20 outubro 2009

Trancas à Porta


Subi ao quinto andar do número seis do Largo da Fonte, que é estreito demais para lhe chamarem largo e ainda por cima não tem nenhuma fonte, nem sequer um chafariz, ainda que avariado, como os do jardim do meu bairro, que não matam a sede mas apaziguam a vista a quem gosta de ver a rua arranjada. É importante embelezar a nossa freguesia, diz sempre o Aníbal presidente, com a cabeça tão inchada que ameaça explodir o colarinho e, sem abusar da sorte, tudo o que mais se encontre perto dele. É um idiota.

Quando eu era rapazola subia estes degraus duma corrida só, carregado de recados, no tempo em que tu não existias aqui. Quando a Fátinha costureira morreu, uns dias a seguir à minha mãe, fiquei de vir cá recolher os trapos que, além de já não poderem ser remendados, não tinham para quem voltar. O Aníbal amolgou-me as costas nessa semana, Tentar perceber essas coisas vai deixar-te idiota, proclamou ele quando me apanhou a dois terços de uma garrafa de Famous Grouse e de razão entalada entre as aleatoriedades da vida. Penso que, de maneiras diferentes, somos iguais aos olhos um do outro, eu e o Aníbal.

Foi com o fim do whisky e, por coincidência, da comida do gato, que decidi ir até ao quinto andar, que entretanto já era teu, não por querer recolher o resto dos pedaços da mãe que ainda estavam espalhados pela vizinhança, mas principalmente porque, se queria voltar a sair à rua, precisava das Levis 501.

Não toquei à campainha porque, como tentei explicar-te entre objectos voadores de dimensões diversas e arestas ameaçadoras, não esperava que estivesse alguém para me abrir a porta. Tinhas as minhas calças vestidas e os teus pés espreitavam dos dois pares de dobras que tinhas feito para não tropeçar. Nunca tinha visto uma rapariga andar descalça como eu, foi uma agradável surpresa, apesar do estardalhaço. Disseste-me que sorri quando olhei para ti, e que só reparaste que não tinhas parado de lançar coisas quando eu me encolhi no chão. Não te queria acertar, dizias aflita, Mas também, porque é que entraste assim aqui em casa, continuavas, Mas espera lá, quem és tu?, não esperavas pelas respostas que eu não conseguia dar, que a dor era daquelas que vêm de onde só os homens sabem.

Acabaste por me oferecer um lugar no sofá, onde acabei por perder o tino às horas.

Subi ao quinto andar e, pela primeira vez ao fim de oito meses, não tens a porta entreaberta. Dei a volta à fechadura, como fiz da primeira vez que aqui vim, e não houve nenhum tipo de recepção, nem objectos voadores nem braços leves à volta do pescoço, nem sequer o, Estou aqui, que costumavas cantar quando estavas na varanda. Chamei por ti e fiquei à espera de ouvir o segredo dos teus pés descalços, num passo leve e feliz de quem esteve à espera, fiquei parado durante um tempo que não sei dizer. Estas fechaduras já não se usam, disse o Jorge da polícia, Qualquer artolas podia ter entrado, e com a maldade que anda praí...

Tentar perceber essas coisas vai deixar-te idiota, disse o Aníbal da última vez que o vi. Resolvi continuar por aqui, mas não sei se tenho coragem de ir buscar as minhas Levis 501 outra vez.

ZdT

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito. Lembrou-me, na sensibilidade, simplicidade e nas pinceladas de escrita, o dono deste estabelecimento. Obrigada.pcp

Mike disse...

E também ficaria na dúvida. Gostei de ler.

p.s. - pcp? o PCP de quem tenho saudades de ler?

Anónimo disse...

não sei bem a que se refere, mike ... mas PCP era muito grande, muito chamativo, muito associado ao dito ... achei por bem ser mais moderada e passar para pcp ... mas somos a mesma pessoa! Se se refere ao partido, aí já é outra coisa ... muito agradecida pela referência. pcp

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