19 dezembro 2011

Vai um gin do Peter’s?


É quase desconhecida a peça de Natal escrita em 1940 por Jean-Paul Sartre (1905-1980), quando era prisioneiro de guerra na Alemanha nazi. Inimaginável no autor que se celebrizou por escrever as obras de referência do existencialismo. Sartre costuma também ser lembrado pela recusa do Nobel da Literatura em 1964 (numa época em que este Prémio tinha muito prestígio) e, genericamente, por ter animado o debate político, ético e filosófico do Paris do pós-guerra, sobretudo da esquerda gaulesa, em duo com Simone de Beauvoir. Aliás, a partir de 1945 a peça começou a cair no esquecimento até ser liminarmente banida pelo próprio autor, cujas convicções político-filosóficas mergulhavam num subjectivismo e num cepticismo crescentes que, paradoxalmente, o fez desacreditar de tudo e de todos. Assim isolava o ser humano num casulo onde só o próprio caberia, sem qualquer élan: «O inferno são os outros» ou «O homem: uma paixão inútil

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir junto à estátua de Balzac

«Barioná, o filho do trovão» é o título original da peça de Sartre, posta em cena num Natal gélido, passado nos barracões destinados aos proscritos políticos do Terceiro Reich. Juntamente com um padre amigo, também prisioneiro, o filósofo alinhou nas celebrações da festa da Natividade. Talvez por sentir quanto era vital acender pequenas luzes de esperança naquele lugar de escuridão, oferecendo a resistência possível ao esmagamento anímico com que o nazismo procurava subjugá-los. Isto recorda outra consideração de Sartre: «O pior mal é aquele ao qual nos habituamos.».

À coragem de Sartre, em 1940, juntou-se este ano a ousadia do Teatro da Trindade em parceria com um grupo de actores – a companhia TEO/Teatro do Ourives – pondo em cena(1) (até 23 de Dezembro) a peça nascida no cativeiro e adoptando o título «Barioná ou o jogo da dor e da esperança». A TEO está ligada a uma instituição dedicada à recuperação de toxicodependentes – o Vale d’Acor – a favor de quem revertem as receitas do espectáculo que ajuda a iluminar o Natal lisboeta.

Para além do apoio a uma causa tão meritória para o país, a peça também vale por si. Percebe-se que o texto é concebido por um homem nas franjas do cristianismo, num arremesso de fé frágil, cheia de reservas e inúmeras objecções, múltiplas perguntas e um sem-fim de dúvidas, uma enorme tensão e, acima de tudo, uma angústia agressiva, um desassossego interior que lhe sai às golfadas. Tudo isto enriquece a peça e o Natal, porque todos têm lugar no Presépio, tal qual são, em qualquer fase da vida, na medida em que queiram. Muito interessante, até pela invulgaridade de revelar uma perspectiva menos comum sobre o nascimento de Jesus e as reflexões a que convida. É Sartre, com a autoridade de quem acredita pouco e duvida muito, que mostra como em face do Menino, tudo se pode transformar, relançar, reacordar. É o mesmo Sartre que, nas suas imparáveis deambulações filosóficas revela facetas muito díspares e contraditórias ao longo da vida. Duma vida que lhe pesava horrivelmente, saltando de ideologia em ideologia, sempre insatisfeito, até acabar por professar o anarquismo: «Tudo foi calculado, excepto como viver.». Mas numa fase de relação mais benigna com o mundo, também defendeu: «Tudo o que recebemos vem dos outros. Ser é pertencer a alguém.».

A peça centra-se na figura de Barioná, um chefe judeu, orgulhoso e patriótico, racionalista e táctico, a urdir uma rebelião surda contra as forças ocupantes de um recanto empobrecido e periférico do poderoso Império romano. A alusão ao Reich é por demais óbvia. E a luta de Sartre também está lá por inteiro, no indefectível Barioná, que ninguém verga…

… Ninguém até a vida lhe trocar as voltas e um bebé se atrever a nascer, apesar de ter proibido a sua comunidade de ter mais filhos. Ironia das ironias: a sua mulher esperava um filho, enquanto toda a região se alvoroçava com o anúncio do nascimento de um outro bebé, muito promissor para o povo judeu. A contragosto, forçado pelos acontecimentos, Barioná dispõe-se a salvar o bebé promissor, uma vez que os romanos o tomaram por concorrente de César. Nessa caminhada de luta até ao Presépio original, Barioná cruza-se com a história de muitos homens, com diferentíssimas motivações de vida. Nessa caminhada de crescimento interior, um dos Magos dá-lhe o mote para a transformação, a partir de dentro: «Tu sofres e, no entanto, o teu dever de homem é esperar. (...) Porque o homem é sempre muito mais do que aquilo que é».



Para seu espanto, o que mais o transfigurou foi o olhar paciente e incrivelmente humilde dos pais do Menino que atraía multidões sedentas de milagres, de soluções rápidas para o dia-a-dia, tudo motivos desprezíveis e mesquinhos para Barioná, de gente que se esquivava a assumir o rumo da história, cedendo à cobardia da superstição paternalista.   

