como aquela. Dinheiro não lhe faltava, sendo única herdeira de uma grande fortuna. Para além disso tinha tempo, dezenas de amigos, criatividade, ousadia qb e um gosto sem fim por dançar. Era tempo de enterrar o passado e o profundo luto interior que sentia há muitos e muitos anos. Desde que os pais tinham morrido e que o marido, ao fim de 2 anos de um matrimónio feliz (assim o pensara ela), a abandonara com requintes de malvadez e uma insensibilidade absoluta. Tinha, desde então, mergulhado no mais profundo desespero e numa total ausência de gosto pela vida que nem os inúmeros convites dos amigos e a presença doce e calmante da Emília, que a vira nascer, conseguiam alterar. Não que os outros avaliassem o seu verdadeiro grau de devastação interior. Nunca fora particularmente comunicativa e, nos últimos anos, tinha vindo a aperfeiçoar o seu gosto pela arte da representação. Sabia que os outros a sabiam triste, mas daí até suspeitarem que tinha um buraco negro no lugar do coração ia uma grande distância ….

Foi então que o seu olhar se cruzou com um outro que, pela expressão, já devia estar a olhar para si há algum tempo. Numa fracção de segundos inexplicável, ou só explicável por quem passou pelo mesmo, apercebeu-se que havia um homem alto, moreno, esguio, com uma camisola de gola alta azul escura e um copo de whisky na mão que a olhava com a intensidade com que a tinham olhado noutros tempos, quando ela era uma jovem mulher cheia de vida e curvas exuberantes. De repente, tudo à sua volta se transformou numa espécie de espiral faíscante de luz, cor, música e confusão. E a música, sempre a música … parecia cada vez mais alta…

Sem forças, suores frios a percorrerem-lhe as costas, sentia as pernas a cederem e uma tontura gigantesca a formar-se … até que uma mão forte e os acordes de uma canção infinitamente melódica e romântica a salvaram de cair, desamparada, no xadrez de mármore brilhante do seu salão de baile: “Au premier temps de la valse, je te voi et tu m’aperçois …


PCP

5 comentários:

DaLheGas disse...

PCP, que saudades tinha de um conto assim. À sua, Senhora!

Anónimo disse...

Muito querida, DaLheGas. Sabe, li muitos romances na minha juventude ... obrigada. pcp

Anónimo disse...

Hoje imaginei esta história no Palácio do Freixo, por acaso, mesmo por acaso hoje inaugurado, acabei de saber.Lá estão os ingredientes todos - o salão barroco, o jardim, e mais o Douro. Veio-me à memória uma festa lá há uns 2 anos numa rara noite quente do Porto.
B deA
http://www.pousadas.pt/historicalhotels/PT/pousadas/Portugal/Norte/PalaciodoFreixo/gallery/#/NR/rdonlyres/65A6E191-7192-4527-A0FB-5889B96761B7/0/Freixo_vistario5.jpg

Anónimo disse...

Obrigada A. Por acaso, ao escrever, estava mais a "ver" um filme a desenrolar-se num qualquer palácio, talvez francês ... infelizmente não conheço o Palácio do Freixo. Tenciono lá ir ainda este mês, já que vou ao Porto. Obrigada pela ideia. Bjs. pcp

Philip disse...

Hey pcp, so descriptive, does your CV now include 'writer'? I think I doubled my Portuguese vocabulary just with this one text, so many words I needed to find in my dictionary! It made my head spin "a mille temps"! The song is maybe the first French song I ever heard as a child (my father had the 45rpm vinyl record) except for Frere Jacques... po

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