Chamava-se Mafalda - e tinha um olho de
cada cor.
Divorciara-se aos 49 anos
quando o topo da carreira a vira chegar. Dera 25 anos à multinacional e, numa
terça-feira invernosa, regressada de um conferência onde se discutira o
equilíbrio fino entre a saúde das populações e a riqueza das farmacêuticas, percebera,
pelo vazio humano da sala, que ocupava
um lugar cada vez mais residual no coração do marido.
Alguns meses antes, vítima
daquela perspicácia que mata as ilusões da alma, começara a vislumbrar o
esmorecimento sexual como terceiro parceiro da relação. Ela mantinha o desejo –
talvez fosse apenas o desejo – mas
ele esquecera-se dela, de um corpo mediano de praticante de badmington, e de um peito na fronteira entre o tem o tamanho certo e o que pena não ser um pouco menor. Esquecera-se ainda da assimetria colorida dos olhos,
fascinado por uma fadista que era em tudo média, e que trauteava o fado Vitória
como sinal casto de apetências lascivas.
Conheceu então o André que, aos 30
anos, se alcandorara a trainee com
responsabilidades de assistente pessoal. Era um rapaz com formação em marketing e um cabelo castanho
discreto que nascia dos lados, para terminar numa cumeada de baixo relevo. Na primeira entrevista que os colocou frente
a frente, Mafalda reparara que em momento algum o jovem retirara os olhos dos
seus próprios olhos, como se achasse indelicado fixar-se no último botão
fechado de uma camisa de qualidade. A educação de André cativara-a.
Durante um ano viajaram em
serviço. Mafalda partilhou com ele o seu gosto pela música renascentista, pela
literatura russa, pelos primitivos. Falou-lhe do futuro da medicina, da riqueza
das nações, do agnosticismo esclarecido e do novo cinema francês. André
ouvia-a, nunca baixando os olhos até ao ponto onde o decote discreto revelava a
sensualidade de sardas espalhadas a eito. Ela falava dos prémios Goncourt, do
Sundance Festival ou de marrons glacés
e ele sorria, numa veneração fixada no rosto.
Um ano mais tarde deitaram-se
pela primeira vez juntos, ao som da Torre Eiffel e de uma televisão onde
se ouvia we’ll allways have Paris.
Acharam que a frase era só para eles e beijaram-se como se não
houvesse dia seguinte, a pintura não existisse sem eles, a literatura não fosse mais do que o
romance que viviam. Esqueceram-se do mundo, excepto de uma nudez que ocupava
todos os seus sentidos. Exploraram tudo e, pela primeira vez, André não lhe fixou os
olhos, vendo Mafalda na plenitude de um corpo desnudo que lhe
era oferecido. No fim da noite, com a
imagem do frio nocturno e cinéfilo de Casablanca, Mafalda
comoveu-se, sentindo que talvez não merecesse tamanha alegria. André voltou a
olhá-la nos olhos e limpou-lhe uma lágrima furtiva.
O trainee mudou-se discretamente, levando pouca roupa, uma imagem de S. Judas Tadeu e a fotografia de uma avó sorridente que o pegava ao colo. Continuaram a viajar e ela mencionou-lhe a música
trovadoresca, o realismo mágico sul-americano, os genéricos e as saudades de um badmington que praticava com dedicação e destreza. Ele ouvia-a, sorria e, numa
cama larga com vista para a igreja da Estrela, beijava-a, acariciava-a,
dava-lhe prazer. No fim, como se fosse um ritual, limpava-lhe uma lágrima
furtiva, porque Mafalda continuava a sentir que talvez não merecesse tamanha
alegria.
Um dia Mafalda entrou em casa devagarinho, porque há quem imagine nos outros uma
alegria desmedida com o que é inesperado. Algo dentro dela a impediu do lugar-comum da surpresa! que se grita aos incautos. O
jovem, frente a uma televisão onde bebés flutuavam no éter fruto de uma gravidade que desaparecera, agitava os braços ao som de uma música de fundo que se repetia a cada segundo e meio, contorcendo-se e balbuciando sons ininteligíveis. Ao seu lado, no chão elegante de madeira corrida, meia dúzia de fotografias
dela própria. Os olhos tinham sido todos pintados da mesma cor, como se houvesse um qualquer horror à assimetria.
Mafalda manteve-se silenciosa. Numa fracção de segundo percebeu que os
princípios activos, o aquecimento global, a pintura abstracta, e até a ideia de
que teriam sempre Paris, eram a evidência de um monólogo gritante e sem retorno. Fechou a porta
e saíu, porque mesmo que tivesse dúvidas sobre a existência de uma certa
alegria, queria que André lhe limpasse uma lágrima furtiva.
JdB
5 comentários:
Adoro estes seus contos :-) Não sei bem se percebi o final deste! Falha minha sem dúvida, que estava à espera de um final "cor de rosa".... mas esses (finais cor de rosa) pertencem mais ao mundo do cinema.
Tenha um bom dia !
Sauda-se o regresso
SdB(I)
Saúdo também saudosa destas crónicas únicas.
Uma das suas artes é deixar o leitor em suspenso, cheio de liberdade para encontrar um fim. Tudo é possível e cada um constrói uma explicação conforme a sua sensibilidade e vontade.
Neste caso estou com a Maf. Pergunto-me sobre a saída furtiva, depois de descobrir que este era o relato era uma história vivida só por um dos personagens.
Não tenho meios para aplicar medidas coercivas à sua ausência prolongada, mas acho que devia pagar multas.
Mas então ela deixou-o para sempre, percebendo que não havia "equivalência" entre os dois, ou não o quis perturbar na sua excessiva e gritante juventude para voltar mais tarde? Não percebo.... pcp
Este texto é muito bonito, gostei muito de ler, muito obrigado.
António
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