Fulano provinha de tudo: nascera numa terra que ficava entre os polos norte e sul, onde o sol se levantava e punha a desoras, onde as estações do ano se não regiam por critérios previstos, onde as rotinas mansas das marés se alteravam ao sabor de um capricho.
Fulano fazia de tudo: era dono de um companhia que se dedicava a tudo e a nada, que vivia de expedientes lucrativos, onde se vendia e comprava sem a regra lógica aprendida nos livros da especialidade, que era uma espécie de negócio branco, porque era o somatório de todos os negócios. Tinha dois sócios, Beltrano e Sicrano, contribuindo cada um com a sua área de competência para o engrandecimento da empresa.
Fulano tinha tudo: anéis de rubis e colares de diamantes que distribuía amiúde pelas namoradas; mordomos que circulavam com uma leveza de fantasma pela casa de duzentas e cinquenta e sete assoalhadas e que lhe ofereciam surpresa à mesa das refeições: faisões recheados com ervas raras, codornizes no seu ninho, peixes invisíveis pescados a horas certas em luas novas de Inverno, ovos de galinha alimentadas a estudos de Chopin e cantatas de Bach, crustáceos com cascas brilhantes e cores raras, sopas de legumes extintos aromatizadas com especiarias longínquas.
Fulano conhecia tudo: os desertos profundos da Mongólia, as praias raras da Polinésia, os vulcões da Islândia, a estepes russas, os museus do mundo onde os artistas plásticos expunham as obras que eram filhas de criatividade e da loucura, os escritores das academias, os pintores das belas artes, os músicos das emoções, os poetas dos sentimentos.
Fulano, no fundo, vivia tudo - e de tudo - numa imensa felicidade.
Um dia, a uma hora imprecisa - e num dia ainda mais incerto - os telexes, os faxes, os sms, as mensagens de correio electrónico, os telefonemas, as vídeo conferências, os sinais de fumo ou batuques, convergiram para um ponto específico do universo, que era onde estava Fulano, onde vivia Fulano, onde respirava Fulano. As notícias eram certas: um tsunami num país do interior, um vulcão numa planície desértica, uma chuvada onde se desconhecia a expressão água, um vendaval onde nunca uma brisa soprara.
No dia seguinte, Fulano não tinha nada: nem rubis, nem faisões, nem polinésias, nem museus, nem poetas, nem mordomos a flutuarem por cima do mármore raro, nem peixes pescados com linha de seda fina. Tudo se esvaíra num sopro, num golpe de asa, numa gota de água, numa cinza vulcânica que tombara na demonstração de resultados.
No dia seguinte ao seguinte - ou talvez fosse ao outro seguinte -, Fulano viu-se em frente à imensidão do nada, à totalidade do vazio, à vastidão da coisa nenhuma. Rodopiou pela única sala que lhe sobrava fechando os braços, a mente formatada ainda para a assoalhada que estivera cheia de tapetes raros, quadros imortais, fotografias do sucesso e do mundo. Foi abrindo os braços temendo a angústia do embate, até perceber que os seus membros fendiam o ar onde só existia uma mistura em doses alquimistas de gases raros e outras poeiras.
Fulano, o homem que provinha de tudo, tinha de tudo, fazia de tudo e tudo conhecia fechou os olhos e imobilizou-se no eixo da terra, segurando nas mãos o relógio que cronometrava o mundo, afagando o motor que permitia a rotação e a translação numa ordem austera. Sentia-se finalmente saciado.
JdB
6 comentários:
A sua descrição dos haveres do Fulano lembrou-me uma natureza morta, daquelas ricas, barrocas, cheias de veludos, cristais, frutos magníficos e pratas em desiquilíbrio ... gostei do seu barroquismo. E da ideia de que vivemos em cima da incerteza. Que o Certo está, só, dentro de nós. Bjs. pcp
Gostei muito, João. Aliás, é só nos «fulanos» que sempre tiveram e conheceram «tudo», que se encontra – pontualmente! - esse gozo muito particular na aventura do «nada». É a aventura que lhes falta ter. Depois, ninguém, nem esses «fulanos», acreditam em irreversibilidades: do «nada», haverá sempre uma maneira de um dia, querendo – e nem todos querem - regressar ao «tudo».
P.S.: pergunta de uma pessoa com uma educação religiosa muito elementar: um indivíduo que procura um estado de bem-aventurança de olhos exclusivamente fitos na recompensa divina pode considerar-se um verdadeiro bem-aventurado? O nosso «céu» acolhe esse tipo de relação mercantilista, com colunas de «deve» e «haver»? É que, às vezes, topo – sobretudo nas gerações mais velhas - com uns «mansos», uns «misericordiosos» e uns «puros» que só o são na mira de ganhar o Reino de Deus. São, para mim, pessoas intrinsecamente egoístas, apesar do seu aparente altruísmo…
Confesso que entendi pouco ou mesmo nada. A minha fraca criatividade não o permite. Adorei as descrições, no entanto fico fascinada com o relógio e com a felicidade e plenitude do Fulano depois da destruição. Sabe JB, por vezes destruir e reconstruir é um fascínio, melhor uma obrigação.
Na verdade, fulano só pode dizer, verdadeiramente, que «provinha de tudo, tinha de tudo, fazia de tudo e tudo conhecia» quando se viu «em frente à imensidão do nada, à totalidade do vazio, à vastidão da coisa nenhuma»; nessa altura, de facto, ficou e sentiu-se «finalmente saciado»...
Gostei muito :-)
PCP, Ana CC, Luísa e Fugidia: obrigado, mais uma vez, pela vossa visita e comentários elogiosos:
PCP: socorro-me da filosofia barata. Talvez a única certeza mesmo que nos habite seja a de que tudo é incerto. E quando convivermos, tão bem quanto possível, com essa realidade, estaremos mais perto da Sabedoria. Ou da Maturidade?
Luísa: Não tenha uma dúvida de que perder muito é uma enorme aventura e, quando encontra um sentido para essa perda, a vida pode dar-lhe um sentimento de alívio muito superior ao que tínhamos quando as nossas mães esfregavam um peitinho brônquico com vick.
Quanto à sua dúvida, dois pensamentos apenas: um, de que Deus não é SENÃO amor, como já aqui escrevi várias vezes; o 2º, de que o nosso grande desígnio será ganharmos o Céu, aspirarmos à santidade. Tudo o que fizermos nesse sentido será bom, mesmo que por vezes o caminho seja mais ínvio. A geração acima da nossa, como sabe bem, foi educada no medo do inferno; nós crescemos no
gosto pelo céu.
Ana CC: uma correcção apenas, que não me levará a mal. Fulano não destruiu nada, mas destruiram-lhe tudo, se bem que a sua última frase está certa: destruir e reconstruir. Fulano ficou saciado a partir do momento em que lhe restavam apenas poeira, e gases raros, porque a sensação de não ter nada, não ter de provar nada, não ter de mostrar nada (passe o exagero...) lhe deu um sentimento de libertação.
Fugidia: É isso mesmo. E acabo por repetir o que disse acima: o sentimento do despojamento - que não significa miséria nem indigência, antes é uma atitude quase mental - é um sacia completo. Talvez calhe bem a citação de um poeta que disse "um dia tive sede de infinito".
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