Não sei se ando na rua por que não tenho sono, ou se não tenho sono porque ando na rua. Sou um equilibrista de lancil quando ninguém está acordado para reparar, dou piruetas assustadoras e pulos de espantar.
Faço-me amigo de dois cães vadios, que se chegam a mim num murmúrio de fome e se conformam com uma festa dedicada, reconhecendo que, ao contrário daquilo que a vida lhes ensinou sobre as pessoas, eu tenho um grande desprezo por pulgas e primos directos e não me deixo incomodar pelo cheiro a contentor. O vento sopra firme do lado da roulotte de bifanas e desperta-me o estômago que, numa sinfonia de reclamações vigorosas, faz de mim membro ecléctico da matilha dos famintos.
E o Benfica? Apesar de já me pesarem os olhos, ainda tenho conversa para meia hora e, com sorte, para uma Especial com tudo, se faz favor. Depois de descascar nos tripeiros, método infalível para cair em graça nestas paragens sob o viaduto, e de acalmar a fome com a simpatia do senhor Amílcar, noto que Maio chegou ventoso. Dá ano formoso, atira um velho. Ainda desenrasquei umas sobras para os meus novos amigos, que acenam com o rabo enquanto se afastam para o lado mais escuro da rua.
Aqui é madrugada, longa nas horas e curta nas palavras. As conversas são pouco mais que constatações roucas do óbvio de cada um. Apaga-se a luz roxa quando passa o duzentos e sete para a Musgueira. O sono é das inevitabilidades mais caprichosas que conheço, mas talvez já esteja capaz de se render às evidências da noite. Vamos ver se se decide no caminho para casa, que é curto e encostado às paredes.
ZdT
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