A evolução interior tocou-lhe tão fundo que nem hesitou em entregar a vida pelo Bebé de Belém, a fim de salvar o seu povo. E deixa à mulher a mensagem mais marcante que um pai pode deixar ao filho pequenino, que já não chegaria a conhecer: dizer-lhe que o pai morreu na alegria, porque desistira de se bater pela esterilidade, oferecendo a vida para que novas vidas pudessem iluminar o futuro da humanidade.

No olhar da jornalista portuguesa acreditada junto do Vaticano – Aura Miguel – a peça interpela-nos porque: «Barioná, o chefe da aldeia, era um homem recto e justo. Entrincheirado nas suas razões, considerava-se “o Senhor da vida e da morte”. Proclamava que “Deus nada pode contra a liberdade do homem” e, assim, gradualmente, foi endurecendo o seu coração contra tudo e contra todos, com a promessa de que “nunca dobraria o joelho diante de ninguém”. Só que, imprevisível, um grande Acontecimento irrompe pela sua vida.
E, quando, pela aldeia, a caminho de Belém, passam os Reis Magos, um deles diz-lhe: “Tu sofres e, no entanto, o teu dever de homem é esperar. (...) Porque o homem é sempre muito mais do que aquilo que é”. O rei Baltazar confronta Barioná e convida-o a caminhar na esperança, sob pena de ficar a “ruminar o instante fugaz, olhar para o seu umbigo de forma rancorosa, arrancar do seu tempo o futuro e encerrá-lo ao redor do presente”.
Sobre o percurso de liberdade de Barioná (…) também nós podemos ficar bloqueados na medida do instante e, aflitos com as preocupações do presente, duvidarmos que somos feitos de esperança, capazes de estabelecer um nexo com o Todo que dá sentido à existência.» (in RR on-line 2011-12-09).

Como presente de Natal a cada um, sugiro esta peça que abre o caminho à Esperança, anunciada a todos os homens de Boa Vontade, ano após ano, desde há dois milénios. BOAS-FESTAS a todos.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
______________
(1) No Teatro da Trindade, ao Chiado, até 23 de Dezembro.  Sessões de Quinta a Sábado:21h00 e ao Domingo: 16h00.     Localização: http://maps.google.pt/maps?hl=pt-PT&tab=wl
     Site http://teatrodoourives.blogspot.com/     http://www.facebook.com/Teatro.Ourive

     COMPRA DOS BILHETES: na FNAC, na TicketLine Tel: 707 234 234, www.ticketline.sapo.pt; ou nas Bilheteiras do Teatro da Trindade:
Horário: Terça: 14h às 20h;  Quarta a Sábado: 14h às 22h; Domingo: 14h às 18h
Tel: 213 420 000 | 92 798 28 34; Email:
bilheteira.trindade@inatel.pt
Descontos:  às Quintas é preço único de 5€ enquanto nos outros dias varia entre 8€ e 14€; Associados da Fundação INATEL, Jovens (-25 Anos), Grupos (+10 Px), Seniores, FNAC.

Ficha Técnica
De: Jean-Paul Sartre.
Encenação e dramaturgia: Júlio Martín da Fonseca.
Figurinos: Sílvia Perloiro
Elenco: (Barioná) José Nogueira Ramos, (Sara) Sara Ideias, (Baltazar) José Simão, (Lelius) José Sebastião, (O Publicano/Simão) Gonçalo Sarávia, (O Anjo) Ana Sofia Santos, (O Feiticeiro) Ricardo Abril, (Caifás) Manuel Vieira, (Jerevhá) Nuno Cortez, (Shalam) João Pires, (Paulo) Nuno Torres, (Mulher) Célia Santiago, (Coro/Multidão) Alexandra Pato, Diana Resende, Eduardo Pereira, Hermínia Resende, João Ramos, Maria Muge, Mariana Fonseca, Sofia Caetano e Vitor Procopio.

Produção executiva: Isabel Avillez - Sofia Sá Lima
Produção: Duc in altum | Teatro do Ourives
Apoios: Associação Vale de Ácor
Classificação: M/12
teatrodoourives@gmail.com

Tlm: 91 910 26 70


4 comentários:

Anónimo disse...

Também vi a peça, e gostei.
O seu comentário é excelente, na linha daquilo a que nos habituou.
fq

Anónimo disse...

Obrigadíssima, FQ, pelo comentário, aproveitando para lhe desejar Boas-Festas, MZ

Anónimo disse...

Muito bom, MZ. Excelente comentário. Que de certeza bate certo com a peça (que não sei se terei tempo de ir ver). Mas fiquei verdadeiramente curiosa. Confirmo, uma vez mais, que quem "foge" de Deus, é muitas vezes quem mais perto está dele. Belo texto para a época que estamos a viver. Bjs. pcp

Anónimo disse...

Gira a tua observação sobre quem foge de Deus e de tantas outras realidades marcantes na vida... Bjs, MZ

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