Sei, desde a segunda classe, que não sou esperto que baste para nada de jeito. A garantia foi da professora Maria Arminda que, entre as reguadas exímias com que comummente me presenteava a seguir aos ditados, cantava na sua voz fininha e pouco reveladora do poder do seu bíceps, Para presidente só vai gente inteligente, hás-de ser varredor, e há-de ser por favor!
Da escola, para além do desenho das letras do meu nome, só me ficaram os números. Acabei por aprender à força de contar as reguadas, que Quem não souber quantas apanhou, vai apanhar a dobrar.
Gosto de pensar em mim como um contador de escadas, de dias e de pessoas. Isso é lá alguma coisa de jeito?, perguntou-me o Sr. Albino padeiro, Se varres, és varredor.
Entre os dias, conto os Domingos, que são quando fico em casa a ver televisão. Ver televisão é intervalar sestas com idas ao armário dos biscoitos e à janela da cozinha espreitar a hora do banho da Marília, filha do Sr. Albino. Antes da minha avó morrer, criei o hábito de sair sempre a tempo de não perder o início da bola em casa dela, de onde voltava sempre com uma marmita cheia de sopa prá semana. Ando mais magro, mas ainda não sei se é por causa do Benfica ou se é pela falta que a sopa tem feito e, ao fim das tardes de Domingo, ainda parece que falta fazer qualquer coisa.
Além disso, faço contas aos dias em que há mais pessoas a pedir licença para descer as escadas que aquelas que não dizem nada, e aos dias em que acontece o contrário. As contas dos dias são iguais às contas das pessoas que me sorriem, portanto.
Os primeiros são uma soma fácil, apesar de eu fazer batota nas contas quando a Marília passa, conto-a quando desce e quando torna a subir, como se fossem duas. As contas aos outros já devem andar enganadas, que eu levei muitas reguadas, mas não a bastantes para números tão grandes.
As escadas, conto-as para me entreter. Nunca tinham sido tantas que eu não soubesse dar-lhe número, tirando na terça-feira, a primeira vez que varri a escadaria que vai da Fonte da Ribeira à Igreja Matriz. Bom dia Quim Janeiro, sorriu-me ela lá de cima, toda flores de tecido esvoaçantes, Porque é que estás aí parado a olhar para o degrau? Respondi-lhe num gaguejo que estava a contar as escadas, mas que não sabia se o número que vinha a seguir ao cinquenta e nove era o sessenta ou o setenta, que são muito parecidos. Sessenta, claro! Não devias contar degraus, devias era escutar o meu pai.
O Sr. Albino tinha-me convidado para ajudante na padaria, És mais esperto do que pensas Quim, contas as pessoas pelos sorrisos, de todos os rapazes do bairro, só tu davas para meu ajudante, na semana em que fiquei sem a minha avó.
A Marília sentou-se comigo depois de desenhar, no degrau, um sessenta, com um bocado de telha, e disse-me ao ouvido, O meu pai tem razão, és o rapaz mais esperto que nós conhecemos, sabes contar as pessoas pelo que valem, não pelo que aparentam valer.
Desde terça-feira que vou esticando o meu, outrora classificado de curto, fio de raciocínio, para tentar perceber o Sr. Albino e, sobretudo, a Marília.
Hoje fui entregar a vassoura de verga e o colete verde à sede da Junta, agradeci ao senhor presidente, que devia ser esperto quando andava na escola, a amabilidade com que fui tratado desde que comecei a trabalhar como varredor, ao que ele, soberano, respondeu, Tu lá sabes Janeiro, sempre me fez confusão, aquele Albino, é mais preto que a barriga do forno onde coze o pão, tem o cabelo enrolado como o das vergonhas da gente e tem mãos de urso, eu não confio nessa gente, mas tu lá sabes, tu lá sabes.
Também fiquei sem perceber o presidente, mas pouco me importo, afinal, posso sempre contar pãezinhos, prevejo que vá recuperar o peso que tenho perdido e, no fim de contas, acabaram-se as somas difíceis de gente que não sorri nem pede licença para passar, que na padaria só moram o Sr. Albino e a doce Marília.
ZdT