A Dona Maria Josefa (Ti'Jefa, como era mais conhecida), vivia numa localidade pequena. Bem sei que esta não é uma designação apropriada do ponto de vista legal ou geográfico, mas é a que melhor se aplica neste caso.
Era uma aldeia porque toda a gente se conhecia e se tratava pelo nome, mas o local não tinha uma dimensão tão pequena para uma classificação tão redutora. Ao mesmo tempo, era também uma vila. Tinha a pacatez, o silêncio e a lentidão adequada, mas faltava-lhe aquele cheiro tão característico de nostalgia e de passado. A última hipótese é que fosse uma cidade. Mas não era, porque lhe faltava uma escola e um hospital, isto visto por um advogado, e faltava-lhe aquela impessoalidade própria de quem se senta num comboio sem olhar para quem está sentado ao lado, isto visto por um sociólogo.
Por tudo isto, a localidade ficou presa num tempo que teimava em não passar e suspensa num espaço sem nome.
Voltando à Ti'Jefa. A sua sorte era que tinha o monopólio da sua área de negócio. Era a única pessoa que se podia orgulhar disso.
O Zé das Roscas que, como o nome indica, fazia vida na venda de parafusos e outros elementos roscados, tinha como concorrente o Quim Porcas. Mas o Quim achava que a sua veia comercial pulsava demasiado para se limitar apenas a um negócio e, por isso, para além das porcas metálicas, vendia também as cor-de-rosa, mais viradas para o bacon do que para as ligações mecânicas.
Mas o seu bacon não era o único. O Chico Bicho vendia todo o tipo de animais. Vivos, mortos ou assim-assim. Grandes ou pequenos. Comestíveis ou demasiados irrequietos para serem cozinhados. Burros ou inteligentes. Burros ou bois. Ou vacas. Ou porcas. Aí está, voltamos ao bicho cor-de-rosa.
Mesmo os correios, que em todas as cidades tratam de todas as cartas, aqui tinham concorrência. Havia um habitante que, em troca de três cigarros e um café, dizia que fazia chegar as cartas aos destinatários, desde que estes vivessem dentro dos limites da localidade. Depois pegava nesses três cigarros e, quando chegassem aos dez, guardava dentro de uma caixinha de cartão, fechava e ia vender na rua. Com o dinheiro que fazia pagava ao carteiro para entregar as cartas que lhe davam. O negócio não era brilhante, mas ao menos ganhava uma bica de borla.
Mas na localidade só havia uma padaria. Mais ninguém vendia pão. Havia muita gente que vendia farinha, ovos, fermento e sal. No entanto, só uma pessoa vendia os ingredientes amassados e cozidos: a Ti'Jefa. Não deixava de ser curioso que numa cidade com tantos negócios paralelos só existisse uma padaria. A justificação era simples: mais ninguém sabia fazer pão tão bom. Antes do sol nascer, quando este fervia lá no alto ou quando já se preparava para dizer adeus, fosse qual fosse a altura do dia, o pão da Ti'Jefa era sempre fresco. E mais curioso ainda era o facto de, mesmo em casa e guardado numa lata durante dois dias, quando era levado à boca, já um pouco a medo, parecia que tinha sido acabado de fazer. Qual seria a lógica de abrir um negócio que tivesse a sua morte anunciada?
Assim a padaria estava sempre cheia. Enquanto todos os outros comerciantes passavam por épocas de vacas magras (que o diga o Chico Bicho, que durante um ano teve estes animais literalmente escanzelados) e de vacas gordas, este negócio tinha só época obesa. E como a população precisava mais da Ti'Jefa que a Ti'Jefa da população, todos toleravam a sua estranha mania. E embora todos protestassem com o que achavam ser um capricho, isso nunca mudou nada. Se não aceitavam, podiam ir embora. Mas como não havia pão em mais lado nenhum, acabavam por ceder e voltar.
Antes de cada pagamento, a Ti'Jefa exigia um histórico dos cinco pagamentos anteriores que o dinheiro tinha feito. Tudo discriminado: quem pagou a quem, onde, em que dia e a que horas. Se algum destes pontos obrigatórios falhasse, o pagamento era recusado. O dinheiro e o cliente voltavam para trás e, até este cumprir com a estranha exigência, não saia nada do cesto da padaria. Houve mesmo quem tivesse ficado dois dias sem comer pão por não conseguir arranjar, de um dia para o outro, dinheiro limpo.
A justificação desta bizarra mania era simples: dinheiro que vem de dívida atrai mais dívida. Até ter feito cinco pagamentos honestos e imediatos, está amaldiçoado. Quer fugir das mãos, ir embora, escapa-se por entre os dedos e pelos espaços entre as tábuas do soalho. E quando uma pessoa dá por isso não tem nada, só contas pendentes e nenhuns cifrões.
Até que chegou a crise, e nessa altura ninguém conseguia pagar a pronto. Ninguém tinha dinheiro, e quando por milagre alguém arranjava algum, era logo usado para liquidar contas pendentes. Andava de mão em mão, de dívida em dívida, e não havia hipótese alguma de fazer cinco pagamentos honestos e imediatos.
Mas nem assim a Ti'Jefa largou essa incómoda e cara superstição. Durante largas semanas o pão ficou à espera nos cestos da padaria, sem que ninguém tivesse dinheiro limpo para o comprar. Muito a incomodaram, imploraram e insultaram. Tentaram apelar ao seu bom senso, não fazia sentido que a localidade ficasse sem pão por uma teimosia. Mas ela não cedeu.
Até que um dia decidiu que realmente não fazia sentido continuar a fazer pão que acabava, todos os dias, por ser dado às galinhas e aos cães. Deixou então de cobrar. Passou de negócio a caridade. 'Se todas as notas nesta cidade estão sujas com dívidas, então não as quero. Não vou aceitar dinheiro que me vai pagar a falência'.
SdB (III)
4 comentários:
Caro SdB III,
Acabei de chegar de Lisboa stressada, farta de carros e barulho e cheia de adrelanina a desconcentrar.
Comecei a ler o seu texto e fui "obrigada" a parar, a respirar e a ficar. Ficar quieta a ler, só isso. Adorei. Obrigada.
SdB(III),
a sua creatividade anda muito produtiva. Cada vez gosto mais de o ler. Já quase que gosto de "histórinhas", pelo menos estou a aprender a gostar... (like like like). Obrigada! mfm
Por razões profissionais, na proxima semana vou assistir a uma formação sobre Branqueamento de Capitais. A TiJefa desta história teria qualificações de sobra para monitorar essa formação :-)
Adorei, SdB
Ana LA, mfm e maf,
Obrigado pelos comentários, e espero que nos voltemos a ver daqui a 15 dias.
SdB (III)
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